O fetiche da especialização na avaliação de políticas públicas, por Álvaro Miranda

Fórmulas e metodologias de avaliação honesta só podem ser construídas para cada situação específica – e com a participação dos atores diretamente afetados pelo problema.

O fetiche da especialização na avaliação de políticas públicas

por Álvaro Miranda

A autoridade da especialização é um dos fetiches mais comuns da vida contemporânea. A própria especialização se transformou numa espécie de natureza imanente da vida em sociedade, intensificada a partir do século XIX com o desenvolvimento do sistema capitalista e da burocratização das relações sociais.

Entre profissionais que se apresentam como especialistas em avaliação de políticas públicas, tal fetiche se veste, muitas vezes, de terno e gravata bem engomados, ou mesmo fashion despojado, usa canetas com tintas carregadas de leis e normas e impõe discursos pretensamente científicos marcados por aquilo que costumo chamar de um tecnicismo neopositivista. Isso, com diagnósticos frequentemente distante das necessidades requeridas pelas situações avaliadas.

Evidente que nossas vidas individual e coletiva não podem prescindir de médicos, químicos, engenheiros, advogados, economistas, contadores, filósofos, cientistas políticos e outros profissionais de variadas especializações. E nem se defende aqui, obviamente, um anti-intelectualismo em favor da boçalidade ou ignorância, como se tem visto em comportamentos de altas autoridades do país.

A questão é que avaliação de políticas públicas, conforme atestam teoria e prática, não tem receitas prontas que sirvam para programas de políticas distintos em diferentes lugares. Fórmulas e metodologias de avaliação honesta só podem ser construídas para cada situação específica – e com a participação dos atores diretamente afetados pelo problema.

A teoria sobre o assunto pode ser apurada em trabalhos publicados no Brasil e em diversos países dentro do campo de estudos sobre políticas públicas. E a prática pode ser conhecida em experiências internacionais e nas ações de muitos funcionários públicos e agentes comunitários dos municípios brasileiros envolvidos nas atividades dos sistemas de saúde e educação, as duas áreas em que se verifica a maior profusão de trabalhos de avaliação.

Mesmo parâmetros de organismos internacionais e experiências de outros países podem ser bem-vindos desde que passados por um processo de antropofagia nacional e local. Isto é, desde que não impostos goela abaixo sem uma digestão crítica e criativa. Afinal, estudos de casos e análises comparativas iluminam situações num movimento pendular constante e inventivo entre teoria e prática, uma confirmando ou rechaçando a outra na situação concreta analisada.

Até em relação à chamada auditoria financeira a especialização pode não ser suficiente. Michael Power, autor do livro “Audit Society”, tem uma frase singela e interessante: “Auditor não é super-homem”. Questões financeiras críticas podem ter origem em desenhos institucionais e culturais e não se limitarem ao plano contábil de erros e irregularidades.

Isso nos convida a pensar que organismos de fiscalização possuem ferramentas tecnológicas e massa crítica para também fazer avaliação, além da observação do cumprimento da lei. Porém, fiscalizadores, de fora da situação, podem não ser suficientes. Sem falar que os objetivos desse tipo de accountability é a prestação de contas para fins de responsabilização.

A avaliação, por sua vez, na perspectiva da teoria democrática, não visa à punição de quem quer que seja, mas sim corrigir situações e/ou produzir diagnósticos para o desenvolvimento de novos programas, dentre diversas outras possíveis finalidades.

Quando se pensa nos arranjos de um modelo de avaliação, as primeiras perguntas são muitas sem que se esgote a lista: quem avalia, ou quem tem autoridade e legitimidade para avaliar; o que avalia, para que e para quem avalia; como avalia, em que condições, a partir de dentro ou de fora da situação; quem constrói o método avaliativo; quem patrocina o trabalho de avaliação e quanto custa a avaliação com os recursos diversos necessários para esse tipo de trabalho.

 Costuma-se dizer que não se faz avaliação de políticas públicas no Brasil, e isso é verdade, com exceção das experiências que desconhecemos nos grotões afora das regiões metropolitanas e no interior do país, em empreendimentos autônomos e por iniciativa de profissionais diretamente ligados aos objetos avaliados, sem apoio algum do estado.

São trabalhos realizados por verdadeiros guerreiros que, ao constatarem um problema recorrente, não veem outra saída a não ser fazer um esforço de avaliação e diagnóstico sobre causas, efeitos e contexto para reverter determinada situação. Conheci gente assim em cursos que ministrei na Escola de Contas e Gestão do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. Gente com seus trabalhos ocultos em municípios do interior, sem marketing algum, empenhadas na solução de problemas.

É trabalhoso, custa dinheiro, tempo e energia, enfim, algo que o estado deveria patrocinar. E não fazer como faz, impondo fórmulas extraídas de critérios elaborados por organismos internacionais para atender a determinados objetivos de mercado em troca de recursos ou pontuação em escalas de transferência de benefícios.

Para finalizar, sem encerrar as possibilidades de reflexão, voltando ao início, isto é, o tal neopositivismo tecnicista. Avaliar é um ato político. Avaliação é julgamento político de situações, embora não tenha o caráter sancionatório de pessoas. Avaliação acontece nas contradições e conflitos do processo político e social. Avaliar pode exigir algumas técnicas, mas não se restringe à aplicação de instrumentos sem consideração das especificidades concretas de cada situação.

O tecnicismo é a aura da pretensa legitimidade pela autoridade da especialização. A expressão de Norberto Bobbio é curta e luminosa: “a falsa cisão entre técnica e política”. É que de nada vale o raciocínio jurídico, por exemplo, fora das contradições sociais e dos conflitos econômicos de ordem estrutural. De nada valem o economês e o economicismo para tentar diagnosticar situações que requerem análise da cultura ou do comportamento dos indivíduos. De nada vale a etnografia ou a antropologia se não se fizer um trespasse criativo com outras disciplinas que joguem luz sobre problemas atuais com causas mais próximas do presente do que na sua ancestralidade.

Da mesma forma, um olhar apenas sociológico com peso nas variáveis culturais pode ficar aquém das necessidades, num diagnóstico mais amplo que requeira, necessariamente, dados econométricos. Assim também a “matematização” de situações e a comparação do incomparável podem ser muito atraentes, com sua plasticidade e efeitos imagéticos de números, gráficos e tabelas, mas não conseguirem diagnosticar algo que está no plano do imponderável e do imprevisível na vida das pessoas. Há situações, por exemplo, que não são passíveis de avaliação segura por seu caráter imaterial ou intangível.

Enfim, a interdisciplinaridade imanente ao trabalho de avaliação de políticas públicas implica duas exigências: em primeiro lugar, ter uma espécie de sensor crítico e político para os problemas, pensando nas pessoas como fins e não como meios. Em segundo lugar. reconhecer, por outro lado, a importância dos especialistas e, portanto, o desenvolvimento intelectual e do pensamento, dentro ou fora da academia, porém de forma democrática e não com base na suposta meritocracia que justifica e legitima a eternidade de situações por conveniências de uma falsa natureza.

A reflexão coincide com o velho bordão de que a democracia não é atributo de especialistas. Assim também a avaliação de políticas públicas não pode ser uma especialidade de economistas, juristas ou cientistas políticos. Deve, isto sim, ser o empreendimento de um conjunto interdisciplinar composto também pelos não especialistas que vivem diretamente a situação avaliada.

Redação

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