O que o Brasil imagina de modernização destruindo sua memória?, por Álvaro Miranda

A preservação da memória não é só uma questão de cultura ou história enciclopédica. Tem a ver com os conflitos do próprio sistema capitalista e sua natureza sempre corruptiva

Incêndio atingiu Museu Nacional do Rio de Janeiro | Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

O que o Brasil imagina de modernização destruindo sua memória?

por Álvaro Miranda*

Não só os horrores humanos têm que ser lembrados para que não se repitam, como as atrocidades nazistas, a escravidão negra, as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, as guerras híbridas contemporâneas e a fome, dentre outras. Também as coisas boas da vida cotidiana dos povos podem servir de exemplo para a preservação da memória, mecanismo não só de aprendizado sobre o presente a partir do conhecimento do passado, mas também de potencialidade criativa permanente. Pelo mundo afora são vários os exemplos nas diversas áreas e instituições sociais, e cito aqui apenas o famoso jato d’agua de Genebra e os bondes antigos de Lisboa.

Diante do baixo astral de um Brasil sem perspectivas, sendo literalmente desmantelado, direcionar os olhos para o mundo pode nos ensinar que são possíveis alternativas simples e criativas em contraposição à indigência de políticas públicas para a cultura e o desenvolvimento econômico.

Furado de saída seria o argumento a defender o sentido pretensamente “evolutivo” e tecnológico com suposta necessidade de eliminação inevitável do velho. Pois como explicar a permanência do antigo ao lado do novo nos países capitalistas avançados? Por que em países mais ricos a memória tem que ser preservada e aqui no Brasil, destruída?

A chave da compreensão vai na mesma linha explicativa do desenvolvimento de uns que se faz às custas do subdesenvolvimento de outros. Este último sempre agravado por conhecidos fatores humanos, quais sejam, a burrice em meio à falta de noção do valor histórico de diferentes situações da nossa vida social, sem falar da disposição predatória e corrupta da corrupção maior – qual seja, a que promove a destruição da memória e da identidade de um povo.

Afinal, a preservação da memória não é só uma questão de cultura ou história enciclopédica. Tem a ver com os conflitos do próprio sistema capitalista e sua natureza sempre corruptiva: desenvolvimento e subdesenvolvimento fazem parte do mesmo processo simultâneo entre os países, ou seja, um não é estágio para o outro, mas sim ambos como elementos de condicionalidade recíproca. Bom que se lembre sempre que somos modernos desde o início da chamada modernidade como parte na divisão internacional do trabalho da acumulação primitiva do capitalismo. Só para citar dois elementos desse processo, na colonização do Brasil a escravidão negra e a exploração do ouro e da prata funcionaram como fatores estratégicos para a revolução industrial inglesa.

O jato do Lago Léman, em Genebra, é o exemplo de como um procedimento cotidiano e a simplicidade de soluções podem ser usados com inteligência e criatividade para a preservação da memória. Foi uma intervenção técnica para fins de controle de fluxo hidráulico das máquinas de artesãos da cidade que acabou se transformando num ícone turístico completando hoje mais de um século de idade.

A energia hidráulica dos equipamentos desses trabalhadores havia sido fechada em 1886, e uma válvula foi instalada para funcionar como escape da água à semelhança, mal comparando e imaginando, do que se costuma chamar ainda hoje de “ladrão” nas residências. Isto é, o cano que expele água para indicar que a caixa d’água está cheia e assim a bomba deve ser desligada. Na nossa casa da infância esse cano ficava dentro do box do chuveiro.

O jorro de 40 metros de altura encantou a cidade na época, que o transformou em atração turística. Alguns anos depois, o espirro era de 90 metros como espécie de recolho fantástico de uma gigantesca baleia. O atual jato d’água é de 1951. Era acionado somente no verão e, partir de 2003, passou a funcionar diariamente. De acordo com determinada versão, seu espirro alcança hoje quase 150 metros de altura a uma velocidade de 200 km/h, expelindo 500 litros por segundo.

Quem poderia imaginar no fim do século XIX que um simples artefato instrumental pudesse ser transformado num ícone turístico famoso mundialmente cem anos depois? Assim como a Torre Eiffel de Paris e a Torre de TV de Berlim, na Alexanderplatz, o jato d’água é visto de diferentes lugares distantes da cidade, até das janelas gigantescas dos corredores da sede da Organização das Nações Unidas ou do alto do Monte Salève, a serra do famoso teleférico em território francês.

Já os idosos bondes da cidade de Lisboa, com seu elétrico do início do século XX, demonstram uma vitalidade incomum no sobe e desce das íngremes colinas da cidade. “Sapateiam nos trilhos” (para usar um fragmento de Mário de Andrade) em meio a outros veículos mais modernos, além dos ônibus e automóveis. Vão e voltam com garbo e desenvoltura, alguns conduzidos por motorneiro em pé manipulando manivela. Fazem parte do transporte urbano e regular de passageiros ao mesmo tempo em que funcionam como atração turística e memória da história da cidade.

O “sapateado nos trilhos” da imagem poética fazia parte também do cotidiano de muitos brasileiros durante boa parte do século passado. Minha família usava o bonde diariamente a partir do Campo Belo, bairro onde morávamos, perto do Aeroporto de Congonhas, para onde nos mudáramos em 1964 procedentes da Mooca.

Capuava, nosso vira-latas de estimação, costumava acompanhar minha irmã Virgínia, quando ela ia para a escola, pela Rua Moraes de Barros, para pegar o bonde que vinha de Santo Amaro na Avenida Ibirapuera, hoje Vereador José Diniz, apesar das repetidas ordens para que voltasse para casa. Não raras vezes, o motorneiro era obrigado a frear o “sapateado” logo depois de iniciado, quando, ágil e leve, Capuava já havia saltado para dentro do bonde antes que a porta fosse fechada. E, obviamente, atrasando minha irmã, que era obrigada a descer para, de forma mais enérgica, mandá-lo de volta para casa.

A recombinação institucional entre o velho e o novo é uma possibilidade de êxito em políticas públicas, segundo Colin Crouch. Ou seja, para criar o novo não, necessariamente, precisamos destruir o antigo. E, muitas vezes, o novo só é possível com a permanência do velho. Na verdade, a rigor, a expansão capitalista dos estados mais fortes sempre procura destruir as características dos mais fracos na criação de mercados colonizados. Quando não consegue, recombinam-se situações e, dependendo da criatividade e força dos governos e empresas locais, podem surgir soluções novas com a mistura de traços antigos e inéditos.

Se o céu da nossa infância dos anos 60 misturava DC-3, Constellation, Viscount e os Electras da ponte aérea Rio-São Paulo, com suas costumeiras lições de partir e chegar, no asfalto e no paralelepípedo a paisagem era composta por bondes, ônibus elétricos (os chamados tróleibus), papa-filas de dois carros com cabine separada para o motorista (à semelhança dos que ainda trafegavam em Cuba na década de 1990!), automóveis novos e antigos, Romizetas, lambretas, Mobilets – todos convivendo muito bem, como acontece ainda hoje em diversas cidades europeias.

Enfim, longe do saudosismo melodramático, improdutivo e nada criativo, a indagação é: o que o Brasil imagina de modernização destruindo sua memória? Como enriquecer a imaginação de uma coletividade sem passado?

*Jornalista, mestre e doutor em Ciências, Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento pela UFRJ

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