O mito é uma sátira inglesa do século XVII, por Fábio de Oliveira Ribeiro

No século XVII a pessoa do Rei era intocável. Ele era escolhido por Deus. Naquele contexto, desafiar a autoridade real equivalia a cometer uma heresia.

Hogarth

O mito é uma sátira inglesa do século XVII

por Fábio de Oliveira Ribeiro

“Of all the plagues with which this world abounds
Our discords causes, wid’ners of our wounds,
Sure woman, mankind early ills did taste;
She was the world’s first curse, will be the last”
(Court Satires of the Restoration, John Harold Wilson, Ohio State University Press Columbus, USA, 1976, p. 63)

Assim começa a sátira An Essay of Scandal (Summer, 1681) em que o poeta sugere que a pobreza do Rei Charles II é causada pela suas amantes. Ele aconselha o Rei a se livrar delas e arrumar cachorrinhas mais baratas. O poeta parece acreditar que seu conselho será seguido.

O texto compara a mulher às pragas que atormentam o mundo. Ela é a causa das discórdias e provoca feridas. A mulher foi a primeira maldição da humanidade e será a última.

A referência bíblica é evidente. Eva causou a queda do homem. Desde então ele é obrigado a sofrer as consequências da sedução de Adão.

É evidente que a sátira não faz qualquer distinção entre biologia e política. Todos os males do mundo são causados pela mulher, sem qualquer exceção. Os conflitos políticos são doenças venéreas que acometem a sociedade. Ambas tem a mesma origem.

A mulher é culpada porque faz o homem deseja-la. A primeira maldição que Eva lançou contra a humanidade continua a produzir efeitos no mundo. Os conflitos entre os homens são causados pela mulher.

Assim como provocou a Guerra de Tróia a mulher provocará um apocalipse nuclear… Não sejamos tão dramáticos. O poema é uma sátira. O poeta culpa as amantes do Rei por duas razões evidentes.

No século XVII a pessoa do Rei era intocável. Ele era escolhido por Deus. Naquele contexto, desafiar a autoridade real equivalia a cometer uma heresia.

O Rei não podia ser considerado culpado por seus atos. Quem tivesse a ousadia de atacar abertamente o Rei corria o risco de ser acusado e torturado até confessar o crime de lesa-majestade. A pena para esse crime era a morte.

Isso explica o fato do poeta atacar ferozmente as amantes do Rei. Elas seriam a causa dos problemas do reino. Removendo-as de sua companhia, além de economizar um bom dinheiro, o Rei apaziguaria o conflito político.

Ofender as amantes do Rei não é a mesma coisa que ofender a pessoa do Rei. O rebaixamento da mulher é um preço pequeno que o poeta deve pagar para preservar tanto sua cabeça quanto a autoridade real.

Todavia, a sátira é grotesca. O texto sugere que o Rei não é um homem excepcional e sim um homem qualquer. Ele também é um descabeçado governado pelas amantes que se esqueceu de governar o reino expondo-se à reprimenda do poeta.

Numa época em que o poder político e a pessoa do Rei estavam inevitavelmente identificados, ataques indiretos como o de An Essay of Scandal tinham um imenso poder corrosivo. Não por acaso, os ataques maldosos incessantes contra Maria Antonieta (ela era descrita como adúltera, ninfomaníaca insaciável, depravada, etc) ajudaram a destruir a monarquia francesa.

Porque resolvi falar desse assunto e não de outro? Bem… Se levarmos em consideração as ações desesperadas dos apoiadores do governo nos últimos dias, devemos concluir que Jair Bolsonaro casou com a pandemia. Os seguidores dele acreditam que a esposa do mito é inofensiva e o filho de ambos, o COVID-19, não fará mal a ninguém.

Nesse contexto, atacar a nova mulher do presidente é a mesma coisa que atacar o poder presidencial. A ciência, sempre tão séria e cheia de compostura, ganhou duas novas faces. No contexto em que nós estamos vivendo, em que os bolsomitos fazem carreatas a favor da pandemia e usam carros de som para pregar o fim do isolamento social, o discurso científico se tornou satírico. Quanto mais a ciência recomendar a rejeição do fim da quarentena mais ela será considerada politizada pelos bolsomitos.

Desacreditar a ciência não é a nossa tarefa. Além disso não é possível combater tanta irracionalidade com um discurso sério. Por isso resolvi apelar para a sátira da corte inglesa do século XVII.

“Of all the plagues with which this world abounds
Our discords causes, wid’ners of our wounds,
Sure 2020 pandemic, Brazilian early ills did taste;
She was the Bolsonaro’s first curse, will be the last”

Os apoiadores de Bolsonaro agem como se ele fosse um Monarca absoluto escolhido por Deus. Eles acreditam que a palavra dele é Lei e está acima de qualquer consideração científica. Impossível dizer quantos bolsomitos estão dispostos a morrer nessa pandemia para provar que Bolsonaro está certo. Quanto a mim, ficarei em casa observando tudo e rindo deles.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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