O dia em que mandaram Clara Nunes calar, por Mariana Nassif

O dia em que mandaram Clara Nunes calar, por Mariana Nassif

Que ela não pergunte mais a Iansã sobre o paradeiro de Ogum, pois isso ofende; que não cante os encantos de Oxum nem sua relação com as águas doces; que deixe pra lá as festas do Tempo e do vento, que não vista branco em louvor à Oxalá; que não fale sobre negritudes, pois a casa grande se incomoda com tudo aquilo que foge do convencional, especialmente aquilo que é preto.

Calem também as vozes de Bethânia, essa declaradamente apaixonada por nossa mãe Oyá; que não cite mais as borboletas como elementares, que deixe pra lá sua ligação com os raios e as tempestades; que cale, especialmente, sua liberdade de expressar.
Silenciem o Bongar e seus tambores, abaixem o volume de Zeca Pagodinho, Almir Guiné, Caetano e Gil, porque agora não mais se fala de religiosidades sem o casamento equivocado à imposição. Os maracatus, inclusive, toquem somente dentro de seus terreiros, porque a braquitude impregnada nas nossas roupas provoca, ofende, desagrada. Não rodem mais as saias, não toquem os instrumentos de preto. Não toquem neles, com eles ou por eles. 

Que sejam prósperas somente as práticas comumente aceitas, aquelas sobre as quais se fala dentro de casa. Que a cultura diversa, colorida, alegre e simples seja reprimida e se coloque em seu devido lugar: reclusa, escondida, resumida somente àqueles que se permitem ampliar horizontes e dançar. Que ser merece ter contato com a multiplicidade? Controlem-se, pois.

Escolham seus discos, suas cantigas, seus cortes de cabelo. Escolham bem e escondam bem, caso contrário o linchamento público e pudico, covardemente protegido pelas abas do não enfrentamento, ferramenta tão comum aos fascistas, é que te caberá. Esconda os elementos de sua nação, enterre as imagens, lave os fios de contas na pia do banheiro, de portas fechadas, ninguém é obrigado a se deparar com uma macumbeira banhando os cordões no mar.

Lembrem-se também de não pular sete ondas no dia 31, não ousem pedir proteção para Iemanjá quando entrarem em águas salgadas e sim, por favor, não conversem sobre assuntos tão invasivos como o candomblé. Criem redomas estruturadas em mesmices, discursos vazios, apontamentos equivocados e sempre, sempre que possível, acusem sem contextualizar – uma eleição perigosa foi vencida dessa forma, a tática funciona sim.

Mantenham o senso comum o mais comum possível, sem informações adicionais, sem complementos, sem novos aprendizados – especialmente os pretos. Não se esqueça disso: especialmente os pretos. Higienizem-se, antes que todos estejam contaminados de liberdade, essa existência ofensiva e agressiva para quem não o é.

E enquanto tudo isso acontece, enquanto tantos outros aplaudem e operam em prol do fortalecimento do status quo limítrofe e perigoso, não se esqueça de desidentificar-se com tudo, tudo mesmo, o que diz respeito ao que você e exclusivamente você, conhece. Desenvolvimento e perspectiva, em tempos de terra-plana e outras bizarrices, é demais para quem não enxerga horizontes.

 

Mariana A. Nassif

3 Comentários

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  1. Viva a diversidade!

    Que texto bonito. Parabéns Mariana. Estava um tanto mal humorada com as coisas que leio/ouço (não aqui), mas que chegam até mim por todos os lados e de repente pensei… é o momento que o Brasil vai ter que purgar aquilo que ele quis para si. E eu tenho feito a minha parte. Minha querida amiga Paula ja disse que este ano não deixa passar dia dois sem uma festa para ela. Eh isso ai. Façamos um mundo melhor. A começar pelonosso pequeno universo.  

    [video:https://youtu.be/R7ElwLgnCNI%5D

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