O Eclipse da Hegemonia Masculina e sua Reação em “Era uma Vez em Hollywood”: o pacto de silêncio da plateia, por Cristiano Addario de Abreu

Mas nesses dias, de Trump e Bolsonaro, falar do incômodo masculino com o empoderamento feminino é um papo inescapável, que Tarantino faz nesse filme. Mas Tarantino passa perto de uma misoginia perigosa.

O Eclipse da Hegemonia Masculina e sua Reação em “Era uma Vez em Hollywood”: o pacto de silêncio da plateia

por Cristiano Addario de Abreu

“Once Upon a Time in Hollywood”, último filme de Tarantino, é para quem, indiscutivelmente, ama e cultua o cinema: é uma celebração ao cinema em músicas e imagens inebriantes da Era de ouro de Hollywood. Era de ouro que se bifurca nos anos 1960, entre uma América vitoriosa, wasp, assumidamente capitalista, e a América dos “outros grupos”, que começam a crescer em voz e imagem na autorrepresentação dos Estados Unidos. A vibrante cultura negra dos Estados Unidos, sempre foi incontornável, na música, esportes, e em toda a cultura. Desde a própria base historicamente dual da música popular norte-americana, entre Gospel e Blues (a música de deus e a do diabo), passando por todas suas evoluções em direção ao Jazz e o Rock. A presença negra na música norte-americana sempre foi imensa, para um grupo étnico historicamente minoritário naquele país. Indicando o vigor e influência dessa tradição cultural. Apesar de em outras artes, como no cinema, a representação negra ser historicamente de sub-representação.

Ocorre, a partir dos anos 1960, uma revisão dos parâmetros autoimagéticos dos Estados Unidos. Um filme icônico dessa transição, não por acaso de 1961, é West Side Story[1]. Adaptação de Romeu e Julieta numa zona oeste de Nova York, rivalizada entre wasps(brancos) e porto-riquenhos. Latinos, negros e asiáticos vêm, desde então, ganhando parcelas crescentes de representação no cenário cultural norte-americano. Sobretudo no cinema. Isso sempre foi visto como benéfico. Equalizando as representações, no cinema, dos diversos grupos étnicos que compõe esse país multirracial. Além de expressar a consolidação de uma classe média negra naquele país, em larga medida consequência da criação de políticas pró-cotas, para desarticular o potencial crescimento do partido dos Black Panthers(maoísta) entre sua população negra, que apresentou um crescimento preocupante para as elites norte-americanas ao fim dos 1960. Logo, a criação de uma classe média negra foi um objetivo político das elites norte-americanas, que também fortaleceu as medidas de aumento da representação negra no cinema. Mesmo com os estereótipos, a população negra aumentou sua representação cinematográfica, tendendo a ser proporcionalmente compatível com seu volume demográfico no país. O que, repetimos, não resolveu os problemas da representação estereotipada, da população negra: como nos filmes de guerra ou policial, nos quais sempre os negros sempre morriam antes[2]. (alguma mudança se processou contra isso, depois dos riots de 1993, em Los Angeles).

Contudo, a evolução da representação fílmica, dos diversos grupos étnicos, está aqui como uma contextualização maior: das representações humanas como um todo. Como a de homens e mulheres. Diante de um governo na Casa Branca hoje que defende a construção de um muro com o México, em guerra hegemônica contra a China, e sob um capitalismo em crise crônica desde 2008, seria difícil Hollywood não expressar tais abalos nos filmes, inclusive dialogando com o eleitorado de um país dividido. Pois, por mais que a arte, mesmo a industrial, muitas vezes tenha um forte apelo progressista, seja economicamente, seja em questões de gender and race, parece que com o levante reacionário que tem ocorrido na política dos Estados Unidos, Inglaterra (como no Brasil, mais ainda) seria difícil Hollywood não sofrer efeitos, não dialogar com essa audiência. Sendo tal onda muito perceptível em várias frequências. De fato, seria impossível Hollywood passar reto por esse momento cultural regressivo. Parece que, se nos anos 1960/1970 a reação do centro do capitalismo, aos reclames das bases, foi de mais direitos sociais, com maior participação, material e simbólica, hoje a estratégia do centro mudou para uma forte regressividade política, econômica e cultural contra as mudanças no centro do poder. Hollywood mostra que não está cega a essa onda.

E é isso o que se levanta aqui: a dimensão estranhamente reacionária, sem se assumir como tal, do último filme de Tarantino. Que não tem personagens negros, que ridiculariza Bruce Lee, que satiriza os spaghetti westerns italianos, e, numa cena em que o personagem de Pitt diz para DiCaprio “não chorar na frente dos mexicanos”,  podemos ver uma série de ironias aos não brancos. Mas ainda podemos, sim, ver o roteiro satirizando os wasps, que Pitt e DiCaprio representam,  fazendo eco aos yankees “incomodados” com os mexicanos. Tais menções aos mexicanos e italianos, brincam com estereótipos, mas ainda o fazem satirizando os wasps também. Já com Bruce Lee, não foi uma brincadeira dual, em que os dois em confronto são satirizados: teve um vitorioso, Pitt, e um derrotado(e ridicularizado), o chinês. E isso não pareceu ser mero acaso: foi um América First no filme, neste momento de crise de hegemonia norte-americana frente a China.

Feminismo e Crise do Capitalismo: lentas reações masculinas na média duração

Mas a grande reação ao malaise dos nossos dias que o filme mostra, e não parece que estão vendo claramente, é a da representação feminina. Para além de todo o flerte complicado do filme com uma saudade reacionária em geral (irônica, é verdade), tão em voga em nossos dias, creio que o principal movimento progressista atacado no filme foi o feminismo. Com direito a suspeitas misóginas pesadas. Tarantino consegue fazer isso sem ser muito visto pelo público. O que é muito mais curioso sobre a audiência, do que sobre o diretor. Indica a valorização icônica do diretor pelo público, contra o qual não se quer ver uma forte suspeita misógina. Não seria cool perceber sinais misóginos no badalado diretor.

O filme tem 2h40, e era visível que muitos dos que lotavam a sala do cinema, no fim de semana de estreia em São Paulo, estavam incomodados com o tempo do filme: muitos levantavam para ir ao banheiro, ou só para andar. Estamos acelerados com a internet, e outros tempos nos irritam. O filme nos leva nesse passado lentificado do cinema antigo. O que presenteia os que realmente amam cinema, e não estão presos no tempo rápido das séries e jogos. Muitas estórias do filme interessam muito mais pela forma como são contadas, do que pelo o que se conta: numa sucessão de referências e metalinguagens cinematográficas. Desde as cenas de atuação e ensaios do ator canastrão, magnificamente interpretado por DiCaprio, até a extasiante sequência de uma paródia de duelo, em que o duble envelhecido, feito por Brad Pitt, dando carona a uma hippie novinha, que mora numa ocupação hippie, feita num abandonado estúdio de Faroeste, acaba num real combate com os hippies, no seu antigo cenário de atuação como duble. Pitt e DiCaprio são os machos brancos decadentes, de uma Era de heróis e cowboys que acabava, e uma nova Era, aberta com os hippies, se iniciava. Eles representam aquela América branca dos anos 1950, que passou a ter que se ver em outras cores também, a partir dos 1960. Muito interessante serem eles galã e duble de Faroestes dos anos 1950, que não se adaptam aos novos tempos aberto pelos 1960. O ator canastrão de DiCaprio é um Ronald Reagan (ex ator canastrão de Faroestes dos 1950) que não se salvou virando político: foi um dentre todos os outros devorados pelo esquecimento, que é o que ocorreria com Reagan, caso não tivesse encarnado o  canastrão cowboy envelhecendo na política.

Movimento Hippie e Feminismo

Nesse processo o filme foca o ponto de mudança da América no movimento hippie. Mas o ponto que interessa a Tarantino é o da mudança feminina. Tarantino constrói um filme em que, tirando a silenciosa personagem de Sharon Tate, as mulheres ou são esposas autoritárias muito reclamantes ou hippies com todo um perfil de feministas radicais. Tarantino está falando de hoje, não daquele momento de hippismo (como ensina Benetto Croce: “toda a história é história contemporânea”). O filme diz sobre o tempo de quem está escrevendo e dirigindo, mais do que sobre o período filmado. O filme se passa em 1969, mas diz sobre 2019. Mira no hippismo, mas atira no feminismo radical.

Tarantino usa os hippies de forma dissimulada: pra bater no feminismo radical de hoje. E ninguém vê bem isso, por mais óbvio que seja. Nos hippies do filme há dois homens apenas: um deles Charles Manson(assassino de Sharon Tate), o outro um verdadeiro espantalho, usado pelas hippies para atos de força (como furar pneu e apanhar por elas). Fora esses dois, no mais eram todas mulheres na ocupação hippie. Guiadas pela Mother Bear ruiva, que encara Pitt. “As” hippies duelam, como num Faroeste, com o tiozão Pitt. E é evidente que o filme simpatiza com a dupla dos coroas loiros, parceiros de uma bela amizade, e reduz os(“as”) hippies a um feminismo chato. Isso é injusto com um movimento tão libertador como foi o hippie, e um reducionismo do feminismo, o que é complicado no filme. Mas nesses dias, de Trump e Bolsonaro, falar do incômodo masculino com o empoderamento feminino é um papo inescapável, que Tarantino faz nesse filme. Mas Tarantino passa perto de uma misoginia perigosa(sem ser percebido), pondo o personagem de Pitt suspeito de ter matado a esposa(muito parecida com a personagem de Sharon Tate, na rápida cena em que aparece num barco, no qual só reclama que o barco que o marido arranjou não é bom o bastante para ela, que “ a irmã dela tinha razão” em ridicularizar seu marido,  que era um “barco de pobre…”). Mas essa história, essa suspeita de matar a esposa, sobre o personagem de Pitt nem é tratada, e vira uma estória na narrativa que ninguém lembra no filme. Filme que tem por fundo o assassinato de Sharon Tate, que sobrevoa o filme como uma nuvem, que não se materializa. A personagem de Sharon Tate, interpretada por Margot Robbie, desliza pelo filme como uma beleza extasiante, sem muito o que dizer, além de que já fez dirty movies. Apesar dos outros convidados das festas falarem e focarem nela, inebriados com sua beleza, o que ela pensa, quer ou sente, não surge nem interessa no filme. O crime contra ela é subterrâneo ao roteiro, que tem um paralelo com o possível (e provável) crime de feminicídio do simpático e amical personagem de Brad Pitt. Um personagem de amigo n°1, que é muito ponderado em várias situações, numa clara construção de personagem para que o público simpatize com ele, ao ponto de esquecer a provável suspeita que lhe pesa de matar a esposa. Ou talvez, o duble feito por Pitt é perdoado pelo público, ao tirar a camisa no telhado… Tal cena, de uma insólita troca de antena, me pareceu apenas para mostrar Pitt num estado de beleza solar, e não duvido que seja parte da estratégia de Tarantino de nos fazer esquecer qualquer suspeita a pesar sobre o belo amigo no filme. Manipulando o público divertidamente: Tarantino tira um sarro da plateia, levando-a a só ver o que a construção do filme lhe leva a preferir ver. Por mais que o diretor bote outras direções narrativas bem mais indigestas na estrada do filme.

Lembro neste ponto que o filme que laçou Brad Pitt em Hollywood foi Thelma & Louise, de Ridley Scott, no qual uma dupla de amigas mulheres encabeçou, pela primeira vez, um road movie feminista, e o personagem dele era um caronista sedutor, golpista nas horas vagas, usado sexualmente por uma das protagonistas. Passados 28 anos Brad Pitt segue sendo uma figura sensual e carismática, mesmo quando, neste último filme, não cede aos encantos de uma teenager hippie. Que de forma anacrônica e injusta com o movimento hippie, é mostrada se prontificando para o sexo de forma consumista e mecânica. Lembremos que o movimento hippie era pelo amor livre, mas era anti consumista. Tarantino coloca a jovem hippie como uma utilitarista sexual, e o coroa Pitt como um ponderado cuidadoso com ela e consigo. Inclusive dizendo que toma cuidado para não ser, finalmente, preso (o que nos dá mais suspeitas de que ele cometeu de fato o crime que lhe sombreia). A visível irritação e fastio com o sexo vazio é uma reclamação de 2019, colocada sem medo de anacronismo em 1969, com o diretor mirando de novo no hippismo. Nesse sentido o filme é como um oposto de Thelma & Louise, no pêndulo de uma valorização do feminino em Hollywood, que mudou assustadoramente daquele filme de estreia de Pitt em 1991 para cá. Isso é algo que em “Once Upon a Time in Hollywood” deveria causar reflexão e melancolia.

Confesso ainda estar cozinhando o filme na mente, e este artigo é um ato de digestão fílmica e estímulo ao debate. Ironias a parte, mesmo que o filme seja complicado, ao simplificar os hippies e reduzi-los aos precursores de um “femichatismo”, o que é injusto também com o feminismo(que veio para libertar mulheres e homens), falar desse incômodo masculino é um assunto do momento, no Brasil, nos EUA, talvez em toda parte. O próprio surgimento de movimentos de Direitos dos Homens, como A Voice for Men, e outros nos EUA, por mais que sejam movimentos confusos e muito discutíveis, é sinal desse mal estar. E o feminismo que o filme aponta e parece atacar não é o dos anos 1960, mas sim o do Me Too movement, e outros feminismos radicais da atualidade, que caminham, de forma bem puritana(tradição tipicamente estadunidense), para criminalizar o erotismo. E são acusados por parte da esquerda, e por muitos analistas políticos, de dar força e ajudar as forças mais reacionárias de hoje, como Trump e Bolsonaro, estimulando movimentos reacionários.

A interpretação aqui exposta do filme foca no momento atual. E mira mais na plateia do que no diretor: suspeito que Tarantino ironiza e manipula a audiência, que simpatiza com um personagem suspeito de matar a esposa, sem admitir ou sequer se dar conta disso. Assim o diretor escancara, não só preconceitos da plateia, mas sua solidariedade difusa com os machos brancos Alfa em crise de hegemonia, bem como uma antipatia cansada e difusa com certo feminismo fundamentalista. Assim como a plateia mostra empatia com a crise profissional dos personagens, que como a média da população brasileira e norte-americana, está envelhecendo. Com a crise dos paradigmas, sexuais e sociais, seguramente vivemos uma mudança geral de paradigmas, possivelmente positiva para todos. Mas a reação, e o malaise, desse movimento geral precisam ser tratados e analisados com cuidado. Sobretudo, para impedir uma regressão talebânica absurda sobre pautas femininas e sexuais. Que sob um governo Bolsonaro, e a proliferação fundamentalista de seitas evangélicas, tal talebânização não é um futuro impossível no Brasil. A análise desse mal estar masculino precisa alcançar grupos populares, sendo ampliada, não ficando em bolhas progressistas. Isso tende a ampliar o alcance da questão, já que se em plateias elitistas de cinema da rua Augusta já mostram isso, que dirá em circuitos populares mais incomodados com as pautas gender and race, destacando só o que vêm como exageros dessas pautas, mas nunca as infinitas melhoras trazidas para todos.

A superação estará obviamente na soma e na conversa. Inclusive em reconhecer incômodos que ninguém admite. Pois a solução de tais desafios confronta homens e mulheres conjuntamente. Uma boa pedida pode ser valorizar a afetividade. Lembrando Rousseau e o Romantismo político e filosófico, dar mais força às afeições talvez seja bastante racional neste momento. Como o filme mostra, entre disputas, profissionais e sexuais, a afeição amical, a filia, entre os dois amigos, ator e duble, é o elo mais forte mostrado no filme. E talvez a melhor explicação da simpatia incondicional da plateia para com eles, independente de possíveis erros ou crimes no passado dos personagens.

Em todo caso há uma simpatia difusa na sociedade com a problemática atual do masculino, que se manifesta na negação do público em ver no filme tais rasgos misóginos perigosos. O filme é excelente no que se propõe, sobretudo nisso que fez em silêncio: por Luz nesse tema do eclipse da hegemonia masculina e nas suas reações. Mesmo que se discorde da linha narrativa (inclusive pelo talento do diretor em dizer, sem ser notado), Era Uma Vez em Hollywood, apesar ou por causa de sua simpatia complicada com um passado masculino romantizado, fala, brinca, e trata, com poesia, humor e algum terror, desse ainda não devidamente superado, Paraíso Perdido dos machões.

Cristiano Addario de AbreuDoutorando do Programa de História Econômica USP

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/West_Side_Story

[2] https://www.cartacapital.com.br/cultura/hollywood-esta-longe-de-representar-a-diversidade-da-populacao-mundial/

Redação

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