O natal em Bruzundanga ou as festas na República que não foi, por Alexandre Filordi

O natal em Bruzundanga ou as festas na República que não foi

por Alexandre Filordi

Carne de vaca não come o pobre, qualquer dia não come pão. Embora tais versos possam ser um retrato do Brasil de 2020, na verdade eles são uma amostra das camadas profundas e perversas que sedimentam a condição do povo dessas latitudes. Artur Azevedo, publicou-os em O Tribofe, em 1892, assinalando o descaso da recém República com o povo.

Como lemos em Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, obra genial de José Murilo de Carvalho, a República brasileira nasceu sem o protagonismo do povo. Este, por sua vez, “assistira a tudo bestializado”. Também aprendemos ali que “o novo regime pareceu uma autêntica república de banqueiros, onde a lei era enriquecer a todo custo com dinheiro de especulação”. Mais ainda, naquela República havia “frequente nomeação de prefeitos e chefes de polícia totalmente alheios à vida”, indicando franco “caminho para o autoritarismo” à la tupiniquim. Algo mudou?

A eclosão da República brasileira, não podemos esquecer, teve seu lastro cúmplice com algumas conveniências aristocráticas e oligárquicas do próprio Brasil Império. Por exemplo, o direito de voto, na Constituição de 1891, fora concedido apenas “a quem a sociedade julgava poder confiar sua preservação”. Por isso mesmo, ainda na explicação do professor Murilo de Carvalho, “no Império como na República, foram excluídos [da vida política] os pobres (seja pela renda, seja pela exigência da alfabetização), os mendigos, as mulheres, os menores de idade… Ficava fora da sociedade política a grande maioria da população”. Daí essa sacada irônico-cortante: a República brasileira não foi, exceto por imaginário político.

Ocorre, porém, que esse imaginário político ainda exclui o povo e pouco está se lixando se Carne de vaca não come o pobre ou se qualquer dia não come pão. A história do Brasil é um longo trajeto de processos de exclusão social que se ajusta ao imaginário político de ocasião, claro está, desde que se favoreçam aos que se enriquecem por especulação ou consorte de interesses.

Se mencionarmos inflação, por exemplo, o mais cruel não será encontrado em índices. Mas adentre em um supermercado e veja um produto qualquer. Em sua maioria estará escrito: novo peso: de 400g para 360g (Menos 40g ou 10%). Há casos de metragem também, basta-nos ver o papel higiênico. O que é tungado do povo, nessa situação, não se contabilizada no imaginário político de plantão. Os preços, ainda que mantidos, tiram com outra mão volumes, medidas e unidades em 10%, 12%, 15%, 20% etc. Que justificativa há para esse saque sorrateiro, para além de maquilar a desnutrição geral do poder aquisitivo? Há os que se enriquecem com isso, enquanto o povo segue prejudicado acintosamente. E o que é feito, além de se continuar a subtração?

Esse cenário poderia ser um capítulo à parte de Os Bruzundangas, de Lima Barreto. “A indústria nacional da Bruzundanga tem por fim espoliar o povo com os altos preços dos seus produtos”.  Publicado em 1917, Os Bruzundangas é quase uma etnografia dos processos de exclusão da sociedade brasileira, interpostos por um éthos refletido nos modos pelos quais operam seus “mágicos financeiros”, seus “doutores de palpite” da elite, sua cacofonia política em que “não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado”, além dos que agem por “passes de mágicas intelectuais”, justificando misticamente tudo.

Seguramente Bruzundanga, essa sim, é a República que foi. Eivada por aqueles que “só querem a aparência das coisas”, em Bruzundanga “não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao âmago das coisas que fingem amar”. Ato contínuo: “não há como discutir com eles, porque todos se guiam por ideias feitas, receitas de julgamentos e nunca se aventuram a examinar por si qualquer questão, preferindo resolvê-las por generalizações quase sempre recebidas de segunda ou terceira mão, diluídas e desfiguradas pelas sucessivas passagens de uma cabeça para outra cabeça”.

Não seria exagero tomar tudo isso como decalque da realidade atual. Acostumados a ignorar a realidade, o povo de Bruzundanga, ainda crentes que a política se faz é pelo outro-especialista e não pela cidadania, festeja o Natal para renovar as crenças subsequentes para seu porvir. Ali não se tem carne, pois cara está, mas se tem osso para roer; não se tem a impressão de inflação galopante, mas se têm produtos subtraídos a preços mantidos; não se têm somas de dias melhores, mas ao menos, e apesar dos 188 mil mortos por uma pandemia que assola Bruzundanga, alguns, ao menos, ainda têm dias.

Por outro lado, quando há em Bruzundanga ciência de contestação e de contraprovas, prevalecem-se as “ideias feitas”; quando há verdades que denunciam e incomodam, inclusive por jornalistas que são ameaçados e perseguidos, os bruzundanguenses recorrem ao “Messias anunciado para salvar a Bruzundanga” cujos outros “jornalistas, grandes e pequenos, não o deixam, elogiam-no, dão-lhe o retrato nas folhas; e ele autoriza a publicação de atos oficiais do governo, cujas contas o erário departamental paga generosamente aos seus jornais e revistas”.

No espírito do tempo, o Natal de Bruzundanga é o momento de desejar algo feliz aos seus semelhantes. Contudo e de fato, ninguém sabe lá definir o que é ser feliz, porém, sabem que a felicidade depende dos préstimos de como vão os bruzundanguenses se adaptando à realidade, conforme o imperativo do cada um por si e eu contra todos. “Quem não tem dinheiro não vale nada, nada pode fazer, nada pode aspirar”, em Bruzundanga”. Se lá “a brutalidade do dinheiro asfixia e embrutece as inteligências”, a consequência não poderia ser outra: “Não há lá independência de espírito, liberdade de pensamento”. O infeliz, no caso, é aquele que quer mudar Bruzundanga.

“É bom não termos que ver, na minha querida Bruzundanga, aquela cena que a nobreza de sangue provocou, e Taine, no começo de sua grande obra Origens da França Contemporânea, descreve em poucas e eloquentes palavras. Eu as traduzo:

Na noite de 14 para 15 de julho de 1789, o Duque de Laroche-Foucauld-Liancourt fez despertar Luiz XVI para lhe anunciar a tomada da Bastilha.

– É uma revolta? – diz o rei.

Sire – respondeu o duque –, é uma revolução.”

Quem sabe, em Natal futuro, Bruzundanga não esteja se felicitando ao ver um novo despertar. Enquanto isso, retomemos os versos de Artur Azevedo:

Das algibeiras some-se o cobre,

            Como levado por um tufão:

            Carne de vaca não come o pobre,    

            Qualquer dia não come pão.

            Fósforos, velas, couve, quiabos,

            Vinho, aguardente, milho, feijão,

            Frutas, conservas, cenouras, nabos…

            Tudo se vende pr’um dinheirão!

Alexandre Filordi (DED/UFLA)

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