O futuro foi ontem, por Márcia Denser

O futuro foi ontem

por Márcia Denser

A adoção de um moralismo conservador anacrônico, uma ortodoxia petrina, a extinção das políticas de favorecimento dos pobres, mulheres, negros e índios, o repúdio da Teologia da Libertação em todo o continente, a implantação da Nova Carismática entre as baixas classes médias e sua guinada pró-mercado: em toda linha foi lamentável a ação da Igreja Católica nas últimas décadas até 2013, quando o Papa Francisco sucede à Bento XVI.

Até então, não admira o êxodo, e a julgar por medidas tão lamentáveis – porque absurdas, porque burras, porque alienadas, porque perversas – parece que a igreja católica estaria justamente se empenhando no sentido inverso, quer dizer, rumo a alguma “limpeza étnico-religiosa” ou “assepsia classista”.

E tudo isso me lembra Borges quando escreve, citando Emmanuel Swendenborg, que no Paraíso os ricos continuam ricos, pois estavam acostumados à riqueza, já os pobres não vão para o Paraíso porque não o compreenderiam.

Porque desde os anos 80, com Karol Wojtyla, o Vaticano aderiu maciçamente às correntes fundamentalistas de interpretação da fé (a Opus Dei de Geraldo Alckmin que o diga), ao neoliberalismo combinado da dupla Thatcher/Reagan, ou seja, alinhou-se abertamente com os ricos. Absurdo para uma instituição que postula a caridade? Absolutamente.

À sua época, Pio XII (1939-1958) também fingiu não ver o Holocausto judeu. O fato é que até Bento XVI, a hierarquia católica proclamava que nossos pobres não existiam. Literalmente. Uma vez que periféricos, colonizados e neocolonizados, em suma, descartáveis.

Realmente, não admira o êxodo, os católicos só tinham que dar no pé, aliás, veja-se Edyr Macedo, que além de ordenar “bispas”, distribui mui lampeira e estrategicamente camisinhas entre os fiéis nas barbas do sumo pontífice. Favelão ou Feira do Inferno? Terceiro mundo.

Mas nem sempre foi assim. Ao contrário. Entre 1958 e 1978 – de João XXIII a João Paulo I – plenamente sintonizada com a época, a Igreja Católica conheceu vinte anos de esplendor progressista. E digo isso com duplo conhecimento de causa porque 1) vivi essa época; 2) dos seis aos dezessete anos estudei num colégio de freiras católicas. Confesso que vivi a aplicação do catolicismo progressista pela base.

Questões como maternidade, contracepção, aborto, sequer se colocavam, uma vez que, naquela época, era muito claro para uma jovem de classe média, como eu, que antes seria preciso sustentar-se, não depender dos pais ou assemelhados, pagar os estudos, construir uma carreira profissional, isto é, tais questões não se colocavam porque exigem a priori a conquista duma liberdade econômica (aliás a única que existe, não conheço outra, e vocês?), propiciando a autonomia para tomar decisões (sabem, o popular do livre-arbítrio só pode ser exercido no plano moral ou existencial quando a sobrevivência está resolvida) quaisquer que sejam, tais como, dois pontos, ingerir ou não anticoncepcionais, oscilar entre a histerectomia e o diafragma, ter ou não um filho, dois filhos, três, um time de futebol inteiro, fazer vinte e oito abortos no Senegal, etc.etc. etc. 

Mas como imputar a uma menina pobre, sem condições de prover a própria sobrevivência, a culpa ou responsabilidade moral e criminal pelo aborto? No nível dessa menina, a responsabilidade é “social”, isto é, da própria sociedade que eternamente, através de suas instituições (igreja, Estado), novamente tira o corpo fora.

Na realidade, nem era muito importante, não era o centro das atrações do debate político progressista (no auge do Woman’s Lib) nas décadas de 60/70, nem o casamento nem a maternidade nem o aborto nem a droga do filho e do marido e da sogra e todas essas questões muito privadas e comezinhas que nossas mães viveram, que nossas avós também viveram e bisavós ainda mais, tudo  igual normal geral generalizadamente e há séculos.

Mas as temporalidades enlouquecem.

Atualmente os jovens vivem tão submersos em hábitos, costumes, orientação moral e religiosa retrógrados, ultrapassados, totalmente anacrônicos em vista das conquistas científicas, dos avanços da legislação dos direitos humanos – até sem se dar conta do quanto são retrógrados – que não sabem – e não tem como saber – o quanto fomos longe, o quanto avançamos, o quanto era diferente para quem viveu plenamente os anos 60 e 70, porque aí se pode perceber o quanto vocês, jovens, foram lesados historicamente, engolfados sem mais aquela em sociedades pós-catastróficas.

Se o futuro existiu em algum momento, alguma parte, foi lá, aconteceu lá, já aconteceu, pessoal, foi ontem.

(artigo publicado em DesEstórias, Kotter, 2016)

 

 

 

 

Redação

1 Comentário

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  1. Francisco

    Falta pouco para a imprensa dos homens de bem chamarem Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, de “Papa Bolivariano”.

    Só LULA salva!

     

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