Antonio Helio Junqueira
Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.
[email protected]

O pão nosso de cada dia! Sobre “pãodemias”, fermentos e motoboys, por Antonio Hélio Junqueira

Diz o senso comum (ou apenas o bom senso, já não me lembro a diferença), que, ao ser feito, o pão assimila os humores, dores e calores de quem o amassa.

Foto Divulgação

O pão nosso de cada dia! Sobre “pãodemias”, fermentos e motoboys.

por Antonio Hélio Junqueira[1]

Virou moda, agora, todo mundo fazer pão. É um tal de trocar receita, fazer live, montar blog, postar foto em rede social…Tem até gente que já virou “bread influencer”, de tanto que demonstra entender das massas, dos amassos, dos assamentos, dos tempos das fermentações e sabe-se lá mais o quê que faça parte da arte e do ofício da produção caseira do pão!  Timelines agora se parecem com desfiles de moda de inusitadas e inovadoras padarias digitais.

Até psicólogo já deu depoimento sobre o fenômeno! Não apenas para nos convencer de que não estamos todos, afinal, nos transformando nos loucos e nas loucas do pão, mas para conferir sentido e dignidade à essa florescente e promissora indústria caseira. Para os anti-alienistas de plantão, fazer pão seria uma forma de experimentarmos (ou simplesmente acreditarmos que temos), algum tipo de controle sobre a loucura e a incerteza que tomou conta de nossos dias. Assim, o empreendimento farináceo, ao mesmo tempo que permite aflorar sentimentos de combate ao estresse, angústia, ansiedade e depressão, também colabora para fortalecer certa autoestima que assegura que ainda temos algum lugar no mundo. Santo pão!

Para quem não acredita assim sem mais nem menos nesse falatório, as estatísticas infalíveis do “Google Trends” confirmam: desde março, as receitas de pães caseiros passaram a ser as mais procuradas na internet, transformando-se em valiosíssimos “trend topics” – medida infalível do sucesso da exposição digital de qualquer tema, coisa ou pessoa –, mais do que dobrando o número de acessos em relação ao mesmo período do ano anterior. Se, no período pré-pandêmico, a busca por receitas de pães caseiros ocupava a modesta 8ª posição no ranking das pesquisas de dedicados cozinheiros e cozinheiras, durante a crise do coronavírus que atravessamos, ela conquistou, imbatível, o pódio, superando a caçada aos modos de preparo dos primos mais nobres como os bolos, os pães-de-queijo, os pasteis, tortas, panquecas, empadões, esfihas e lazanhas, entre outros membros da família trigal.

No Instagram, o número de postagens com a hashtag #pãodemia já ultrapassa a casa dos muitos milhares, feito até então conquistado apenas pelo fenômeno conhecido internacionalmente como “food porn”[2]. Não há o que negar: o pão se transformou no protagonista insubstituível da cozinha pandêmica.

Mas, as análises fenomenológicas não param por aí. O pão faz parte do universo de nossas memórias afetivas (pelo menos dos mais antigos e nascidos no interior). Reconecta-nos com as lides domésticas de amorosas  mães e avós, fornos a lenha e outras lembranças menos presentes ou até mesmo inexistentes para as gerações mais jovens, que já cresceram comendo insossos pães de forma empacotados. Trata-se daquilo que no jargão chic de um respeitável “connaisseur” se denomina “confort food”, algo assim como uma cozinha das memórias e dos afetos.

Em outra dimensão mais séria, temos que considerar que o pão é, por excelência, o alimento bíblico, das religiosidades ancestrais, da comunhão e da partilha. Não por outro motivo, o pão se transforma em hóstia, no corpo de Cristo, oferecido nos momentos mais solenes do irmanamento. O pão está presente em praticamente todas as culturas conhecidas, evidentemente que com pequenas variações de ingredientes, formas de preparo e tipos de cozimento. Mas no fundo, tudo não passa do mesmo bom e velho pão, assim como um tipo de “farinha do mesmo saco globalizada”. Tem pão que assa dentro do forno, outros assam por fora, como os naans indianos.  Tem pão que sequer leva fermento, como o pão ázimo, alimento da fuga da escravidão do Egito que constrói a base da tradição judaico-cristã, ao mesmo tempo que outros esbanjam as artes, ciências e técnicas da fermentação.  Na gastronomia brasileira contemporânea, deu, de fato, certa febre de fermentos e fermentações. É um desparrame de kombucha, kefir, tibico, jun, kimchi, levain e fermentados láticos de legumes, que não acaba mais.

No período quarentenário que atravessamos, o pão reassume, absoluto, a sua mediação religiosa. Se lembramos bem, a palavra religião vem do latim “religare”, que significa reconexão entre as dimensões do humano, demasiado humano, com o superior, o além, o transcendente. Assim, voltamos a amassar e assar pão para nos reabitarmos a nós mesmos, nos reconectarmos com nosso íntimo e nos congregarmos com nossos semelhantes, quer em casa, quer no Zoom, a plataforma digital queridinha da hora, organizadora dos cafés da tarde ou happy hours desse nosso infindável isolamento social.

Ao par de tudo isso, tenho cá eu meus próprios motivos para sovar o pão. Sim, porque me transformei em um exímio sovador de pão.

Nesses tempos bicudos, a sensação de poder bater forte e cadenciadamente em algo tem valor terapêutico. Não sou lutador de boxe, nem tenho os petrechos necessários para tanto. Mas a massa do pão revelou-se ótima substituta para o extravasamento de sensações reprimidas de frustação, raiva e desconsolo.  Já que não sou ema e não costumo bicar ninguém, descarrego no pão minha ira Amazônica, minhas apreensões democráticas, meu azedume quanto às incertezas intelectuais, culturais e educativas desse triste País.

Diz o senso comum (ou apenas o bom senso, já não me lembro a diferença), que, ao ser feito, o pão assimila os humores, dores e calores de quem o amassa. Assim, me preocupo muitíssimo em peneirar, contrapor e dosar minhas emoções, críticas, indignações e tresloucados arroubos antifascistas ao prepara-los. Se no meu dia a dia me vejo obrigado a comer do pão que o diabo amassou nas tristes padarias do planalto e de outros palácios menos poderosos, no meu pão cotidiano e doméstico alinhavo e pondero outros ingredientes e pitadas de esperança, afeto e luta.

O pão nosso de cada dia, entre os produtos da categoria das massas alimentícias, é imbatível, sempre foi e sempre será. No dia 16 de outubro de cada ano, desde 2000, por iniciativa da União Internacional de Padeiros e Afins, celebramos o Dia Mundial do Pão. Simbolicamente, essa é também a mesma data em que se comemora o Dia Mundial da Alimentação, criada com propósitos políticos intencionalmente mais pronunciados, na busca de conscientizar e inspirar líderes e nações a lutarem contra a fome e a iniquidade alimentar planetária. Para a América Latina e o Caribe, estimativas da FAO em conjunto com a CEPAL, apontam que, com o agravamento das condições de vida impostas pela pandemia, 83,4 milhões de pessoas vão passar a viver em condições de extrema pobreza, sendo direta e fortemente impactadas pela fome.

A mania de fazer pão em casa traz graça e bonança para a indústria dos ingredientes e das matérias primas utilizadas nessa faina cerealífera. Os moinhos estimam aumento de até 25% no consumo de farinhas especiais para uso doméstico, desde o início da pandemia. Os produtores de ovos não ficam atrás e cravam projeções de crescimento de outros 30%. São números que encantam, por um lado, enquanto por outro apagam outras estatísticas, essas, sim, mais tristes e preocupantes. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Panificação e Confeitaria (Abip), no mesmo período, o faturamento das padarias experimentou queda de 40%.

Na sociedade do abismo, os motoboys entregadores de aplicativos – que se transformaram nos novos boias-frias urbanos – e que abastecem de comida meio mundo, afirmam que na maior parte das vezes trabalham até 14 horas por dia sem terem acesso a uma alimentação minimamente digna, tampouco a um lugar para uma comensalidade humanizada. Suas parcas e inconstantes refeições são feitas no meio fio ou sobre seus veículos, temperadas com o medo de perder o chamado e a precária ocupação. Pesquisas sombrias mostram que nas suas marmitas e mochilas (essas novas formas dos antigos embornais), as simples bolachas são bem mais frequentes do que os pães.

Que a pandemia que nos inspira a assarmos nossos pães domésticos também nos mobilize à ação de socorro, solidariedade e comprometimento com os mais necessitados.

Por ora, que todos e todas tenham um ótimo final de semana …  e bóra amassar pão aí, minha gente!!!

[1] Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Pesquisador e consultor de empresas em Inteligência de Mercado, Estudos do Consumo, Tendências de Mercado e Marketing. Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência de Mercado.

[2] JUNQUEIRA, Antonio Hélio. Food porn: entre ludicidades e patologias. https://jornalggn.com.br/sociedade/food-porn-entre-ludicidades-e-patologias-por-antonio-helio-junqueira/. 27 de dezembro de 2018.

Antonio Helio Junqueira

Pós-doutor em Comunicação e Práticas de Consumo. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA da USP, Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM.

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Prezado Dr.Hélio. A partir do pão nosso de cada dia, você reuniu em sua crônica vários aspectos que nos passam despercebidos ou no mínimo não são valorizados no nosso cotidiano. Em alguns momentos, nos traz o que só é revelado no estudo da psicologia humana. Em outros, nos instrui sobre a história e o que representa esse alimento que quase todos deste planeta consome. Em certo instante, nos faz refletir que para alguns o pão ainda é inacessível, não obstante as riquezas e avanços de nossa civilização. Nos lembra que as desigualdades ainda estão presentes de forma cruel. No mesmo texto está presente, ainda, uma lúcida crítica social desses tempos de pandemia e de consumo de serviços dos desesperados das bicicletas e motos, que em suas costas nos trazem o que comemos nas grandes cidades. Até a ema fujona tão em evidência nesta data foi lembrada. Fora esses assuntos mais duros, suas palavras também me fizeram lembrar do pão que minha avó fazia em seu forno de lenha. Um pãozinho trançado feito com todo carinho para seus netos que a visitavam na cidade do interior, e que tinha um formato de um jacarezinho delicado, em que os olhos eram dois caroços de feijão. Seu sabor e o aroma desses momentos foram revividos em minha mente. Obrigado.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador