O escândalo da pantomima brasileira como grão da nebulosa, por Álvaro Miranda

O que os agentes públicos alegam como ocorrência de crime no escândalo Moro-Dallagnol – a interceptação de conversas por aplicativos – será risível e considerado folclórico por antropólogos e outros cientistas do futuro. Hoje o risível é o teatro da paralaxe.

O escândalo da pantomima brasileira como grão da nebulosa

por Álvaro Miranda

O escândalo revelado pelo The Intercept, principal acontecimento político do ano até agora, é apenas um grão de areia da nebulosa que vem por aí pela imbricação das tecnologias em nossas vidas. Isso, do nível mais privado da intimidade pessoal aos diversos patamares e escalões da política doméstica e da geopolítica de crises do sistema capitalista. Nebulosa tanto pela incerteza como pelos indícios de futuros possíveis da vigilância imaterial – a considerar o que o ser humano já produziu e o que é capaz de produzir para resolver e criar problemas – bem como, contraditoriamente, a incapacidade de produzir soluções para novos e velhos desastres.

O que os agentes públicos alegam como ocorrência de crime no escândalo Moro-Dallagnol – a interceptação de conversas por aplicativos – será risível e considerado folclórico por antropólogos e outros cientistas do futuro. Hoje o risível é o teatro da paralaxe. Deslocar as representações para tentar eclipsar o crime maior pelo menor. Independente de otimismos ou pessimismos, fato é que, num futuro bem próximo talvez, ninguém mais poderá se dar ao luxo de privacidades – que dirá autoridades em conluios! Para as pessoas comuns, talvez nem fará diferença porque elas não terão mais o que perder nesse perplexo mundo novo – para o bem e o para o mal.

Obviamente, as sombras beneficiam mais aqueles que têm o que esconder do que a maioria que pouco têm e pouco terá, tanto em termos materiais como em termos formais das simbologias do poder. Mas as luzes do futuro talvez vão ofuscar a visão e a consciência de todos. Os mais vigiados serão os encastelados nos aparelhos da máquina estatal – se ainda o Estado sobreviver em moldes semelhantes aos de hoje.

Até porque as multidões já começaram a ser e serão mais ainda apenas massa de manobra fácil – espécie de gelatina moldável – para as sentinelas das representações e símbolos. Estes serão transformados em futuros instrumentos estratégicos em substituição a metais, ogivas e mísseis. Na bricolagem do virtual e do real, a representação tomará o lugar do concreto.

A desterritorialização dos saques nas guerras do futuro, com seus primeiros ensaios já no presente, será revestida por um velho e conhecido ardil, porém sofisticado em novas tecnologias – qual seja, a disseminação da crença de que o que é representado é mais real do que a própria realidade. Por essas e outras coisas vivemos tempos sobrepostos, estando simultaneamente no presente e no passado – ou seja, neste fetichizado século XXI e no esclarecedor século XIX. Nosso problema maior não é a corrupção de indivíduos, mas o próprio sistema capitalista (sempre corrupto), que finge inventar remédios para enfermidades sem cura.

Mesmo as autoridades acusadas no escândalo, que já procuram fazer isso hoje – ou seja, tentar convencer mais pela representação do que pela materialidade da vida – estarão algemadas na imbricação tecnológica, e isso será só uma questão de velocidade a conferir. Os transgressores sem controle se originam do próprio desenvolvimento do aparato dos sistemas de segurança – valendo isso para satélites no espaço sideral e radares da nanotecnologia subcutânea.  

Esse tipo de autoridade pretensiosa e arrogante, representada em ícones gigantescos infláveis em praça pública, será coisa de um tempo retrógrado, grotesco e caricatural. Brevemente, no entanto, não terá tempo nem de gaguejar com seus gemidos de pássaros de asas quebradas, tentando mostrar que a culpa é de hackers. Isso porque estes não serão guerrilheiros isolados em posições de supostas fontes de jornalistas.

Seu voo será curtíssimo em termos de pretensão de poder. Se já são lacaios hoje presencialmente, amanhã serão peças abstratas da nebulosa. O próprio sistema será um grande hacker, e aí aos chamados representantes do povo (incluindo os burocratas jurídicos) e às multidões só restará a assunção inerme de ir tocando seu cotidiano como um dia após o outro – não mais como vida inteira. No caso das autoridades acostumadas a golpes e conluios antes pelo telefone vermelho, agora em aplicativos, restará tocar suas missõezinhas de vaidosos moderninhos dos acasos das oportunidades clientelísticas, tentando furar os buracos negros da transparência hipócrita.

A propósito, uma sugestão de leitura desconcertante e incisiva: o livro “Guerra e Cinema”, de Paul Virilio (São Paulo: Boitempo, 2005). A citação é longa, mas vale a pena: “Chegando a esse estágio da história, nos próximos anos, a estratégia de dissuasão nuclear cederá lugar, sem dúvida, a uma estratégia de dissuasão baseada na capacidade de ubiquidade da visão orbital do território adversário, mais ou menos como em um duelo de western, em que o poder equivalente das armas importa menos que o reflexo: o olhar superará o disparar. Enfrentamento ótico, eletro-ótico, cujo lema será provavelmente: o olhar sem parar, não perder de vista é ganhar. Ganhar o “status quo” de um novo equilíbrio de forças baseado não tanto nos explosivos, nos projéteis de resgate, como na potência instantânea dos captadores, dos sensores e dos teledetectores eletrônicos. Assim, como escreveu um dia um filósofo: ‘O problema de saber qual é o sujeito do Estado, da guerra, será exatamente da mesma natureza que o de saber qual é o sujeito da percepção’”. (p. 19)

Virilio prossegue seu argumento com um diagnóstico sombrio, observando que a tal ubiquidade de precisão absurdamente sofisticada, tópica, milimétrica, cirúrgica, não será contemplada pelo olho humano – tipo militar fardado com mapas e grampos telefônicos em seu gabinete de serviço secreto. Mas sim por máquinas instaladas em satélites inteligentes, com a “automação da percepção ponto a ponto do território inimigo, capaz de fornecer ao sistema-especializado do satélite uma ajuda para a decisão, para a velocidade de seus circuitos eletrônicos.”

Em suma, nesse futuro próximo apontado pelo autor, os poderes reais e efetivos não precisarão mais de lacaios colonizados que fazem intercâmbios em universidades de países hegemônicos ou troca de informações jurídicas de colaboração contra supostos corruptos ou adversários políticos ad hoc. Daí a obsolescência amanhã daquilo que hoje ensaia e aprimora a substituição da materialidade pelo simbólico da representação. Combate à corrupção? Os cientistas do futuro talvez deem gargalhada, perplexos, diante da constatação de como uma frágil pantomima conseguiu obnubilar a visão de multidões sedentas de heróis.  

Álvaro Miranda – jornalista, mestre e doutor pelo Programa de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED) da UFRJ.

Redação

3 Comentários

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  1. O vislumbre de uma distopia tão concretizável se revela quase elogioso! O futuro dantesco de controle total sobre o indivíduo é tão inexorável quanto o encantamento do velho homem sobre a nova sociedade, terrível, absolutista, divina! Tal como as divindades de antanho, que a tudo viam, controlavam e puniam. Sentimo-nos pequenos tal como homens neolítcos diante da inevitabilidade divina. Um temor constante e moralizante. Desta vez, produtor de uma moral que se reduz apenas ao próprio temor e nada mais. “Amai a Deus sobre todas as coisas, sobre todas as pessoas e sobre até ti mesmo”.
    Só há um resvalo de desconfiança neste absurdo todo: a certeza de que o intangível Deus dos Antigos ainda se mostra inalcançável, ao contrário de nossa assustadora, eficiente, porém estupidamente frágil divindade tecnológica. Uma explosão solar mais forte, um cataclismo qualquer… Um espirro da natureza devido à febre viral decorrente do aquecimento global… Um lapso de consciência do próprio homem sobre os projetos matematicamente binários e, tudo estará perdido! Voltaríamos à Idade da Pedra e toda a distopia tecnológica seria reduzida a um novo códice sacramentado, com bestiário inexistente, com anjos a voarem sobre nossas cabeças e caudas de pavão com mil olhos a defenestrar o espírito humano. Restariam ridículos calendários indecifráveis, profecias jamais realizadas, um compêndio de mitos e monstros, tal e qual um novo mahabharata lembrado por alguns poucos sobreviventes, interpretado e divinizado por xamãs e videntes obscurantistas.
    Que fique claro que expresso tal possibilidade como recurso puramente metafórico. A humanidade trabalha sobre que já produziu e o paralelo estabelecido entre as antigas religiões e o ensejo futuro de uma derrocada da era tecnológica não passa apenas de uma mera conjectura. Jamais a humanidade chegou a tamanho avanço tecnológico. Jamais, em nenhum momento do passado de nossa espécie, pudemos vivenciar as maravilhas que vemos hoje e considerar, num exercício de futurismo descarado, sua enorme fragilidade e seu caráter efêmero e insustentável. Jamais o que o homem sonhou foi passível de alguma possibilidade de realização. Jamais!!!
    Se alguém me falasse em computador quântico uns anos atrás, ou em visita a Marte, ou em teletransporte de partículas, eu diria com um sorriso no rosto que a Ciência do futuro é um absurdo comparável apenas aos devaneios religiosos da antiguidade. Isto nunca ocorreria. Certo?

  2. E a história se repete. Assim escreveu Gramsci:
    “Os fascistas só puderam realizar suas atividades porque dezenas de milhares de funcionários do Estado, em particular dos organismos de segurança pública (delegados de polícia, guardas-régias, carabineiros) e da Magistratura, tornaram-se seus cúmplices morais e materiais. Estes funcionários sabem que a manutenção de sua impunidade e o êxito de suas carreiras estão estreitamente ligadas aos destinos da organização fascista, e, por isso, têm todo interesse em apoiar o fascismo em qualquer tentativa que este faça no sentido de consolidar sua posição política”. (Antonio Gramsci, no ensaio “Socialistas e fascistas”)

  3. Futuro sugere que nas batalhas entre a perfeição técnica e a imperfeição humana, a perfeição sempre vencerá…
    só nos resta torcer para que o caminho do meio continue sendo pela perfeição, técnica ou humana, ou melhor, que ele não dependa unicamente do sacrifício de qualquer uma das duas

    a maior e mais perigosa máquina do nazismo, por exemplo, foi vencida pelo caminho do meio

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