O mundo zero de valores humanos: a sociedade incivil, por Arnaldo Cardoso

Como diz o resumo da chamada para o encontro “por trás do fascínio que produzem, hoje as imagens transformaram a captura do olhar em mercadoria, constituindo-se em cifras de tensões e disputas econômicas e políticas”.

O mundo zero de valores humanos: a sociedade incivil

por Arnaldo Cardoso

Ainda com as imagens reverberando a bizarra manifestação de reavivamento de fantasmas do passado ocorrida no último 7 de setembro, um encontro luminoso foi realizado na última quinta-feira (9), em formato digital, por iniciativa da professora doutora Lucia Santaella da cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP) reunindo os intelectuais Giselle Beiguelman (FAU USP), Eugênio Bucci (ECA e IEA USP), Massimo Di Felice (ECA USP), Carlos Vogt (UNICAMP) e Muniz Sodré (UFRJ e IEA) em que cada um expôs sua interpretação do momento político e social brasileiro.

Sob o título “Admiráveis Pensamentos Novos” os participantes – todos com livros publicados recentemente – trouxeram para a discussão achados importantes de suas investigações.

Um dos principais pontos em comum entre as diferentes exposições, foi a preocupação com o lugar das imagens na vida cotidiana contemporânea, considerando-se a extraordinária escala de produção e circulação de imagens e especialmente de dados, o que tem configurado “uma estética da vigilância que alimenta, pelas vias do inconsciente digital, a superindústria do imaginário”.

Como diz o resumo da chamada para o encontro “por trás do fascínio que produzem, hoje as imagens transformaram a captura do olhar em mercadoria, constituindo-se em cifras de tensões e disputas econômicas e políticas”.

Superindústria do imaginário

O professor Eugenio Bucci, primeiro dos expositores, contou que sua pesquisa vem sendo desenvolvida há mais de vinte anos, desde o seu doutorado, e afirmou considerar importante a identificação de um conjunto de mutações no capitalismo e na ordem das imagens. Ele sublinhou algumas substituições muito específicas, “o corpo da mercadoria foi substituído pela imagem da mercadoria”, essa pode ser tida como a primeira mutação. “O corpo da mercadoria (que em Marx é descrita como um objeto externo e corpóreo, donde extrai-se a noção de uso) é hoje um dispositivo que transporta o signo da mercadoria. O capital aprendeu a fabricar o signo e a imagem”.

A segunda mutação é que “a mercadoria interpela o sujeito pelo desejo, não mais pela necessidade”. E a terceira mutação é a “transformação do olhar em trabalho. O olhar deixa de ser apenas uma janela de entrada por meio da qual os apelos do imaginário se projetam para dentro do psiquismo do sujeito buscando acarretar efeitos comportamentais […] O olhar deixa de ser um polo receptor, que passa a costurar significante e significado […]. O olhar é requisitado pelo capital não apenas como porta de entrada para o acesso de desejo do indivíduo, mas como uma força de constituição de signos”. O professor Bucci concluiu avaliando que “Nós não estamos no capitalismo pós-industrial mas superindustrial, no qual as relações de produção ocuparam outros espaços”.

Em uma “incessante produção superindustrial de signos, a comunicação fabrica signos e de modo expandido fabrica o imaginário. […] A comunicação é essa fábrica. […] Os aplicativos precisam ser pensados como meio de produção. Todo aquele que aciona essas funcionalidades toma lugar na linha de produção do imaginário. […] Trabalho estendido pelo qual não recebem um tostão. […] Abastecem esse imaginário insaciável”.

A experiente professora Giselle Beiguelman, autora do recente livro “Políticas da imagem: Vigilância e Resistência na Dadosfera” primeiramente resgatou que “a arte é uma forma de pensar o mundo e um exercício de tensionamento do real”. Informou que no livro, composto por ensaios que abordam obras de autores diversos, “os seis principais ensaios dividem um pressuposto comum: as imagens se tornaram os elementos principais da mediação do cotidiano e ocupam o centro da comunicação”. Com inequívoca pertinência a professora asseverou que “as imagens se tornaram o próprio campo das tensões políticas atuais”. Compartilhando suas reflexões ela abriu trilhas para pensarmos “a dadosfera que nos habita”; “as pressões pela auto exposição nas redes sociais”; o papel das mídias digitais na “construção do espaço público” e os novos “formatos de exclusão”.

Sobre o que chamou de “colonialismo dos dados” discorreu sobre como ele “cria novas formas de violência expandindo o colonialismo histórico”. Sugeriu a existência de uma nova “eugenia maquínica do olhar” em que “só se vê o que está predeterminado pelos algoritmos”, por uma “cultura das imagens algorítmicas”.

Políticas da imagem

Enfrentando a complexidade e sofisticação da problemática a professora Beiguelman lançou luzes para a compreensão de que estamos lidando “com imagens invisíveis que vem pelo nosso olhar e que nos veem. Imagens que os nossos corpos selam em bancos de dados sobre os quais não temos o mínimo controle. A transformação do corpo como imagem, imagem que se torna o nosso corpo e esse corpo a nova senha do mundo digital”.

Mesmo com o reduzido tempo para exposição, a professora não se furtou ainda de falar sobre os “novos negacionismos mediados pelas fake news” e a “instrumentalização das redes pelas direitas nacional e internacional”. Também refletiu sobre o que vivemos nesses quase dois anos de pandemia, quando “todos fomos transformados em imagens”.

Giselle Beiguelman concluiu sua fala defendendo que “É fundamental pensar uma outra ecologia midiática, que já não diz mais respeito aos meios em si, mas a um outro entendimento da ecologia propriamente dita, onde as imagens ocupam centralidade inegável com mecanismos de operação central desse datacolonialismo que se ergue a partir de imagens invisíveis, a um custo social sem precedentes na história”.

Cidadania digital

Na sequência o professor Massimo Di Felice, autor do livro Cidadania digital, que apresenta “uma relação entre as importantes transformações que vivemos e a crise das formas ocidentais da política, destacando a necessidade de nos abrirmos às novas formas de participação, interação e governança” concentrou sua atenção na crise ocidental da democracia vivida no Brasil, Estados Unidos, Europa e alhures, uma crise sobretudo de representação.

O intelectual que é italiano, graduado em Sociologia pela Università degli Studi La Sapienza, de Roma, e pós-doutor pela Université Paris Descartes V, Sorbonne, e viu o nascimento em seu país do primeiro partido digital (M5S) e a chegada de um político (Matteo Salvini) da extrema direita no comando do país, e agora assiste uma versão piorada no Brasil, país onde decidiu viver, compartilhou sua reflexão acerca da crise da democracia liberal representativa e os “fundamentos que entraram em crise com o advento da conectividade”.

Di Felice propôs uma problematização a partir do reconhecimento de que “na ideia de democracia ocidental, ideia que funda o seu pressuposto no convívio entre humanos/sujeitos, isso resulta obsoleto diante do protagonismo de não-humanos”. Entre esses outros protagonistas não-humanos, o coronavírus seria um deles – agente biológico, e também social econômico e político –. O professor apontou como outros protagonismos as mudanças climáticas e os dados e algoritmos, explicando sobre esse último que “não é o protagonismo da técnica, mas sim de uma dimensão informativa, do processo da sequência de dados, que é superior ao processo material do objeto. Cria novas matérias e organismo e é capaz de alterá-los”. Quanto a esse último protagonismo “ele só foi percebido pelo processo de datificação”. Isso tudo implica, segundo o professor, em um “processo de decisão hiper complexo, envolvendo entidades diversas em interpelações”.

Massimo Di Felice encerrou sua exposição com o entendimento de que “a crise das democracias ocidentais depende de que sejam buscadas novas categorias e paradigmas que criem novas governanças para enfrentar esses novos problemas” para impedir “que as crises da democracia não evoluam para novas ditaduras e totalitarismos”.

Recordando Victor Hugo “cada um tem sua forma de olhar a noite” Di Felice concluiu dizendo que prefere “olhar a noite enxergando as estrelas”.

Por último, assumindo a tarefa de fechar esse extraordinário encontro dialogando com sua obra e com as excelentes contribuições dos colegas que o precederam, o professor Muniz Sodré nos falou sobre os elementos da realidade que sustentam o conceito de sociedade incivil e, com fala franca e destemida, analisou o presente fazendo uso de conceitos e memória histórica.

Sociedade incivil

Mostrando preocupação com certos recursos utilizados pelos analistas para interpretação do que se deu no último 7 de setembro no Brasil, o professor Muniz passou pelos conceitos de dezembrismo, lumpemproletariado, lembrou o Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, para afirmar que “fenômenos dezembristas emergem na história quando se elimina a política das mediações na sociedade” e acrescentou “o populismo produz isso”. Conectando com o conceito central de seu último livro ressaltou que “a sociedade incivil não é apenas isso mas tem muito a ver com isso”.

Ainda sobre o conceito de sociedade incivil esclareceu “no geral significa ordenamento humano controlado por um capital cada vez mais abstrato com relação ao real histórico. Com tecnologias que desestabilizam as formas clássicas de representação do mundo, fazendo ressurgir imagens (fantasmas) do passado”.

Retomando o pensador alemão da política Carl Schmitt, Muniz salientou que “ele antecipava o esvaziamento da democracia representativa, da sociedade civil” em livros como “A crise da democracia parlamentar” e “O conceito do político”. Acrescentou que “a sociedade incivil sempre esteve aí (a falada no livro) com o esvaziamento das instituições. É o mundo zero de valores humanos, mais que morais. Esvaziamento institucional. Instituições são feitas de gente concreta. É fora das instituições que nascem as aberrações do dezembrismo”.

Transitando com admirável propriedade e desenvoltura, o professor Muniz Sodré, que é graduado em Direito, mestre em Sociologia, doutor em Letras e livre docente em Comunicação, lembrou a todos que “a comunicação é uma macroforma de reorganização do mundo” e asseverou que hoje “o corpo está convertido em tela. […] Uma aderência mais estética que racional. […] A ascensão da estética na vida comum, vem sendo apontada pelos sociólogos que procuram mostrar a enorme diferença entre o aspecto técnico e o dispositivo cultural da comunicação. A estética se desenvolve como uma forma existencial abrangente. Em princípio toda estética altera percepções. A estética é capaz de dispor de outra forma a realidade”.

Muniz alerta que “o social da rede é um efeito dos algoritmos, feito por engenheiros e físicos. A sociabilidade de plataforma é uma produção técnica que gera simulacros participativos. […] Se trata de uma nova cidade. Não uma nova polis mas uma nova orbis. […] A rede é uma cidade sem cidadania, em que todos os habitantes estão juntos, mas humanamente separados. A cidadania que serve hoje de referência é a cidadania consumidora”.

E prosseguiu Muniz na sua áspera e precisa leitura do real “a economia de mercado se transforma em sociedade de mercado. O consumo passa a definir a agenda pública. Só na sociedade incivil o consumidor pode ser definido como cidadão. O sujeito com simulacro de grupo. […] Na ausência de mediação política se reedita de modo diverso o pior do passado. O mundo zero de valor, o mundo zero institucional”.

Conversações

Após todos os expositores compartilharem reflexões entre si e com a audiência – que dada a pertinência dos problemas tratados e a facilidade do acesso deveria ser muito maior que as duas centenas de conectados – teve sequência uma série de comentários e complementos de ideias.

Merece destaque a observação do professor Muniz Sodré tendo em perspectiva as manifestações bolsonaristas do 7 de setembro em que faz a seguinte crítica e mea-culpa: “os intelectuais se concentraram na inteligência e desprezaram a força da ignorância. George Orwell em seu romance 1984 criou o Ministério da Verdade, no qual se reconhecia o poder das palavras, onde guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”. Muniz ressaltou “A ignorância é a força. A direita sempre soube disso”.

Em seguida o professor comentou assim um deprimente vídeo de Whatsapp que viralizou no pós-7 de setembro “O sujeito chora emocionado diante de uma fake news que anuncia que Bolsonaro decretou estado de sítio. O sujeito absolutamente ignorante, emocionado com um estado de sítio não existente. Vivemos uma democracia de emoções não de razão”.

Da professora Giselle Beiguelman destaco a frase que sintetiza bem o problema da overdose de imagens a que somos submetidos e colaboramos na produção e circulação “A metástase das imagens gera formas de cegueira e de invisibilidades”.

Depois de uma menção à série de televisão The Walking Dead – que narra a história de um grupo de sobreviventes em um mundo pós-apocalíptico habitado por mortos-vivos – todos compartilharam da impressão de que no 7 de setembro os manifestantes “carregavam defuntos”. “As bandeiras do passado, de coisas hoje inexistentes que convergem para a ignorância”. A ideia assombrada de comunismo é um cadáver carregado pelos bolsonaristas. São similares aos trumpistas nos Estados Unidos, que também são absolutamente ignorantes, independente de grau de escolaridade e classe econômica.

Aqueles que como eu integraram a audiência desse encontro, que agora relato, tiveram a oportunidade de apreciar os frutos maduros de uma experiência colaborativa, pertinente, qualificada e responsável de compartilhamento de ideias e saberes na tentativa de compreensão da realidade, dias após ela ter se mostrado em sua forma mais degenerada.

A professora Lucia Santaella, organizadora do encontro, informou que está escrevendo um livro “de ocasião” no qual investiga de onde vem o poder da mentira, cuja primeira resposta é: da ignorância. Emendou constatando “a ignorância chegou ao poder no Brasil”.

Dirigindo-se aos colegas expositores saldou a persistência do exercício da “inteligência benigna” que com altivez se defronta com a arrogância da ignorância de uma “sociedade incivil” e com o “fim de um mundo” que vê suas formas de representação desmoronando.  

O encontro “Admiráveis Pensamentos Novos” está disponível no Youtube através do link https://www.youtube.com/watch?v=BPNd71Zz18U

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) é também escritor e professor universitário.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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