Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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O futuro que já passamos, por Urariano Mota

Neste fim de 2018, sinto que estamos divididos entre a esperança e a grande  angústia. Com o fascista que sobe à presidência da república, temos a certeza de que o pior virá em direitos trabalhistas, direitos humanos, educação e todas conquistas civilizatórias. Essa é a grande angústia que nos assalta. Ainda assim, há uma esperança a iluminar esse próximo futuro. Ela vem da experiência dos caminhos mais difíceis que já passamos, e com muita luta e resistência pudemos superar. Todos, todo o povo brasileiro já passamos por piores desastres, como a ditadura que veio com o golpe em 1964. E vencemos, e ganhamos a redemocratização, a liberdade, limitada, mas incomparável ao que se anuncia nesse 2019 próximo.   

 

É da história vivida que vem uma esperança. Então penso no terror que passamos antes, quando tivemos a desventura de passar pelos anos da ditadura, um tempo mais sério e em muitos pontos mais trágico que o de hoje. E lembro o que narro no romance “A mais longa duração da juventude”, neste breve trecho que recupero a seguir:

“E fomos por ruas e becos, subidas, descidas e voltas para despistar possíveis perseguidores, até me deixarem na João de Barros com uma sacola, onde jazia o mimeógrafo dentro de um saco de papel. Não sei se pesava mais ao braço ou ao coração. Por que perto do quartel de bombeiros, sério, apreensivo, pus a mão no peito e subi as escadas. Lá, guardei-o no próprio saco de papelão, no único lugar que não dava na vista: debaixo da minha cama. Um espelho comprido, no entanto, que devia ter sido de um guarda-roupa, ia até o chão e refletia a minha rara prenda.

 

Ponho a mão sobre a testa para me dizer hoje, ‘quanta precariedade’. Tudo era frágil e grandioso, como se fossem carnívoros que se comessem mutuamente. Com tão pobres armas íamos derrubar a Ditadura e o Capitalismo, nessa ordem. Ao mesmo tempo, a derrota do capitalismo incentivava os pobres como nós, que não tínhamos um lugar na sua manutenção. Éramos os escolhidos por desejo e opção. Mas o diabo era isto: um caro mimeógrafo debaixo da cama a se refletir no espelho do quarto. Como uma meia furada no calcanhar que se expunha. Só a lembrança repõe a dimensão do que não víamos.

 

Nem ao espelho enxergávamos. Como era possível? Por que, observo agora, não mudei a posição do grande espelho? ‘Não, poderia despertar suspeitas’. Certo, então por que não mudei a posição do mimeógrafo para um ponto onde não fosse visto? ‘Não, porque ao abrir a porta, ele seria notado’. Então o espelho e o mimeógrafo estavam em sua melhor posição, a se denunciarem com nitidez. ‘Sim, é natural um pacote sob a cama. Segurança não é segurismo, companheiro’, podiam me dizer. Perfeito, de acordo, e o maravilhoso objeto caía na cabeça, quero dizer, sob, onde eu me deitava. Mas o essencial é isto: eu não enxergava o espelho. Apenas sentia o peso de guardar o mimeógrafo. É nessa altura que Luiz do Carmo chega, caçado, para dormir ao lado da preciosa máquina. Em resumo, formava-se um aparelho terrorista para a repressão, se nos pegasse. Como escapamos naquele hibridismo do clandestino e legal?

 

Nunca será demais ou excessivo o tributo que devemos à generosidade da mulher anônima. Em mais de uma oportunidade, o seu coração nos fez abrigo quando tudo era terror de Estado. Penso na cozinheira da pensão, dona Severina, uma senhora negra, analfabeta, que lia como ninguém as necessidades dos fodidos. Mais e melhor que a Irene de Manuel Bandeira, ‘Irene boa, Irene preta, Irene sempre de bom humor’. Maior foi Severina porque a sua bondade era ativa, não era aquela da criada perfeita, sempre a serviço dos patrões, que por isso entrará no céu, apesar de negra. Não, sob risco, na conspiração sem palavras e sem bandeira, muda, quanto devemos a ela? Severina lia em nossos olhos a angústia, e um sorriso se insinuava em seu rosto, quando nos olhava com olhos graúdos como se nos dissesse: ‘Eu te compreendo, futuro, se para a humanidade houver algum, eu te compreendo futuro camarada’. Esta lembrança vem na escrita. A gente tem que escrever para não ser um filho da puta, ou um ingrato, pior que os gatos domésticos. Por quê? Eu pagava somente a minha vaga e alimentação. Almoçava lá embaixo, mas lá em cima, Luiz do Carmo estava trancado sem comer. Então eu comia até a metade do meu prato. E ao me levantar da mesa com os meus 50% deixados, eu falava para me justificar do modo exótico de comer:

 

– Levo para o meu lanche, mais tarde.

 

Severina doce, Severina bondosa, Severina indispensável, sorria com os olhos para minha desculpa, eu podia ver. A partir do terceiro dia do almoço pela metade, ela punha mais feijão e mais pedaços de carne em meu prato, ‘por engano’. Na hora da refeição, a velha dona fiscalizava a quantidade de comida posta para os inquilinos. Severina atrasava pôr a minha refeição até que a dona saísse, e quando mais não era possível, escondia o excesso de carne sob camadas de feijão e arroz. Eu, percebendo a cumplicidade, comia rápido os meus pedaços, de tal modo que na volta da megera o meu prato estivesse equilibrado. Se pudesse fazer mais, Severina nos levaria para a sua casa, nos cobriria com a sua saia para esconder aqueles terroristas sem futuro, a não ser a morte. Que chegaria para todos, é certo, mas não tão cedo. Para mim, agora, a sua cara negra e redonda cresce. Com os olhos grados e um sorriso bom. Nela poderíamos ter a unidade com o povo tão sonhada, e não víamos, porque buscávamos o popular idealizado, macho, de armas engatilhadas como o exército vietcongue. Mas o popular estava no sorriso de Severina. Ela apenas queria ser nossa irmã naquela hora repleta de angústia. Ela apenas nos cobria como uma negra fugida abrigava os seus negros perseguidos. Enquanto nós, os perseguidos delirantes, procurávamos o popular sublevado. O engraçado é que tão criminoso me sentia pelo furto de comida sob a vigilância da senhoria, que eu fazia de conta que o almoço vinha a mais por acaso, embora repetido, e Severina fingia que errava a mão, sempre no mesmo prato. Na verdade, eu era o seu negro preferido, o filho especial da negra Severina, que para os outros era madrasta. Estrela Vésper riscava no céu até nós, e a sua luz era negra, num deserto branco de ossos”.

 

Então ligo a experiência de Dona Severina à lição de Fabiano em Vidas Secas.  Desafiando o céu, os espinhos e os urubus, sob o sol bárbaro Fabiano pensa em voz alta: “Tenho comido toicinho com mais cabelo”. O que vale dizer, ao fim: já passamos por tempos mais brabos, amigos. Que venha 2019.

 

*Vermelho http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=9714&id_coluna=93

 

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  1. É MUITA CARA DE PAU…

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    Nem sempre a parceria e conluio com ‘ Milicos ‘ e ‘ Quartéis Militares Verde Oliva ‘ foram assim tão desprezíveis, não é mesmo?  

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