Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
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O que os olhos veem, o coração sente?, por Ana Laura Prates Pacheco

Como se estivéssemos em um episódio da série Black Mirror, o que parece ter desfilado naquele evento foi a própria cegueira presente em nossa sociedade, cada vez mais afundada no pântano da paixão da ignorância, nada querendo saber sobre seu pecado original.

O que os olhos veem, o coração sente?

por Ana Laura Prates Pacheco

Fomos surpreendidos, essa semana, pela notícia da realização de um evento no dia 21/05, pela Comissão de Infância e Juventude (CIJ) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Mato Grosso (OAB-MT) e a Associação Mato-grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (Ampara). No site da OAB do Mato Grosso, somos informados que se trata da segunda edição do desfile “Adoção na Passarela” no Pantanal Shopping de Cuiabá, e de que “o propósito é dar visibilidade a crianças e adolescentes que estão aptos para adoção no Estado. São menores de 4 a 17 anos”. A presidente da CIJ, Tatiane Ramalho afirma, dentre outras coisas, que “esperamos novamente dar visibilidade a essas crianças e a esses adolescentes que estão aptos para adoção. E, como sempre dizemos, o que os olhos veem, o coração sente”.

Várias entidades de direitos humanos e das crianças, bem como outros representantes de diversos segmentos da sociedade vieram a público manifestar sua indignação diante desse evento. Para além da flagrante violação ao Estatuto da Criança e do Adolescente – como declarou a própria Defensoria pública do Mato Grosso –, muitas vozes denunciaram ainda, e com razão, aspectos como colocar as crianças numa posição de objetos e sua mercantilização.

Como Psicanalista, entretanto, me chamou a atenção o argumento de que “o coração sente o que os olhos veem”. Será? A frase faz uma clara alusão ao conhecido provérbio “o que os olhos não veem o coração não sente”, um dito popular que provavelmente se referia, originalmente, a situações de adultério, e que com o passar do tempo foi generalizado para qualquer situação diante da qual seja preferível “fechar os olhos” para não ter que entrar em contato com afetos dolorosos, conflituosos ou obscenos. Freud, que descobriu o inconsciente, desvelou a sexualidade infantil e inventou a Psicanálise, propôs que esse “fechar os olhos” é, na verdade, um tipo de negação. Lacan, alguns anos depois, revelou que se trata de um tipo de paixão – além do amor e do ódio, nossas velhas conhecidas – nomeada por ele de “paixão da ignorância”, ou seja, um obstinado “não querer saber nada” sobre o que nos provoca horror. Mas o que provoca horror sempre aponta para algo que chamamos de castração, e que simbolicamente tem a ver com nos depararmos com uma falta seja ela física, afetiva ou moral.

Foi na tragédia grega que Freud se inspirou para fazer essa articulação entre o olhar e o saber. Lembremos que no final de “Édipo Rei” de Sófocles, nosso herói fura os próprios olhos com o broche de Jocasta, até então sua esposa, ao revelar-se a verdade da qual tentou fugir durante toda sua vida. Édipo fora abandonado pelos pais Laio e Jocasta, pois o oráculo havia previsto que ele mataria o pai e se casaria com a mãe. Condenado ao infanticídio, ele foi salvo e adotado por um casal de camponeses. Anos depois, o jovem Édipo recebe a mesma previsão do oráculo, ou seja, que mataria o pai e se casaria com a mãe. Desesperado, foge de casa, julgando serem os pais adotivos aqueles a quem o oráculo se referia. Durante a viagem, envolve-se em uma briga na estrada e acaba por matar aquele que, sem saber, era Laio, seu verdadeiro pai. Chegando a Tebas, a terra que estava sem rei, é desafiado a desvendar o enigma da Esfinge, e por conseguir decifrá-lo, tem como recompensa casar-se com a rainha Jocasta e tornar-se o rei. Ele o faz “sem saber” que se tratava de sua verdadeira mãe.  Várias coisas acontecem até que ele descubra a verdade: que ele havia, “sem querer saber”, cumprido a profecia do oráculo. Freud descobre que, assim como todos nós, Édipo não queria ver o que estava embaixo do seu nariz, revelando que “o pior cego é aquele que não quer ver”. Esse último provérbio contradiz o outro, e aponta para o fato de que o coração continua sentindo o que os olhos não veem. De fato, sabemos de cor (de coração) que a dor segue afetando o corpo mesmo quando a imagem falta. A experiência da psicanálise, portanto, implica em uma relação com o saber e o ver. Com a condição de que estejamos advertidos, entretanto, que nem tudo deve ser mostrado, pela simples razão de que nem tudo é visível. Daí a importância de, em seu ensino, Lacan ter destacado a função do véu do pudor, desde as mitologias antigas. Não se trata de um dilema moral, mas antes da ideia intrigante de que por detrás do véu na verdade há o nada, ou seja, aquilo que não tem imagem.

Na tragédia grega, lembremos que a decisão de Édipo de “não querer ver para o coração não sentir” teve consequências nefastas para Tebas e seus habitantes, que tampouco quiseram ver o que estava na cara. Com efeito, a polis (cidade) também é afetada pela ideia equivocada de que “o que os olhos não veem o coração não sente”. O problema da cegueira coletiva e de seu corolário, o que se pode saber, foi tratado de modo brilhante por José Saramago nos livros “Ensaio sobre a cegueira” e “Ensaio sobre a lucidez” nos quais a personagem da mulher do médico é a única a ver, e o que ela vê é a devastação e a agressividade que a civilização encobre. Ela, que é morta justamente por enxergar longe demais.

Voltando então ao caso do desfile “Adoção na passarela” e sua justificativa, encontramos uma curiosa inversão do dito popular na sentença: “o que os olhos veem o coração sente”. Mas, se como dissemos, o coração continua sentindo o que os olhos não veem, poderíamos inversamente perguntar o que realmente foi exposto de modo obsceno aos olhos dos expectadores do Pantanal Shopping, fazendo com que de fato muitos não tenham sido capazes de enxergar o que se expõe nessa bem intencionada iniciativa.

Como se procurou esclarecer na Nota divulgada pela OAB do MT no dia seguinte: “A falta de interessados na chamada “adoção tardia” faz com que seja urgente a adoção de medidas como a Semana da Adoção, que tornam público esse problema social. Conforme o Relatório de Dados Estatísticos do Cadastro Nacional de Adoção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 8,7 mil crianças e adolescentes aguardam por uma família”. Com efeito, os problemas em torno dos processos de adoção no Brasil, para além do excesso de burocracia são, sobretudo, problemas que refletem nossa flagrante desigualdade social.  Há ainda marcas profundas de aspectos da violência constitutiva de nosso laço social que ainda não foram superados. A proclamada miscigenação da sociedade brasileira não é fruto de um erotismo espontâneo, natural e sem conflitos. Ao contrário, historicamente, índios e negros, sobretudo mulheres e crianças foram desprovidos de cidadania e seus corpos tomados como objeto de exploração de toda sorte, inclusive sexual. Essa espécie de trauma fundante de nossa sociedade volta, com recorrência, e de modo especialmente notável nas questões relativas à infância.

A urgência em dar visibilidade e tratamento simbólico a esse problema, entretanto, não é o mesmo e não justifica expor crianças e adolescentes em uma passarela, em pleno templo do consumo que são os shoppings centers. Tentar equivaler a exposição de uma ferida tão profunda a um mimetismo de desfile de moda seria, no mínimo, de mau gosto. Mas o problema é bem mais grave. Por um lado, porque envolve a subjetividade daqueles que, assim como Édipo, estão às voltas com dilemas dramáticos de filiação e, portanto, de identidade, envolvendo afetos contraditórios e difíceis de lidar.  Por outro, o que esse evento revela é o sintoma de uma sociedade que, pela via do espetáculo, como diz Debord, expõe as crianças ao consumo ao mesmo tempo em que sua própria imagem passa a um lugar de erotização e mercadoria, em um processo que Jane Felipe de Souza chamou, em 2002 de “pedofilização”.

O mesmo falso moralismo que impede atualmente a educação sexual nas escolas e sonega à infância sua condição desejante, ao mesmo tempo incentiva sua espetacularização.  Os mesmos órgãos e entidades que, com a melhor das intenções, procuram proteger as crianças, as expõem sem pudor à lógica das cotações, como se a escolha por um filho fosse da ordem do “amor à primeira vista” na livre concorrência do mercado dos afetos.  Como se estivéssemos em um episódio da série Black Mirror, o que parece ter desfilado naquele evento foi a própria cegueira presente em nossa sociedade, cada vez mais afundada no pântano da paixão da ignorância, nada querendo saber sobre seu pecado original. Há casos em que os olhos veem o que o coração não sente.

Ana Laura Prates

Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

2 Comentários

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  1. Diria a Ana Laura P. Pacheco que sua mensagem é muito importante e esclarecedora sobre tudo em relação a esse crime. As referências a Freud e a Édipo também são pedagógicas. Adorei! Porém, gostaria de expressar o meu sentimento em relação às consequências desse ato brutal, que já deve estar acontecendo. Ou seja, pra quem tem um jeito especial e profundo de enxergar essa realidade, não lhe faltará argumentos variados para deitar-se sobre o que esse desfile deixou ou deixará de marcas em cada uma, ou para elucubrar a respeito de um possível candidato que tenha escolhido no leilão de carne humana suas preferências.
    Acho imprescindível que esse assunto não morra agora, mas que possa seguir em frente com mais e mais análises envolvendo a Psiquiatria e a Sociolgia, em defesa das moçada, e como um meio de se contrapor a essa triste inciativa de quem deveria mesmo era preservar a vida de todos que tiveram que viver sem a companhia de seus familiares.

  2. Para tod@s jovens e crianças (sim, há ativistas meninas de 11 anos!) que estão lutando para que o planeta tenha futuro:
    Hoje é dia de Greve! Segunda Greve Mundial da Juventude pelo Clima – por Justiça climática e equidade.

    Excelente reflexão, mas outros aspectos relacionados me vieram ao pensamento enquanto era provocada pela leitura:
    1 – a questão da ética do olhar e do exibir: nem tudo dever ser mostrado, nem tudo pode ou deve ser visto, o problema está menos nessa constatação óbvia do equilíbrio, e por que não dizer jogo? – no uso e fruição dos sentidos, mas no que de fato justifica a escolha do que deve, e como, ser exibido ou visto.
    2 – O texto articula de maneira breve uma questão que é fundamental na sociedade contemporânea, que já superou a do espetáculo pela sua total assimilação a ele, invertendo a relação entre realidade factual e simulação (não li o clássico do Debord ainda, e nem sei se o farei), como comumente referido em seus efeitos por quem o menciona, mas a do mercado da atenção que leva à ficcionalização permanente do real, de um modo que se tornou tão pernicioso para as relações sociais – da base das redes sociais eletrônicas que é a exposição “photoshop” de tudo e de todos (como não se pode ou deve ver ou expor tudo e tod@s, algo/s(uén/s) sempre permanece/m encobert@/s, cuja descoberta se costuma afirmar como a intenção principal da psicanalise descobrir o por quê e para quê) relacionada ao “publish or perish”, quem não se mostra ou não é notad@ não é dotado de existência (a questão da invisibilização dos grupos e temas sociais marginalizados porque inconvenientes, que serviu de justificativa para a ação de exibição das crianças) da qual a mais extrema implicação é a autorização tácita para que seja eliminad@ fisicamente como um “erro” ou “empecilho”, um bug na programação do mundo como concebido pela mercadologia da eficiência e da redução de custos.
    3 – E por isso não se pode esquecer quais nem como agem as relações materiais que criam e dependem dessa estrutura social, porque vivemos numa fase ultraliberal do capitalismo mundializado, marcado pela frase já memética da Thatcher, líder da fase neoliberal, de que não existe sociedade, apenas indivíduos. E o capitalismo, apesar de sua fase de monopólios e excessiva concentração até entre os capitalistas (que muitos já dizem que o que se tem não pode ser chamado de capitalismo pela suposta perversão de seus pressupostos iniciais de livre concorrência e competição), é ainda baseado na ideia – talvez mais perversa porque é apenas um estelionato dado que a ideia não é factível nem permitida na realidade – de concorrência e de mercantilização equilibrada da vida social. A questão é que se perdeu a noção do limite do aceitável nessa sociabilidade über-capitalista, em si antiética e avessa a protestos, rs (a atual ética, em especial nesse dia de Segunda Greve da juventude Mundial pelo Clima, é a do “protestantismo” anticapitalista).
    4 – Qual a diferença entre este desfile e os shows da TV aberta, de onde certamente tiraram a inspiração, que exibem crianças para a coleta de doações milionárias (Criança Esperança, que teve um início muito mais politizado e honesto com Renato Aragão, antes de virar mais um produto de marketing social e apolítico da Globélica, que inclusive o afastou do programa… e o importado dos USA, Teleton)? Guardadas as proporções, a lógica da exibição em prol de uma causa nobre que corrigiria, por si só, eventuais inconvenientes, é a mesma. E me veio agora que algo parecido aconteceu na discussão feita nos idos de 1990/2000 sobre a estetização da miséria no cinema, em especial no Brasil. Em todos esses casos, mais que a exibição importa discutir o que a motiva: no caso das crianças, acho que foi uma péssima ideia surgida de reais boas intenções, mas não é incoerente, nem inédito, com a forma como se vive nas classes médias que se pretendia, suponho, seriam as adotantes das crianças: se coisa tão séria quanto a alimentação já se faz inteiramente em shopping centers, perdida sua dimensão doméstica e íntima, por que não ir ao shopping e adquirir uma família? – que virou outro ativo midiático capturado pelo capitalismo, com o fenômeno da glamourização da gravidez de gente famosa num país cujas classe média e elite intermediária foram às ruas com suas babás uniformizadas carregando seus herdeir@s (são sequer tratad@s como filh@s?) para derrubar um governo que, quanto absurdo! – transferia renda numa BOLSA FAMÍLIA (também sujeita a discussão sobre as formas de lidar com a miséria provocada por um país mesquinho) para crianças e ex-crianças… miseráveis não morrerem de fome e terem alguma dignidade. A família, seus conceitos, usos e finalidades, sempre estiveram no cerne da luta de classes, e este episódio é rico para discussões para além da superfície provisória da indignação, merece um estudo próprio porque permeia nossas relações sociais de Casa Grande e Senzala, não foi definitivamente um ponto fora da curva.
    5 – O texto também tratou de uma questão que é central para a superação da barbárie neste país: a boa intenção mal elaborada e que causa confusão sem servir adequadamente ao esclarecimento do assunto: há uns 3 anos, eu ouvia uma rádio coxinha de SP que tinha a pegada da “ação social dos endinheirados ‘do bem’, e fiquei chocada e ofendida quando num dos programas sobre campanha de doação de meias para o inverno da cidade, alguém disse, sem se dar conta do absurdo, que doassem meias novas e não apenas usadas… (já é um absurdo se imaginar que ação social para sem teto no inverno pode ser apenas uma doação de meias e cobertor, daí que @s doadorxs com grana tivessem a cara de pau de doar acessórios tão simples que não mais lhe servissem, e provavelmente a outros, me deu a exata dimensão da ganância tão entranhada nas pessoas que se perde a noção do ridículo e da mesquinharia; ao confirmar a ação na internet, vi que era patrocinada por uma marca de meias…; ou seja, de um lado a doação de meias usadas por quem pode comprar um artigo tão simples que custa por volta de 5 reais (é simbólico, “você só tem direito ao que não me serve mais, ao que sobra e iria para o lixo se não fosse meu bom coração”; não se trata do fenômeno que me é tão caro da doação de objetos usados como forma de solidariedade honesta e circulação ecológica de bens e serviços), e de outro a exploração das boas causas por quem lucra com o consumo…; seria interessante descobrir, se houve, quem patrocinou o desfile, lojas caríssimas de roupas infantis, visto que a infância já é um ativo mercado-ideo-lógico desde os tempos do surgimento do proletariado e o que temos hoje é apenas a “evolução” darwiniana dos usos sociais das crianças).

    Sugestão de playlists
    De Marisa Monte: Infinito particular / Universo ao meu redor / Verdade, uma ilusão (ao vivo)
    E muito samba.

    Vilarejo – Marisa Monte
    https://www.youtube.com/watch?v=WibtVWwW-EA

    Meu Guri – Chico Buarque (sobre a paixão (como dor) da ignorância (em todos os seus sentidos)
    https://www.youtube.com/watch?v=3wQwBoCo-j4

    Meu Guri – com Elza Soares
    https://www.youtube.com/watch?v=UKtwpbI7INg

    O Meu Guri – Teresa Cristina e Grupo Semente
    https://www.youtube.com/watch?v=rdgxs7bXKzY

    Sampa/SP, 24/05/2019 – 14:31

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