O espetáculo grotesco da reunião ministerial de Bolsonaro, por Adriana Coelho Saraiva

Na realidade, o vídeo desfila diante de nossos olhos uma série de falas e situações que, se não as testemunhamos de alguma forma, já imaginávamos estarem presentes nesse governo.

O espetáculo grotesco da reunião ministerial de Bolsonaro

por Adriana Coelho Saraiva

Quem disser que não se sentiu abalado pelo vídeo da reunião ministerial do governo Bolsonaro ou mente, ou está em negação, ou se conformou completamente à estética (e ausência absoluta de ética) desse governo.

Para além do fato de que o vídeo é uma excelente peça publicitária da plataforma bolsonarista, se pensarmos bem, a reunião não mostrou nada muito diferente do que já conhecíamos:  seus integrantes defenderam o que geralmente defendem em público (talvez com um pouco mais de desinibição) e o presidente demonstrou com clareza toda sua falta de educação e rudeza, que também já é de conhecimento público.

Mas o que foi tão chocante, então?  Os palavrões, proferidos generosamente por todos os integrantes que se manifestaram no encontro macabro, tal qual uma espécie de senha para falar ao grupo?

Foi o fato de que, com o país submerso em gravíssima pandemia, as poucas vezes em que abordaram o tema, o fizeram a título de pretexto para desenvolver ações antissociais ou contra o meio-ambiente? Importante frisar aqui, não houve, em momento algum, qualquer demonstração de preocupação com os danos causados às pessoas pela pandemia, ou com a elaboração de qualquer   planejamento para o combate à  doença.

Terá sido a linguagem chula, deselegante, ameaçadora, com que o presidente se dirigiu aos demais presentes, quase em nada diferente do que já nos habituamos a ouvir em suas manifestações em público? O que mesmo nos chocou?

Na realidade, o vídeo desfila diante de nossos olhos uma série de falas e situações que, se não as testemunhamos de alguma forma, já imaginávamos estarem presentes nesse governo. Mas há passagens que, ainda assim, chamam mais a atenção:

Não se pode esquecer a frieza e cinismo com que o ministro do Meio Ambiente, expos claramente seu plano de aproveitar o clima conturbado do país para impor mudanças devastadoras na legislação de proteção ambiental e das terras/ povos indígenas.

Ou a fala autoritária e chula do ministro da (des)educação, explicitando o caráter militante de seu projeto, onde atribui a cada ato por ele promulgado a intenção deliberada de destruição do nosso sistema educacional, finalizando com a pérola da proposta da prisão dos ministros do STF.    Aliás, no quesito militância, ficou nítido que não existe esse negócio de “ala ideológica”, ” ala técnica” e “ala moderadora “: todos, absolutamente todos os que integram o governo Bolsonaro são comprovadamente ideológicos ( com exceção talvez  do Teich, que entrou mudo e saiu calado do mesmo).

Prosseguindo, ainda podemos falar do escracho com que o ministro Paulo Guedes se pronunciou, referindo-se ao funcionalismo público como ‘’inimigos’’ a serem combatidos com granadas. Some-se a isso, sua proposta de privatização imediata do Banco do Brasil e a fala, cheia de escárnio e ignorância, afirmando que sua intenção era salvar da crise apenas os grandes empresários, deixando os pequenos (justamente os que sustentam a economia de um país) entregues à própria sorte.

Não precisamos nem lembrar da ministra Damares que, em meio a seus delírios de poderio religioso, propôs a prisão dos governadores.

O que mesmo nos chamou mais a atenção, que não imaginássemos que ocorria a portas fechadas, como já ocorre com elas escancaradas?

Ouso afirmar que o que abalou de fato o que resta de ‘’república‘’ por aqui foi a clareza com que o presidente do país expos seu plano de (re?)tomada do poder pelas armas. No vídeo, em meio a afirmações contraditórias sobre liberdade e democracia, ele declara sua intenção: ‘quero armar a população para que ela possa sair às ruas. É muito fácil dar um golpe nesse país. Por isso quero armar a população’.

Vale aqui um parênteses: essas declarações e suas confusas noções de democracia e liberdade, não foram unidas ao acaso. Fazem parte do repertório de doutrinas da ultradireita, como a desposada por Bolsonaro. De fato, nos Estados Unidos, berço das inspirações bolsonaristas, encontram-se grupos ideológicos reconhecidamente de direita que forjaram, de diferentes formas, o que hoje conhecemos como a Alt Righ, que respalda politicamente Donald Trump. Dentre esses grupos, encontram-se os Libertarians, cujo termo remonta aos meados do século XIX, quando o comunista libertário francês Joseph Dèjacque quis nomear uma forma política de esquerda frequentemente associada ao anarquismo. Apesar de sua origem e, a despeito de ainda nomear grupos de diferentes matizes e concepções ideológicas de autonomia estatal da esquerda à direita, de lá para cá, o termo passou a ser associado com maior ênfase às correntes de direita e ultradireita, que vieram, posteriormente a confluir para o Tea Party, na primeira  década dos anos 2000.

São, portanto, os grupos que se denominam de Right-Libertarians (libertarians de direita) ou mesmo os Conservative Libertarians (Libertarians conservadores), com diferenças de graus entre eles, que constituem o amálgama de valores adotados pela ultradireita norte-americana contemporânea e, por conseguinte, por Bolsonaro. Para essas correntes do pensamento ultraconservador, noções como liberdade, autonomia estatal, livre mercado e direito à propriedade são inquestionáveis e se combinam à perfeição com o uso de armas e a adoção de valores ultra-conservadores sociais (especialmente no caso dos Conservative Libertarians). Obviamente, a derivação para adoção de concepções racistas, homofóbicas, misóginas e neo-nazistas se faz com certa naturalidade, e todas essas características argamassam juntas o que se passou a conhecer posteriormente como a Alt Right.

Assim, elencar em um mesmo discurso, armas, liberdade, deus, religião e família, faz parte de um roteiro pré-estabelecido e ideológico (combinado por Bolsonaro com certa adaptação ao contexto brasileiro), ao tempo em que, torna claro como água o fato de que a defesa de Paulo Guedes como ‘Posto Ipiranga’ do governo Bolsonaro não se dá de forma aleatória ou como se o presidente estivesse ‘’cedendo’’, a contragosto, à pressão dos mercados. Todos esses constituem os ingredientes da perspectiva ideológica de Bolsonaro, e, mais uma vez, reafirmam o caráter ideológico de todos os ministros de seu governo, inclusive, e, principalmente, Guedes.

Foi o que afirmou sobre seu projeto pessoal de governo – que não chega a ser propriamente uma novidade –  mas ao ser exposto com tal limpidez, não deixa mais qualquer margem para dúvidas: o plano de Bolsonaro é se apropriar do país pelas armas (autogolpe?), com o auxílio de sua milícia (policial e civil), armada para esse fim, e, fundado em sua liderança personalista, instalar o que acha tão fácil de fazer com o país: um regime autoritário miliciano, ou seja um regime fascista, com todas as letras.

Não é fácil olhar a própria cara no espelho e todos aqueles que assistiram ao espetáculo da reunião ministerial do dia 22 de abril devem ter sentido o incômodo de perceber que essa é a cara do nosso governo, do nosso país atual. Mas, acima de tudo, não se poderá dizer que não nos foi oficialmente anunciado o plano desse desgoverno, com especificações detalhadas para cada área e definida a   culminância do projeto. Esta se dará quando o chefe da quadrilha finalmente conseguir armar seus seguidores e impor o arbítrio miliciano sobre nós. Se permitirmos.

Adriana Coelho Saraiva – Doutora em Ciências Sociais pelo centro de Estudos Latino Americanos –ELA / UnB. Funcionária recém-aposentada do CNPq.

Redação

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