O que é a heterodoxia?, por Marcelo Miterhof

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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da Folha

O que é a heterodoxia?, por Marcelo Miterhof

Crescimento mais rápido e a existência de uma rede de proteção social favorecem o poder dos trabalhadores

A caracterização não é inequívoca. A multiplicidade teórica, derivada da dificuldade de resolver empiricamente suas controvérsias, é uma marca da “ciência” econômica.

Na tentativa de defini-la, uso contribuições do blog keynesiano de meu colega Matías Vernengo (http://na kedkeynesianism.blogspot.com.br).

Ideias como moeda endógena, incerteza e inovação são parte da heterodoxia, porém podem ainda que precariamente serem incorporadas pela ortodoxia. De distintivo, duas características teóricas sobressaem.

Uma é ser uma teoria da determinação do emprego e do produto. O mercado não tem mecanismos automáticos (preços) para garantir que seja atingido um equilíbrio de pleno emprego, pois reduzir os salários não garante aumento das contratações, já que os salários menores fazem a demanda cair.

A resistência trabalhista e políticas públicas (fixando um salário mínimo, por exemplo), amaldiçoadas por muitos porque prejudicariam a obtenção do pleno emprego, dão estabilidade ao sistema. Uma economia com preços amplamente flexíveis seria mais volátil e propensa a crises. Deflações dificultam cumprir contratos, como empréstimos, antes assumidos num nível de preços mais alto. Se pronunciadas, levam a falências crescentes no setor produtivo.

O produto é determinado pelos gastos autônomos, que independem dos sinais da demanda interna: exportações e dispêndio público. Como as vendas externas dependem da demanda mundial, é a política fiscal o principal instrumento de busca do pleno emprego, o que não se restringe ao curto prazo.

O crescimento alavanca a produtividade e a inovação, gerando a demanda que induz ganhos de escala e os investimentos que criam e difundem as melhorias tecnológicas.

Contudo, o processo é marcado pelo desequilíbrio. Umas coisas se ampliam à frente de outras, o que gera, por exemplo, inflação de custo: a escassez de alguns fatores eleva seu preço relativo. A inflação de demanda é pouco frequente pois antes de ela de fato aparecer a economia costuma ser travada, visando combater choques de custo em nome da idealização do crescimento equilibrado.

A outra característica distintiva é que também a distribuição é exógena ao sistema econômico. Ela não se deve a fatores técnicos-econômicos, como as produtividades marginais do capital e do trabalho.

Se cada um ganhasse diretamente conforme sua contribuição ao produto social, a concentração poderia melhor se justificar. Porém tal tese sofre de uma circularidade: para obter a produtividade do capital, é preciso saber os preços dos bens de capital, mas estes dependem da taxa de lucro, que seria função da produtividade do capital.

A distribuição é resultado das disputas na sociedade. Crescimento mais rápido e a existência de uma rede de proteção social favorecem o poder dos trabalhadores e, assim, a desconcentração da renda.

A implicação é que não há características naturais, como a propensão a poupar, que travem o crescimento e a distribuição. A limitação relevante é o balanço de pagamentos. Países eficientes e ricos são os que têm boas condições de troca com o exterior. Assim, são desejáveis políticas que favoreçam esse desempenho. Crescer e distribuir estão mais ao alcance da vontade política de governos e nações do que em geral se supõe do debate econômico convencional.

Responder a Samuel Pessôa ficou improdutivo. Porém devo notar que sua afirmação no domingo de que acho que quem pensa diferente de mim provavelmente defende interesses dos ricos é o oposto do que fiz na coluna passada.

Fiz uma ginástica para mostrar que as características epistemológicas da economia exigem uma dose de convicção íntima para optar entre os distintos entendimentos. Lógica e evidência fazem parte da escolha, mas o radical “doxa” destaca a opinião.

A natureza íntima remete a sua singularidade. Não é uma questão de probabilidade. Na disputa política, sim, cada grupo se apropria do debate teórico como melhor lhe interessa. Assim, a repercussão de cada entendimento depende de a quem se atende.

Mas cada um pode (ou não) fazer sua opção teórica independentemente dos conflitos distributivos. É uma decisão moral, feita sob conhecimento incompleto: importante é se sentir confortável com sua escolha, mesmo diante da chance de estar errado. Escolhas opostas podem ser igualmente morais. Essa é a beleza do conhecimento econômico.

MARCELO MITERHOF, 40, é economista do BNDES. O artigo não reflete necessariamente a opinião do banco. Escreve às quintas nesta coluna.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. Heterodoxia

    Prezado colunista para  mim a beleza da economia está na diminuição das desigualdades sociais, independento do que digam ou ensinam os manuais econômicos é preciso crescer. Além disso, como uma simples leitora considero que a economia está subordinada a decisões políticas e não o contrário. 

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