O Frankenstein tropical e a ilusória busca da normalidade democrática que conhecíamos

A normalidade democrática que conhecíamos ficou para trás, pois não será possível operar uma grande conciliação nacional, como em 2002

Reprodução

Por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria*

O modelo político da geringonça portuguesa, uma improvável coligação de governo, exerceu alguma influência inspiradora sobre a frente ampla que se formou contra a perspectiva de retrocesso autoritário no Brasil. Nesse sentido, os últimos acontecimentos noticiados pela imprensa merecem alguns comentários críticos. A frente que se ampliou recentemente pela defesa da democracia, após o posicionamento oficial do governo norte-americano em favor do sistema eleitoral brasileiro, vem revelando gradualmente as suas mais profundas contradições em termos de expectativas.

No sentido da ampliação da frente pela democracia, merece destaque a participação do ex-presidente Lula (PT) em evento na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), no dia 9 de agosto. Lula acenou para o agronegócio e se comprometeu com as reformas administrativa e tributária para um empresariado cujas expectativas são de que essas mesmas reformas não contrariem os seus interesses particulares. O orçamento secreto seria usado para impulsionar essas reformas no Congresso? Bernardo Mello Franco, jornalista de O Globo, chegou a dizer que o ex-presidente “pisca para a elite” ao prometer a “volta à normalidade”. Qual é a normalidade que devemos almejar? Aquela que nos conduziu ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT)? Não consta na imprensa que um empresariado “conservador” e ortodoxamente fiscalista esteja manifestando reais preocupações sociais com os rumos brasileiros.

Não convém esquecer que o capital privado nacional se mostrou historicamente a perna fraca do tripé desenvolvimentista e que o modelo do capitalismo associado-dependente se consolidou como a regra geral no campo industrial brasileiro. A combinação do neoliberalismo dos anos 1990 com o boom das commodities dos anos 2000 foi devastadora do ponto de vista da estrutura produtiva doméstica. Sabemos que não é possível sustentar um Estado de bem-estar social a partir de uma estrutura produtiva extrativista, “neocolonial”, de baixa complexidade econômica. O reformismo regressivo e sua coalizão política não consideraram essas questões a partir de 2016.

Em seu Bicentenário da Independência, o Brasil enfrenta o quadro dramático de retrocessos ambientais, econômicos e sociais, sem que tenha vencido o subdesenvolvimento. Os avanços da pobreza e da fome já foram objetos de muitas reportagens na imprensa. Para se ter uma rápida ideia, em sua coluna Vaivém das Commodities, na Folha de S.Paulo, do dia 9 de agosto, o jornalista Mauro Zafalon citou que mesmo sendo um líder mundial nas exportações líquidas de alimentos, parte considerável do Brasil passa fome. A partir do Datafolha, ele indicou que 33% dos entrevistados relataram não ter comida suficiente na mesa. Dados do IBGE, da Pnad Contínua, apontam para o fato de que o rendimento real habitual do trabalho caiu 5,1% no segundo trimestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado. De acordo com o jornalista, “na contramão dessa queda de rendimento, os alimentos tiveram uma disparada de preços desde o início do governo Bolsonaro”. A inflação geral subiu 28% desde o início de 2019, porém os alimentos ficaram 54% mais caros.

De acordo ainda com o IBGE, para o segundo trimestre de 2022, foi de 21,2% a taxa composta de subutilização da força de trabalho (percentual de pessoas desocupadas, subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas e na força de trabalho potencial em relação à força de trabalho ampliada). O desalento atingiu 4,3 milhões de pessoas e a taxa de informalidade para o Brasil foi de 40,0% da população ocupada. Recentemente, a frente ampla comandada pelo ex-presidente Lula teria recuado, segundo noticiado pela imprensa, na intenção de revogar a reforma trabalhista após a resistência mostrada pelo capital. Rever apenas alguns de seus pontos já seria uma vitória do campo progressista? São muitos os desafios regulatórios no campo das transformações digitais que precisam ser enfrentados por um governo progressista.

Para o caso brasileiro, desde 2016, a correlação entre o reformismo regressivo e a ascensão do extremismo de direita não pode ser esquecida. Em tempos de orçamento secreto, de emendas pix, entre outras manobras e práticas fiscais pouco republicanas, resta-nos avaliar criticamente o trabalho de reconstrução institucional pela frente. Tarefa de Sísifo? As contraditórias alianças eleitorais estaduais afetarão a agenda nacional, impondo vetos a mudanças necessárias? Está sendo montado um Frankenstein tropical, inspirado na geringonça portuguesa?

Afinal, o ex-presidente Lula se comprometeu com qual tipo de reforma administrativa na Fiesp? A nota técnica de número 69, de 19 de maio de 2021, da Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal, trouxe análises relevantes sobre a PEC 32/2020, que versa sobre a “reforma administrativa”. Segundo consta na nota técnica, “o Poder Executivo julgou não ser viável realizar qualquer estimativa de impacto fiscal no presente momento, dada a dependência de regulamentações futuras”. A nota técnica, por sua vez, apresentou alguns impactos fiscais identificados na PEC 32/2020. Segundo consta no documento, “o primeiro impacto fiscal que vislumbramos com a aprovação da PEC 32/2020 é o aumento da corrupção na administração pública”. Consta ainda na nota técnica que “a possibilidade de cada órgão estabelecer normas próprias para a gestão das receitas próprias e para a exploração do patrimônio próprio também causa preocupação, pelo aumentado risco de descontrole e malversação da coisa pública”.

O documento também tratou da captura do Estado por interesses privados, que, no entender da nota técnica, será facilitada pela aprovação da PEC 32/2020. A ampliação da contratação de pessoal sem concurso público, por exemplo, é citada. Como é de conhecimento geral, o clientelismo e o patrimonialismo são tradicionais práticas políticas no Brasil para garantir as governabilidades e a permanência de grupos políticos no poder. Destaca-se no documento que “o risco central é a desestruturação dos órgãos públicos, que se tornariam muito mais vulneráveis à interferência política, pois sua força de trabalho poderia ser em grande parte substituída a cada ciclo eleitoral”. Carreiras típicas de Estado seriam poupadas da precarização laboral imposta pela reforma administrativa para que interpretem as leis, processem e julguem, ou que tenham a capacidade de reprimir movimentos sociais a partir do uso da força física?  

Para alguns, a história brasileira pode até ser contada ciclicamente pela série de pactos políticos costurados por cima desde a sua independência, em 1822, à la Lampedusa, ou seja, é preciso que algo mude para ficar tudo praticamente igual. Há controvérsias, é claro, porém também existem continuidades nas mentalidades no longo prazo. As “carreiras típicas” de Estado estão efetivamente alinhadas com o poder econômico para que o Brasil avance no profundo abismo reformista neoliberal, no subdesenvolvimento? Quais seriam as consequências para as perspectivas brasileiras? Seria aceitável a normalização da neoescravidão da força de trabalho para a manutenção da estrutura produtiva extrativista, de baixa intensidade tecnológica, com a permanência da extrema concentração de riquezas no topo?

O Boletim de Conjuntura do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), de número 34, de junho/julho de 2022, destacou que a economia brasileira está em ritmo lento e o aumento da pobreza anda em ritmo acelerado. Em síntese, “as desigualdades sociais e econômicas e a pobreza se acentuam em ritmo acelerado”. Convivemos com 33 milhões de pessoas sem ter o que comer e com mais da metade da população em algum grau de insegurança alimentar. Os efeitos de alívio da “PEC eleitoral” serão passageiros e a inflação continua castigando a população. Qual é mesmo a nossa visão comum de progresso e democracia? 

Em sua coluna do dia 12 de agosto, no jornal O Globo, Bernardo Mello Franco apontou aspectos da degradação institucional no Brasil. Ele citou que a Freedom House, por exemplo, fez advertências de que o Brasil se encontra na lista de “países governados por líderes que se empenham em sabotar a democracia”. Nesse sentido, a tentativa de se celebrar a suposta aliança entre capital e trabalho em defesa da democracia no ato público do dia 11 de agosto na Faculdade de Direito da USP precisa ser problematizada. Segundo o colunista, “essa é uma visão idealizada, que omite a cumplicidade de grande parte do poder econômico com a extrema direita”. A normalidade democrática que conhecíamos ficou para trás, pois não será possível operar uma grande conciliação nacional, como em 2002, em um contexto no qual a economia global parece caminhar para a estagflação.

*Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria são professores do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem um ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Novo documentário do Jornal GGN denuncia ameaça de golpe eleitoral de Bolsonaro e os esquemas da ultradireita mundial. Apoie o lançamento: WWW.CATARSE.ME/XADREZ-ULTRADIREITA

Leia também:

As peças do Xadrez da Ultradireita

O pacto de Bolsonaro com militares e a morte de Marielle

A formação das milícias bolsonaristas

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. As alianças para produzir um terceiro governo do ex-presidente Lula nada tem a ver com geringonças e frentes amplas em termos de copiar modelos, mas com um processo que acontece aqui e agora no solo brasileiro: unir contraditórios para derrotar antagônicos – como, aliás, ele tem destacado.

    O risco embutido na sucessão presidencial é entre um neonazismo neoliberal, tropical mas made in USA, e todas as forças que, por diversos motivos, busquem o mesmo.

    Muitas o fazem e farão pela democracia, outras pela pandemia, outras pela economia e outras por pragmatismo. No entanto, o efeito pode ser impedir que o país se torne um obtuso III Reich de bananas.

    A janela pela qual a reeleição de Lula passa é por ele representar o mais antigo clamor da humanidade por justiça social e de compaixão no durante e pós-pandemia de Covid, com seus impactos econômicos, sim, mas principalmente psicológicos.

    Não está na ordem do dia uma reconstrução dos governos petistas, mas um pacto implícito pelo qual governo serve para governar e gente para brilhar, não para morrer de fome. E se a fala e a liberdade foram duas coisas que levaram a humanidade adiante, trata-se de exercer o diálogo e compartilhar fantasias menos selvagens e destrutivas.

    Em outras palavras, a disputa no reino humano que começa a vigir não é sobre socialismo e capitalismo, tampouco sobre desenvolvimentismo e liberalismo. É sobre se nos consolidaremos como uma espécie ignorante, violenta e egoísta ou se esclarecida, pacífica e altruísta. E seguiremos mantendo irmãos vivendo em contextos de selva dos quais erguer a civilização foi o escape.

    Nesta contenda cabem todos. Desde que haja Concertação Social e ganha-ganha, o que ocorre dentro das margens disponíveis, importando que seja esta a ética distribuidora.

    Por isso, reformas, marcos fiscais, agenda de investimentos dependerão não de compromissos doutrinários, mas da capacidade propositiva e base social, com um governo preferencialmente dos pobres e da natureza.

    Se boa parte dos poderes econômicos é cúmplice da extrema-direita, o essencial são os que não são e os que podem, por suas próprias circunstâncias, deixarem de ser.

    Quanto maior for a vontade de arrastar franjas, apoios, votos, discutir para trocar conhecimento, compreender para mudar, maiores as condições para reconstruir o Brasil e algo, não igual, porém inspirado na outrora normalidade. Quanto maior for a vontade de riscar linhas no chão, entraves e óbices, maiores chances disso não ocorrer.

    A questão é que está em jogo uma ascensão supremacista. Se isso é visto como mera desculpa, está na hora de se permitir atenção plena ao que está acontecendo.

    Todo esforço precisa ser para que “isso” passe logo. É o que as pesquisas tem dito de fato. E está sensação não começou com economia, mas com a pandemia, “estúpido”.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador