“O ódio deitou no meu divã”, por Eliane Brum

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

O presidente do PSL em coletiva de imprensa no dia 7 (ANTONIO LACERDA EFE)

do El País

“O ódio deitou no meu divã”

por Eliane Brum

Relatos de psicanalistas revelam a violência que cresce e se infiltra no Brasil com a possibilidade de Jair Bolsonaro chegar à presidência da República

– E aí, seu viadinho de merda, já viu as pesquisas? Vai aproveitando até o dia 28 pra andar de mãozinha dada, porque, quando o mito assumir, acabou essa putaria e você vai levar porrada até virar homem.

Depois, é a menina que já entra chorando e me diz:

— Sil, me ajuda… não sei o que fazer… você não vai acreditar no que aconteceu comigo hoje… Eu estava na escola e fui pegar um livro no meu armário… Tinha uma folha de papel…

Aí ela me mostra uma foto no celular, porque entregou a tal folha na diretoria, com esta mensagem aqui:

– Achou mesmo que era só sair gritando #elenão pra parar o bolsomito, feminazi??? Perdeu, escrota!! E daqui a pouco você vai ter motivo pra gritar de verdade!!!

O relato, feito pelas redes sociais, é da psicanalista Silvia Bellintani, pouco antes do primeiro turno das eleições. Devidamente autorizada pelos pacientes, ela conta o que escutou de dois deles no seu consultório, numa mesma tarde: ele, homossexual, 19 anos; ela, heterossexual, 17 anos, feminista.

Nos últimos dias, começaram a circular posts de psicanalistas e psicólogos que decidiram levar para o debate público o que escutam no seu consultório. Sem expor os pacientes, mas apontando o que vem acontecendo na sociedade brasileira apenas pela possibilidade, bastante grande, de um homem como Jair Bolsonaro, defensor da ditadura, da tortura e da violência, assumir a presidência do país.

“Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos”

Em um post intitulado “Ser analista sob o ódio”, Ilana Katz escreveu:

“Alguém, dilacerado, conta que apanhou em casa por defender suas posições e, na sessão seguinte, outro alguém refere como fake news o que a colega conta sobre amigos homossexuais sofrerem agressões. Alguém diz que não pode votar em corrupto, xinga os corruptos, odeia os corruptos e se inflama ao dizer que as instituições da República vão controlar a misoginia e o racismo de Bolsonaro, e então renova seus votos. Entra depois a menina que sofreu constrangimento público no metrô por vestir #EleNão, e nem pessoa nem instituição nenhuma correu em seu socorro. Essas não são conversas de WhatsApp. Nas duas últimas semanas, o ódio deitou no meu divã e não saiu mais. Entra e sai gente: criança, adulto, adolescente, e esse é o tipo de afeto que circula. Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos”.

“Palavras que incentivam a negação absoluta do outro são como balas perdidas: encontrarão um ponto de parada para perfurar”

Várias instituições de psicanálise fizeram manifestos pela democracia –e contra a opressão representada pela candidatura de extrema direita. Entre elas, a Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano:

“A política da psicanálise se associa à ética do bem-dizer e nos leva a fazer frente ao discurso do ódio ao outro, em pleno Estado democrático. O discurso do analista deve circular na pólis e, quando nos dirigimos ao mundo, o silêncio do ‘terror conformista’ não nos cabe”.

Psicanalistas da Escola Brasileira de Psicanálise também posicionaram-se, propondo “um movimento de circulação de breves relatos do que tem sido escutado nas ruas do país sobre os efeitos nefastos que a ameaça do fascismo é capaz de provocar”. Em texto veiculado nas redes, afirmam:

“Quando o valor das palavras é banalizado, a ponto de o pior poder ser dito por um candidato à presidência da República, como se fossem apenas palavras ao ar, perdemos a noção de que estamos escrevendo, com elas, nossa história. Perdemos a noção de que palavras se cravam na história, nos ouvidos e nos corpos de um país. Palavras que incentivam a negação absoluta do outro são como balas perdidas: encontrarão um ponto de parada para perfurar. E nunca se sabe ao certo, de antemão, onde será. Não será sem consequências nos fazermos de surdos para o pior. Escutemos, pois”.

Em seguida, enumeram alguns relatos escutados nas ruas do Brasil nos últimos dias:

“Uma amiga estava amamentando seu filho, que tem menos de um ano, em uma padaria próxima à sua casa, quando passaram dois caras e um deles gritou, olhando pra ela: ‘Quando ele ganhar, essas vagabundas não vão mais poder fazer isso!’”;

“Um casal de meninas anda na rua e ouve de um passante: ‘Aproveita, porque o 17 vem aí!’”;

“Depois de uma longa conversa com alguém, na tentativa de argumentar contra o que representa o ‘Coiso’, o alguém perde os argumentos e enuncia a verdade velada. ‘Ah, quer saber, foda-se se ele defende a tortura. Comunista pode ser torturado!’”;

“Meu enteado andando na rua com camiseta da faculdade (UERJ) ouviu de cinco homens passando de carro: isso vai acabar quando o mito ganhar, você estuda nessa merda e nunca vai ganhar dinheiro”;

“Minha filha, ontem, na saída da escola, foi abordada por um cara, que, por conta do adesivo do Haddad, que ela trazia colado na camisa, mandou essa: ‘Fica esperta que eu sou do exército Bolsonaro que esfola comunista'”.

A crise no Brasil não é só política e econômica, mas uma crise da palavra

Tenho escrito há anos que a crise do Brasil não é só política e econômica, mas uma crise da palavra. Quando tudo pode ser dito, nada mais diz. As palavras, no Brasil, se tornaram palavras fantasmas, porque nada movem. Essa realidade ficou explícita quando Jair Bolsonaro, ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, homenageou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos mais sádicos torturadores da ditadura, responsável pela morte de pelo menos 50 pessoas e pela tortura de centenas –e nada aconteceu.

Nesta eleição, seus filhos e apoiadores vestiram camisetas com o rosto do torturador e as palavras “Ustra vive!” – e, mais uma vez, nada aconteceu. Enquanto isso, mães ainda choram por seus filhos assassinados por Ustra – e mulheres torturadas por ele, que levaram choques elétricos nos seios e vaginas e tiveram baratas e ratos enfiados nos seus corpos, ainda acordam gritando à noite.

Se as palavras se tornam cartas extraviadas, cartas que não chegam ao seu destino, o diálogo é interditado, e o ódio se instala. O fenômeno Bolsonaro pode ser compreendido também a partir do esvaziamento das palavras. É uma resposta possível para o fato de que quase 50 milhões de brasileiros foram capazes de votar em alguém que diz o que Bolsonaro diz. Muitos deles, inclusive assistindo a vídeos em que ele diz o que diz, negam que ele disse o que diz. Veem, mas não veem. Ouvem, mas não escutam.

Sem diálogo, as palavras perfuram os corpos. É urgente que as palavras voltem a dizer no Brasil –ou elas serão cada vez mais balas perdidas. E sabemos que balas perdidas acham corpos. É este o movimento dos psicanalistas que escolheram não se omitir neste momento de tanta gravidade para o Brasil, certamente o momento mais grave da história recente do país, talvez o momento mais grave desde o golpe de 1964.

Algo muito profundo, muito tenebroso, se infiltra mais e mais nos ossos deste país

ódio ao PT, explicação dada por parte dos que votam em Bolsonaro e por muitos que pretendem votar em branco ou anular o voto ou se abster de votar não é a doença, mas o sintoma. Algo muito profundo, muito tenebroso, se infiltra mais e mais nos ossos deste país. É no divã dos psicanalistas, em que a palavra tem espaço e carne, que essa escuridão emerge em todo o seu horror.

Ao iniciar o seu relato, Silvia Belintani afirma: “Eu poderia dizer que estou sem palavras para descrever o que testemunhei hoje no meu consultório. Mas tive o dever de encontrá-las, para não deixar que algo assim, gravíssimo, fique sem registro”. E, mais adiante: “O cenário das eleições sequer foi definido, mas já encoraja o sadismo e promete ser palco do terror. Fico imaginando o que vem pela frente”.

Em seu post, Ilana Katz faz uma análise profunda sobre o papel de um analista também neste momento (abaixo reproduzo o post). E afirma: “O antipetismo é um dos nomes para o ódio. De novo, palavras que encurtam o dizer: autocrítica, criminoso, preso, poste. São palavras que falam de todos e de tudo ao mesmo tempo. Mas, o que dizem para quem diz de quem diz?”

E termina:

“Por força e por exercício do ofício, um psicanalista não pode recuar no espaço público diante da ameaça à democracia. Não pode se curvar ao ódio, e não deve responder especularmente ao ódio. Para que os odiadores e os odiados possam seguir se deslocando de seus lugares e posições, para que possamos achar palavra e movimento, hoje desdobro minha condição de psicanalista em direção à cidade para dizer #DemocraciaSim”.

“SER ANALISTA SOB O ÓDIO”

Alguém, dilacerado, conta que apanhou em casa por defender suas posições e, na sessão seguinte, outro alguém refere como “fake news” o que a colega conta sobre amigos homossexuais sofrerem agressões. Alguém diz que não pode votar em corrupto, xinga os corruptos, odeia os corruptos e se inflama ao dizer que as instituições da República vão controlar a misoginia e o racismo de Bolsonaro e então renova seus votos. Entra depois a menina que sofreu constrangimento público no metrô por vestir #EleNão, e nem pessoa nem instituição nenhuma correu em seu socorro.

Essas não são conversas de WhatsApp.

Nas duas últimas semanas, o ódio deitou no meu divã e não saiu mais. Entra e sai gente: criança, adulto, adolescente, e esse é o tipo de afeto que circula.

Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos. Ouço as histórias, tento escutar, procuro as sutis diferenças. No esforço de escutar esses sujeitos, brigo comigo para abandonar o ritmo do WhatsApp. Aqui, assim como lá, não há trégua porque não há outro tema. Há odiados e odiadores. E eu aprendo, mais uma vez, que ódio varia pouco, e permite poucas variações também.

As palavras, em looping, não permitem que o sujeito possa se dizer. São as mesmas palavras que ocupam o discurso de uns (corrupção-ladrão- quadrilha-dinheiro-justiça. Eu-não-sou-idiota), e o mesmo medo que distribui os termos dos outros (fascismo-direitos sociais-apanhar-fugir-lutar. Medo-pânico-medo).

O antipetismo é um dos nomes para o ódio. De novo, palavras que encurtam o dizer: autocrítica, criminoso, preso, poste. São palavras que falam de todos e de tudo ao mesmo tempo. Mas, o que dizem para quem diz de quem diz?

O estancamento do dizer é uma tarefa do analista na clínica. É preciso fazer isso trabalhar. É preciso procurar a ligação particular entre esses termos em cada história. Drenar o ódio e oferecer a chance da subjetivação das experiências. Como direção, tocar o gozo, alçar responsabilidade subjetiva.

Por força e exercício do ofício de psicanalistas, sabemos o que a palavra quer dizer como possibilidade para o sujeito e para suas formas de laço. Para que seja possível um viver com os outros. É assim que aprendemos que psicanálise e democracia se fazem valer do mesmo princípio condicionante, que é a circulação livre das palavras. A diferença entre clínica e espaço público guarda a também fundamental diferença dos níveis de tratamento que a palavra que circula deve receber. A tão famosa neutralidade do analista só vale se, sustentada no Desejo do Analista, garantir a possibilidade de que aquele que fala seja o mais livre possível na sua relação com o que diz.

No exercício do seu ofício, um psicanalista suporta, em sua clínica, a hiância entre o singular e o coletivo que o sintoma sustenta. Por força e exercício do ofício, um psicanalista se responsabiliza pelo que a psicanálise e a clínica lhe ensinam sobre o que é o controle do dizer, que é também o controle do pensar e do limite do gesto de um outro. Por força e por exercício do ofício, um psicanalista não pode recuar no espaço público diante da ameaça à democracia. Não pode se curvar ao ódio, e não deve responder especularmente ao ódio.

Para que os odiadores e os odiados possam seguir deslocando-se de seus lugares e posições, para que possamos achar palavra e movimento, hoje desdobro minha condição de psicanalista em direção à cidade para dizer #DemocraciaSim.”

(Ilana Katz, psicanalista, São Paulo)

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Faltariam divãs no país para

    Faltariam divãs no país para analisar tanta gente cheia de ódio, ressentimento e impulso violento dentro de si. Do outro lado, os desempregados, oprimidos e ameaçados estão chegando ao limite da resistência. É mais do que hora de todos os profissionais de saúde do Brasil se unirem num movimento suprapartidário em defesa da democracia e da vida humana. 

  2. Convido quem gosta de

    Convido quem gosta de psicanálise a dar uma espiada na série “O século do ego” (The century of the self, Adam Curtis, BBC, 2002), disponível nos melhores torrents do ramo, e com legendas nos melhores legenders do ramo, também.

    Será que o que vivemos agora tem a ver com a iniciativa privada induzir pessoas a transformarem-se de cidadãs em consumidoras? Qual a participação da propaganda comercial no fascismo que estamos vendo crescer? Datena e Sheherazade estão alinhados com o capital do dólar? E os produtos de firmas como a “Globo” e a “Band”? Quanto desses produtos é do tipo que, se espremer, sai sangue? E a participação de Aloysio “quer-ver-Dilma-sangrar” Nunes Ferreira? O que a truculência que teremos que amargar – porque não se estirpa a violência e o terror das pessoas de um dia para o outro – durante uns bons anos tem a ver com a imaturidade, inconsequência e impulsividade tão queridas por quem quer vender? É possível a iniciativa privada gerir o estado, por exemplo através de Dórias e Alckmins, e ainda assim haver estado democrático?

  3. O ódio e o divã

    Ódio contra quem não quer o PT não é resposta. Não sou fã de extremismo , nem de direita nem de esquerda. O Brasil analfabeto funcional entende somente o populismo desses extremos na hora do voto. Infelizmente  essa maioria de cidadãos obrigou-nos a escolher dentre aqueles que jamais quereríamos escolher. Eu por convicção não posso aprovar um regime totalitário de esquerda que , aliás , se apresenta a luz do dia através de seu próprio programa de governo ( PT ) depositado na justiça eleitoral . Do outro lado há a direita de Bolsonaro que é incerta mas que não proclama em seu programa de governo nenhuma arbitrariedade como o programa de governo petista faz ( ex. Convocação de “notaveis” para o judiciário , aposentamento do “poder” por “grupos sociais “ , etc …). 

    O respeito à constituição de 1988 deveria ser clara para ambos mas na verdade não é assim. O meu candidato era Alckimin ou Amoêdo. Eu , assim como outros poucos milhões de brasileiros que não são nem analfabetos funcionais e nem extremistas teriam preferido não chegar a esse triste dilema. Não é ódio , mas aversão completa que sinto pelo PT é por essa razão sou obrigado a votar Bolsonaro. 

    Existem muitos brasis e muita estratificação cognitiva e cultural dentro do país. Como poderíamos propormo-nos como nação se somos assim tão diferentes ? 

    Talvez se fôssemos uma federação de estados onde o poder central fosse menor e o poder local maior nós pudéssemos enfrentar melhor nossas próprias contradições valorizando nossas tradições e nossa cultura local . Um país de dimensão continental como o Brasil merece ter maior autonomia regional para não sermos colocados , novamente , entre a cruz e a espada . 

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador