O golpe de 1964 e a conspiração militar, por Luis Nassif

O golpe inicial foi civil, das passeatas à sessão do Congresso que depôs Jango. Mas a retaguarda foi totalmente militar.

Admito que até o dia 31 de março de 1964 meu apelido era Lacerdinha e provavelmente fui o único aluno do Colégio Marista de Poços de Caldas a fazer um discurso – em evento de apoio organizado pelos irmãos – em favor do golpe. Ainda era inimputável, com 13 para 14 anos.

Neto de avô lacerdista e amigo pessoal de Carlos Lacerda. Nas Marchas com Deus que ocorreram em Poços de Caldas, a reação era de amigos mais velhos, o Netinho, o Adnei, Tomaz, o Sérgio Peru, o Zé Baixinho.

Aliás, nos últimos tempos, o espírito das marchadeiras baixou em alguns  deles. Foi a vingança dos tempos. Em cada post do Sérgio eu vejo por trás o espírito de uma velha descarnada, de cabelos ouriçados, com um terço na mão dizendo que é a vingança das marchadeiras encarnando nos jovens de outrora que ousaram enfrenta-las.

Todos eram integrantes do bravo GGN (Grupo Gente Nova), grupo destinado a criar lideranças cristãs que colocavam a mão na massa, fazendo trabalho social em favelas.

Do mesmo modo, admito que, menos de um mês depois do golpe, mudei de posição. E caí em desgraça junto aos irmãos Maristas, que apostavam em minha vocação para seminarista. O motivo foram as notícias vindas de São Paulo e Rio de Janeiro sobre a violência policial em estudantes e operários. Mais que isso, o clima de delação que contaminou a cidade, fazendo que conhecidos nossos, dentistas, médicos, delatassem nossos companheiros de Semana do Estudante, ligados ao Partidão.

É evidente que a legitimação do golpe foi garantida pela chamada sociedade civil, jornais e TVs da época estimulando as grandes passeatas que engolfaram no radicalismo até o centro democrático. Há uma foto histórica de uma das marchas tendo à frente Ulisses Guimarães, o futuro senhor diretas.

O golpe inicial foi civil, das passeatas à sessão do Congresso que depôs Jango. Mas a retaguarda foi totalmente militar. No IPES, Golbery do Couto e Silva já articulava conspiradores, através do grupo conhecido como a Sorbonne. No lado civil, conspiravam-se nas federações das indústrias, nos clubes sociais, nos encontros de senhoras, nos almoços entre as marchadeiras e as forças militares.

Uma tia de minha ex-mulher era uma das líderes das marchadeiras paulistas. A família forneceu vários desembargadores e juízes. Em sua casa reuniam frequentemente, para almoço, comandantes militares, empresários, desembargadores e representantes das mesmas classes sociais e categorias que atuaram politicamente nos últimos anos. O único que reagia era um dos filhos, que sempre me dá a honra de participar dos comentários do GGN.

Mesmo na nossa Poços de Caldas, havia sinais nítidos de que a conspiração era nacional. Juarez Távora, amigo da minha família, aliás, forneceu armamento até para o dr. Fabrino, médico amigo nosso que acabou detido por um delegado pouco informado. Deteve o Fabrino, por embriaguez, e descobriu no porta-malas uma metralhadora. E só conseguiu acreditar que tinha sido fornecida por Juarez quando Fabrino pediu o telefone e ligou para o marechal na frente do delegado. Se forneceu ao Fabrino, que mal se equilibrava em um copo, como teria sido com os fazendeiros locais? Havia mais metralhadoras do que o armamento descoberto na casa do vizinho do Bolsonaro.

Isso ocorria na ponta, no distante sul de Minas. Nos centros políticos, o jogo era muito mais explícito.

Os paradoxos da esquerda e os militares

Assim como agora, a esquerda meteu-se em um paradoxo, uma esfinge que não conseguiu ser decifrada a tempo e a engoliu.

O golpe vinha sendo preparado desde a eleição de Getúlio Vargas. O ponto central foi a ruptura do chamado centro democrático. A última tentativa foi de San Thiago Dantas, pelo PTB, em uma conspiração do bem com Afonso Arinos, da UDN. Não prosperou. Àquela altura a polarização se instalara, com Carlos Lacerda comandado a direita e Leonel Brizola a esquerda.

A campanha diuturna empreendida pela mídia contra o perigo vermelho se espalhara por todo o sul de Minas (meu ponto de observação) e arredores. As linhas avançadas eram a rádio Globo, que abriu os microfones para Carlos Lacerda, a revista O Cruzeiro, os Associados, que tinham jornais em todas as capitais, aos demais grandes jornais do Rio e de São Paulo, e revistas como Ação Democrática.

Assim como fazem agora com o MST (Movimento Sem Terra) e MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), e até com as FARCs, na época levantava-se o fantasma das Ligas Camponeses. Seriam as forças revolucionárias que invadiriam os centros urbanos. Aliás, essa mística espalhou o terror na classe média e convenceu até parte da esquerda urbana. Há um trabalho muito bem feito do jovem Wanderley Guilherme dos Santos, que foi conhecer as ligas, e voltou contando que não passava de meia dúzia de gatos pingados, armados apenas de enxadas.

Em entrevista ao Brasilianas, Wanderley reiteraria que o diálogo político poderia ter evitado o golpe de 1964.

Jango sabia perfeitamente da importância de rearticular o meio campo, o mesmo que garantiu o getulismo, com a presença de forças trabalhistas, representantes do grande empresariado nacional e estamentos militares nacionalistas.

O golpe vinha sendo preparado desde a eleição de Getúlio Vargas.

Há um artigo de Afonso Arinos, de 1963, comentando o discurso do anticomunismo. Dizia ele que a guerra fria terminara com o encontro entre Kruschev e Kennedy. Agora, havia apenas a exploração política dos fantasmas do passado. Mas se Jango não fosse capaz de mostrar firmeza no comando do país, o poder acabaria inevitavelmente sendo tomado pelos militares.

Àquela altura a polarização se instalara, com Carlos Lacerda comandado a direita e Leonel Brizola a esquerda. San Thiago foi amaldiçoado por seus amigos cariocas e Afonso Arinos, por prudência, se recolheu.

A imprudência final foi o infausto Comício da Central, uma multidão reunida, com a falsa sensação de força que sempre emerge das grandes aglomerações populares e da retórica inflamada de oradores. No meio daquela multidão, Jango era um homem políticamente só.

Lembro-me até hoje indo até o Bairro Aparecida, em Poços, junto com o amigo André Aguirre, para pegar os estatutos do Grêmio Afonso Celso, do Colégio Marista. Pretendia montar uma chapa, mas o Zé Baixinho, adversário, teimava em não mostrar os estatutos. Conseguimos convencê-lo de que era a irmã do André, candidata do Grêmio do Colégio Jesus Maria José, que precisava dos estatutos para montar o seu. Subíamos as ladeiras e todas as casas estavam com o rádio ligado no comício e com moradores tremendo de medo com a ameaça comunista.

Por trás de todo o processo político, era nítida a articulação dos militares. A oposição civil jamais abdicou do seu militar de estimação, assim como o trabalhismo. Nas primeiras eleições pós-Estado Novo os candidatos foram o Marechal Eurico Gaspar Dutra e o Brigadeiro Eduardo Gomes. Nas eleições de 1950, o adversário de Getúlio foi Eduardo Gomes; nas eleições de 1955, Juscelino enfrentou Juarez Távora; nas eleições de 1960, Jânio enfrentou o Marechal Lott, representando o nacional desenvolvimentismo.

O golpe contra Jango foi a expressão máxima do poder militar. O Congresso depôs Jango, mas já sob o tacão militar.

Dizia a Constituição de 1946, em vigor, nos seus artigos 79 e 80 que, “em caso de impedimento ou vaga do Presidente e do Vice-Presidente da República, serão sucessivamente chamados ao exercício da presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, O Presidente do Senado Federal e o Presidente do Supremo Tribunal Federal”. E, no seu parágrafo 2: “Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição sessenta dias depois de aberta a última vaga. Se as vagas ocorrerem na segunda metade do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita, trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma estabelecida em lei. Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período dos seus antecessores”.

No entanto, quem assumiu provisoriamente o poder foi uma junta governativa composta pelos Ministros militares – Vice-Almirante Augusto Rademaker Grunewald, tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo e general Arthur da Costa e Silva.

No dia 9 de abril, a junta militar, falando em nome de um “Comando Supremo da Revolução”, baixou o Ato Institucional número 1, o primeiro de uma série redigida por Francisco Campos, o mesmo Chico Ciência que deu o formato jurídico para o Estado Novo.

Segundo o CPDOC:

Composto de 11 artigos, o AI-1 era precedido de um preâmbulo onde se afirmava que, “a revolução, investida no exercício do Poder Constituinte, não procuraria legitimar-se através do Congresso, mas, ao contrário, o Congresso é que receberia através daquele ato sua legitimação. Além de conceder ao comando revolucionário as prerrogativas de cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos e deliberar sobre a demissão, a disponibilidade ou a aposentadoria dos que tivessem ‘atentado’ contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública”, o AI-1 determinava em seu artigo 2º que dentro de dois dias seriam realizadas eleições indiretas para a presidência e vice-presidência da República. O mandato presidencial se estenderia até 31 de janeiro de 1966, data em que expiraria a vigência do próprio ato”.

Até lá em Poços de Caldas a gente soube que era golpe, ainda que viesse dourado pela mídia como um programa de salvação nacional.

No dia 10 de abril, a mesma junta militar divulgou a relação de 102 nomes de pessoas destituídas de seus direitos políticos. Diz o CPDOC: Entre eles, João Goulart, o ex-presidente Jânio Quadros, o secretário-geral do proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB) Luís Carlos Prestes, os governadores depostos Miguel Arraes, de Pernambuco, o deputado federal e ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, o desembargador Osni Duarte Pereira, o economista Celso Furtado, o embaixador Josué de Castro, o ministro deposto Abelardo Jurema, da Justiça, os ex-ministros Almino Afonso, do Trabalho, e Paulo de Tarso, da Educação, o presidente deposto da Superintendência da Política Agrária (Supra) João Pinheiro Neto, o reitor deposto da Universidade de Brasília Darci Ribeiro, o assessor de imprensa de Goulart Raul Riff, o jornalista Samuel Wainer e o presidente deposto da Petrobras, marechal Osvino Ferreira Alves. A extensa lista incluía ainda 29 líderes sindicais, alguns deles bastante conhecidos, como o presidente do então extinto Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), Clodsmith Riani, além de Hércules Correia, Dante Pellacani, Osvaldo Pacheco e Roberto Morena, 122 oficiais foram também expulsos das forças armadas.

No dia seguinte, o Marechal Castello Branco foi apresentado ao Congresso como candidato a presidente da República. Questionar, que haveria de?

As lições do episódio foram enviadas ao GGN por Wanderley, em um comentário ao post que em lembramos seu trabalho de 1962.

“O resumo está muito bom, mas faltou algo que me parece essencial e que fez a diferença em relação à análise do então Partidão e à dos dispostos à luta armada. O Partidão centrava sua ação na tese de que, sob pressão, a burguesia nacional engrossaria a esquerda e assumiria a hegemonia de uma revolução nacional-desenvolvimentista.

Eu dizia que a pressão sobre a burguesia nacional a levaria a juntar-se à reação, algo que ela resistia até ali. Quanto aos defensores da luta armada, eu acabara de sair do movimento urbano ligado âs Ligas Camponesas, depois de verificar, juntamente com Carlos Araújo, ex-marido da Presidenta Dilma, que se tratava de um  blefe sem  nenhuma organização séria à altura das provocações e ameaças que fazia.

Um dia, advertíamos, a reação vai pagar para ver e não vai ver nada. E não viu mesmo. O golpe de 64 foi ridículo como combate político posto em confronto com a efervescência “revolucionária” até 31 de março. Deu 1 de abril”.

wanderleiguilhermedossantosquemdaraogolpe-130129065728-phpapp01(3)
Luis Nassif

8 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Nassif ficou muito bom os artigos dos destaques do dia com vários temas sobre a ditadura juntados com estes dois principais deu uma impressão de muita “sustância”uma espécie de mutirão do jornalismo e me tirou a sensação da falta de foco na linha editorial os artigos se entrelaçaram formando uma rede de informação bastante construtiva/informativa!
    Obs:Viu!? Falei(escreví)difícil !!!

  2. 88 anos de Golpe Civil-Militar Ditatorial Fascista Absolutista Caudilhista Assassino de 1930. Em 1964 os tais Esquerdopatas quiseram ‘dar uma pernada’ nos cúmplices, como as Forças Armadas, que mantiveram este Estado Parasitário se se deram mal. Mas como diziam Intelectuais de Esquerda como Anísio Teixeira ou Florestan Fernandes, nossa Elite Esquerdopata leu 2 ou 3 livros e já se acham Socialistas. O resultado é tamanha mediocridade por quase um século. De cabeça nos tornamos em rabo. Mas Elites que não querem se enxergar Elites como os Nassif’s, que compartilhavam palanques com Presidentes, querem que continue esta latrina. A Censura explica estas 9 décadas Esquerdo-Fascistas de Estado Absolutista. Parabéns pela tragédia que construíram. Indústria do Atraso, da Pobreza, da Vitimização, do Coitadismo, da Bandidolatria, do Anbalfabetismo,…Mas como Tibury ou Jean Wyllys, a Europa ou EUA são sua nova residência. País de muito fácil explicação.

  3. A era militar brasileira certamente pode voltar, mas não uma era de militares que priorizaram a infraestrutura brasileira e a qualificação de empregados de fábricas (não vou comentar sobre as transgressões de ambos os lados daquela época). Nos dias atuais, pelo silêncio deles próprios sobre o tema social, a preocupação não é a do salário mínimo acima da inflação e mais meia dúzia de direitos trabalhistas e previdenciários, caso eles assumam o poder em detrimento da queda de um Bolsonaro frágil, que nem de longe é o Bolsonaro que votou na Câmara algumas vezes a favor do povo.

    Por sua vez, as esquerdas nunca tiveram paciência em negociar a longo prazo, como foi a equivocada tentativa de perpetuação no poder, vide a segunda eleição presidencial Dilma, a bem da verdade eles não têm a menor ideia de como seria um governo de tratativas com o modus operandi totalmente militar. Será que sábio não seria ver os conservadores do judiciário conceder a semiliberdade ao Lula, também por isso, os parlamentares esquerdistas adotarem uma postura menos beligerante no Congresso Nacional?

    Desde o terceiro ano do segundo mandato de Dilma os movimentos progressistas vem levando bola-nas-costas da oposição conservadora em todas áreas da sociedade, por isso não seria o momento desses movimentos serem influenciadores da ala mais esquerdista para fazê-la se atinar de que é possível minimizar os efeitos de uma ‘reforma constitucional’ irrefreável, a fim de evitar ao longo prazo multidões de miseráveis?

    O ainda insubstituível líder social, Lula imaginava (creio eu) que concedendo crédito e mais créditos financeiros ao povo, isso geraria acúmulo intelectual e patrimonial tamanho que no futuro quando a bolha do megaindividamento estourasse atingindo os quatro cantos do Brasil, em pouco tempo o cidadão se levantaria diante de uma terra monetariamente arrasada, só que em situação de igual pra igual a seu semelhante, sem o histórico escudo da casta social ou grande herança, no entanto, o ex-presidente não contava com o instinto de sobrevivência dos conservadores … e o final todo mundo já sabe, não obstante, só não se sabe atualmente o que surgiria de um final precoce do governo Bolsonaro.

  4. Queriam o Poder e pegaram. Ponto. Nao aguentam ficar “de fora”, querem é man-dar. É impressionante a dificuldade da Ciencia Politica em explicar isso.

  5. Nassif: de primeiro de abril a primeiro de abril vivem os VerdeSauvas. São uma mentira constante, se renovando a cada primeiro dia do quarto mes de cada ano. Uma piada armada, desde que terminou a Guerra do Paraguai. Imcapazes de enfrentar “soldados” de verdade, preferem matar e torturar os seus, sob o manto de cumplicidade do Judiciário, seu “defensore” inconteste.

    Poderiam pedir pro Trump lhes dar uma vaguinha no Afganistão, na Siria… Mas por outro lado, ha de considerar-se que ficando um pouquinho no Haiti voltaram com essa sanha toda de sangue a qualquer custo, imagina se vão a uma guerra de verdade. Trucidam, sem perdão, os 91 milhões que não votaram neles. Ainda bem que Putin botou água na fervura deles, na aventura da Venezuela.

    Mas defendo o direito deles em fazerem desfile e manifestação de júbilo pelos crimes que cometeram. As milícias do Tanque também festejam assim, quando atacam outras facções. Afinal, estamos numa Democracia de Botas…

    1. Na bela, conservadora e proviciana Poços de Caldas, Meu pai, getulista e Janguista,chorava perto dos 5 filhos , eu caçula de 9 anos chorava sem entender meu pai *heroi*, se desmanchando em prantos, preocupado com o Ze Naldone e O Geraldo Tasso do Partidao.
      Aos 16 anos , ja em Sao Paulo, entendia a tristeza do meu velho. Poços ja não nos servia mais (numa terra de fazendeiros reacionarios como Junqueiras, carvalho Dias e tantos outros babacas que, (ainda hoje fazem o que querem na cidade) terminariamos orfãos de pai.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador