O familiar, o mundano e a Psicanálise, por Luiz Marcello Cruz Santos de Aguiar

Talvez o mundo não seja bem o lugar onde nunca estivemos mas o lugar onde estivemos uma ou poucas vezes mas de lá recuamos.

O familiar, o mundano e a Psicanálise

por Luiz Marcello Cruz Santos de Aguiar

Quando falamos sobre o mundo é comum nos vir à mente um espaço ou um lugar exterior ao privado e familiar, um lugar distante da nossa realidade cotidiana, um lugar estranho, perigoso, hostil às nossas crenças e hábitos. É algo que está sempre “lá fora”; todos nós sentimos isso, por mais vividos e rodados que sejamos, pois não há alguém que tenha vivido tudo na vida- só os arrogantes acham isso- e tudo aquilo que ainda não vivemos elegemos para ser “o mundo”.

“O mundo” é também aquele lugar que nos faz pensar: quando estiver nesse lugar e familiarizado a ele, aí sim terei conhecido a vida, poderei dizer que vivi a realidade concreta, saí de um mundo de devaneios, de sonhos tolos, terei me tornado “adulto”.Temos muita preocupação em adquirir status mental, em poder dizer para nós mesmos e os outros que atingimos um patamar de maturidade; o jovem de hoje tem muito essa preocupação, mas também os mais velhos carregam essa cruz para o resto da vida. Não é só a busca pelo dinheiro que nos acorrenta, também a busca por status mental nos faz correr atrás só das aparências, e quando vemos não fizemos as coisas pelo prazer de fazê-las, o tempo passou e então já estamos velhos.

Na nossa sociedade só conhece “o mundo” quem tem status mental; quem tem jogo de cintura para lidar com diferentes situações de risco, seja para a vida, para o bolso, para o parceiro, para a saúde, para a profissão… quem escolheu uma profissão unicamente pensando no dinheiro… ou então quem não tem profissão e vive de biscates comendo o pão que o diabo amassou- o sistema adora esses sofredores, desde que eles acreditem em si e no que fazem pois, para ela, é isso, e somente isso que move “o mundo”.

Os sofredores são os escravos do status mental. É preciso que saiamos do que é familiar e irmos para “o mundo”, sairmos do sonho para a realidade, é preciso ser sempre mais, e só é mais quem fez mais concessões, quem se humilhou mais, engoliu mais sapos, se sacrificou mais em mais horas extras de trabalho por dia, quem fez mais teses de mestrado e doutorado, quem procurou respeitar a todos indiscriminadamente, mesmo se esse alguém lhe deu prejuízos.

“O mundo” é sempre o lugar do sofrimento, onde aprendemos de forma compulsória o que não queremos aprender no familiar, é o lugar onde somos cobaia do sadismo da máquina produtiva sempre disposta a fazer novas experiências com seus subordinados com o intuito de aumentar a produtividade; o espaço da intimidade é sempre o lugar da trama, da conspiração contra o que é “mundano”, o lugar de onde se partirá para fazer justiça contra a lei do “vale tudo”.

“O mundo” costuma também ser qualificado como o lugar onde as coisas acontecem, o lugar onde existem acontecimentos. Talvez o mundo não seja bem o lugar onde nunca estivemos mas o lugar onde estivemos uma ou poucas vezes mas de lá recuamos. “O mundo” pode ser um “arquétipo” fabricado pela História, mas pela sua não-naturalidade não deixa de ter o seu poder de influência tão ou mais forte do que um “arquétipo natural”. Ele pode não estar na primeira vez do encontro sexual, mas certamente estará na primeira vez de um homem em um prostíbulo; está no primeiro emprego; está no humilde sorriso de uma mulher mais experiente que olha para você com ternura  como quem diz: ”Você poderia ser meu aluno; porque me recusas?”

“O mundo” pode ser representado também como o lugar onde podemos nos apaixonar; e se apaixonar é correr o risco de ser usado. Quem teme ser usado está constantemente submetido à tensão, ao recalque, isto é, está sempre submetido a ter que manter no esquecimento – em outras palavras, manter no inconsciente – aquilo que angustia. Tenho que dosar direitinho o que posso e o que não posso revelar de meus segredos, tenho que saber ser agressivo ou doce na hora certa, mostrar minha inteligência na dose certa e no momento certo… e isso dá trabalho… e temos horror ao trabalho, diga-se de passagem. Temos horror ao trabalho porque a mais-valia do nosso trabalho fica sempre com o Outro, esse estranho que se meteu em minha vida e que eu não sei o que quer de mim. ”O mundo” está dentro de nossos relacionamentos públicos, privados e até íntimos. Temos a sensação de que, para fazermos a passagem do privado para o público ou do íntimo para “o mundo”, temos que saber selecionar a bagagem que vamos levar conosco, do contrário nos sentiremos injustiçados. E, para o neurótico falar de justiça só faz sentido se ele estiver cem por cento certo – ou cem por cento errado. Ele adora os pontos finais. Ter que argumentar, contra-argumentar, provocar e ser provocado é um convite ao trabalho…

O “mundano” também costuma ser qualificado de injusto, e tudo o que é injusto de certa forma nos deixa tranquilos pois a injustiça tem sempre um cheiro de realidade; é o injusto que tanto tememos, mas também que tanto amamos pois  ele nos dá o reconforto de estarmos erguidos sobre uma certeza: “seremos injustiçados”. Nosso mundo íntimo precisa desse sofá para lá nos esparramarmos e nos entregarmos à derrota do ócio, da preguiça diante da programação da TV, da Mídia Tradicional, da internet e das redes sociais. E de lá rimos escondidinho daqueles que vivem “no mundo”.

Essa separação entre o íntimo e o mundano é que nos condena a sentirmos mais tarde que a vida passou e não a aproveitamos, deixamos o tempo passar. Mas quando acordamos já é tarde e já nos sentimos “velhos” demais.

Redação

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