O incidente de Hormuz e a política externa dos EUA, por Hannah de Gregório Leão

Desde seu início, o governo de Donald Trump demonstrou seu claro desprezo pela ordem jurídica internacional.

do OPEU – Observatório Político dos Estados Unidos

O incidente de Hormuz e a política externa dos EUA

por Hannah de Gregório Leão

A resposta norte-americana à crise no estreito de Hormuz, em julho e agosto de 2019, evidencia uma política norte-americana histórica e controversa com relação ao Direito Internacional. Ao criticar expressamente os sequestros de navios estrangeiros no estreito de Hormuz, por parte do Irã, Donald Trump aparentemente se mostrou defensor da ordem jurídica internacional, porém de forma um tanto beligerante, ao afirmar uma pretensa legítima defesa norte-americana para responder aos ataques iranianos.

Antes de tudo, traçar uma perspectiva histórica da relação política e econômica dos EUA com o Direito Internacional se torna tarefa essencial para se compreender as atuais medidas do governo Trump, ao mesmo tempo herdeiro e destruidor de uma política norte-americana construída historicamente.

Desde o final da Segunda Guerra Mundial e o subsequente início da Guerra Fria, os Estados Unidos representaram um papel essencial (e controverso) no estabelecimento das Nações Unidas e dos principais tratados internacionais. Eleanor Roosevelt, primeira-dama dos Estados Unidos, presidiu o comitê de aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), tendo uma participação crucial para sua criação e aprovação. Para tratar de assuntos de paz e de segurança internacionais, enquanto reflexo da ordem hegemônica da Guerra Fria, o estabelecimento do Conselho de Segurança terá os Estados Unidos como seu membro permanente. Esse status gerou inúmeros desentendimentos na agenda do referido órgão no decorrer do século XX, tendo em vista o embate com a União Soviética, país que desfruta da mesma condição.

O embate político da Guerra Fria gerou um embate jurídico internacional entre as duas potências hegemônicas, Estados Unidos e União Soviética, o qual se evidenciou, principalmente, na criação dos dois principais pactos de direitos humanos: o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

O embate entre liberalismo e comunismo gerou uma ruptura no Direito Internacional, ao estabelecer dois tratados que afirmavam abordagens jurídicas diferenciadas de direitos humanos, a depender da ordem política e econômica do Estado signatário. Enquanto os EUA ratificaram o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, gerando a ratificação de inúmeros países aliados à agenda americana, a então União Soviética ratificou o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o que também gerou uma vasta ratificação de países alinhados ao Leste. O governo americano afirmou, inclusive, sua intenção de não ratificar este último, fato que somente se concretizou em 1992, ano de fragmentação da União Soviética e consequente fim da Guerra Fria.

Das inúmeras controvérsias de presidentes americanos com o Direito Internacional, o exemplo de Ronald Reagan demonstra claramente a política de Estado norte-americana, herdada pelo também republicano Donald Trump. Enquanto um dos presidentes americanos mais reconhecidos por sua (ambivalente) campanha de defesa do Direito Internacional dos Direitos Humanos, principalmente por sua aproximação com o governo soviético de Mikhail Gorbachev, Reagan apoiou o grupo rebelde dos Contras, na Nicarágua. Essa decisão acabou resultando no caso Nicarágua vs. Estados Unidos (1986), da Corte Internacional de Justiça, o que fez os Estados Unidos retirarem admissibilidade de jurisdição compulsória da Corte.

Percebe-se, dessa forma, que os Estados Unidos se utilizaram (e utilizam) o Direito Internacional enquanto mecanismo político e econômico para autodeterminar sua hegemonia internacional, evidenciada por seu status de membro permanente do Conselho de Segurança.

Usos do DIP

Desde seu início, o governo de Donald Trump demonstrou seu claro desprezo pela ordem jurídica internacional. A campanha eleitoral fundamentada na discriminação de minorias, principalmente pelo projeto de construção de um muro com o México, a sistemática violação de direitos humanos nas detenções de crianças refugiadas, a intenção do governo americano de tirar sua assinatura do Acordo de Paris, a indeterminação das políticas de contraterrorismo do governo Trump no Afeganistão, no Iraque e na Síria, resultando em um perigo cada vez maior de a população civil ser atacada, são medidas que evidenciam como o governo norte-americano relativiza suas abordagens do Direito Internacional, fundamentadas em suas próprias políticas de Estado.

Historicamente, o Direito Internacional nasceu com o Direito do Mar, no intuito de combater atos de pirataria em alto-mar. Assim, atos de sequestro de navios geraram grandes discussões históricas no Direito Internacional, sendo fundamentais para o desenvolvimento do jus gentium. Hugo Grotius, considerado o “pai do Direito Internacional” (visão, atualmente, contestada por inúmeros juristas), definiu o princípio de direito costumeiro internacional de liberdade de navegação, em alto-mar, a partir do sequestro de um navio português pela Companhia das Índias Orientais Holandesas. No intuito de defendê-las, Grotius desenvolveu uma teoria fundamentada na legítima defesa para entes não-estatais, entre eles a Companhia, poderem recorrer à força contra violações ao direito natural que, no caso em questão, seria a violação ao princípio de liberdade de navegação do navio holandês, pelo navio português.

O desenvolvimento do Direito Internacional, em conjunto com os direitos humanos, proporcionou a veemente condenação de sequestros indiscriminados de navios por outras nações dentro do ordenamento jurídico internacional. Dessa forma, os atos unilaterais de força cometidos pelo Irã, contra navios estrangeiros, violam o princípio de passagem em trânsito dos estreitos, positivado pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, em sua seção 2.

Ao ameaçarem o Irã, porém, os EUA não o fizeram em defesa direta da ordem jurídica internacional, e sim como parte da agenda política norte-americana de rivalidade com Teerã, evidenciada pela saída norte-americana do Acordo Nuclear, realizado previamente entre os dois países no âmbito do Joint Comprehensive Plan of Action. Conforme postulado por Grotius, o presidente Trump usou o Direito Internacional para defender uma pretensa legítima defesa, ou seja, uma justificativa para o uso unilateral da força contra o Irã.

Ao construírem sua política externa, os Estados Unidos reconhecem sua atuação internacional e política forte enquanto membro permanente do Conselho de Segurança. A ordem internacional do pós-Segunda Guerra Mundial, evidenciada pelo estabelecimento das Nações Unidas em 1945, está fundamentada, contudo, na importância da defesa e da preservação do multilateralismo enquanto ferramenta essencial para a promoção de uma ordem internacional equilibrada e pacífica.

Medidas e posições unilaterais radicais, historicamente implementadas pelos Estados Unidos, demonstram como a ordem internacional multilateral ainda não está solidamente fundamentada, gerando uma ameaça para a segurança internacional. Deve-se compreender: o poder político e econômico norte-americano não pode significar um poder de dizer o Direito, mas, antes de tudo, uma obrigação de respeitar o Direito.

 

Hannah de Gregório Leão é graduanda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), membro do PILLS (Public International Law Litigation Society) PUC-Rio e pesquisadora do Programa de Educação Tutorial (PET) do Departamento de Direito da PUC-Rio na área de Direito Constitucional. Texto revisado por Tatiana Teixeira.

** Texto de 21 dez. 2019.

Redação

1 Comentário

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  1. Em 1813 já faziam lambanças em terras alheias: afundaram a fragata inglesa Java, com consequente morte de marinheiros e seu capitão.
    Seria compreensível se em domínio inglês ou das ex-colônias recém libertadas, o que não ocorreu: FOI EM ÁGUAS ESTRANGEIRAS, porque na baía de Todo os Santos, passando por cima de neutro império português, ainda no comando do Brasil.
    “Se quero, posso; se posso, faço”! Assim tem sido. Sem limites.
    (Anais da BN-Rio, vol. 68, p. 186. Rio, 1948).

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