O racismo e o sofrimento psíquico, por Marcia Noczynski e Cristiane Alves

O racismo e o sofrimento psíquico

Marcia Noczynski[1] e Cristiane Alves[2]

Falar sobre sua dor, num mundo onde se espera hegemonicamente que se conte sobre seus sucessos e vantagens, é um terreno fértil para a emergência do sofrimento psíquico.  Você já deve ter vivido a experiência de se queixar de algo para alguém, confiando completamente a sua dor àquela pessoa, e obter como resposta, ‘ah, mas isso não é bem assim, você está exagerando, deixe de se vitimizar.’

Quem já sentiu na pele essa desautorização do sofrer, sabe do que estou falando. O sofrimento psíquico, não tem um nome que o defina. E quando não há um nome validado para o que se sente, é quase certo que quem escuta não acolha aquele sofrimento, não o legitime. Quando alguém conta que está com câncer, por exemplo, que é uma doença socialmente reconhecida como geradora de sofrimento, é fácil e simples que as pessoas se solidarizem com quem sofre. Ou se você disser que tem depressão ou síndrome do pânico, patologias reconhecidas inclusive pelas ciências, é possível que algumas pessoas acolham a sua dor. É importante mencionar que quando falo sobre sofrimento socialmente reconhecido, estou implicando o Estado nesse reconhecimento.

Agora, se você contar que foi vítima de discriminação e preconceito, que foi humilhado, hostilizado, ofendido, que se sentiu perseguido ou foi agredido, aí são outros quinhentos. Esse tipo de sofrimento depende do reconhecimento do outro. Depende da leitura que será feita da narrativa de quem sofre. Depende basicamente do lugar que o corpo social dará a esse sofrimento. Se a dor narrada não tiver sido reconhecida no tecido social, ninguém vai se ocupar dela, o estado não vai cuidar, as instituições jurídicas não vão defender, a escola não vai abordar, o sistema de saúde não vai atender, estrangulando ainda mais a possibilidade de se libertar daquele sofrimento.

Esse preâmbulo é para falar de racismo. O racismo nosso de cada dia. Se o sofrimento psíquico demanda reconhecimento para ser tratado, como ficam as pessoas que sofrem por serem vítimas de racismo? Não consta no DSM5 a descrição desse sofrimento. Muito raramente é tema nas grades curriculares das escolas, menos ainda nas instituições de ensino superior. Não há campanhas nas grandes mídias que esclareçam essa forma de sofrimento.

O máximo que se tem de divulgação sobre o sofrimento que as pessoas, a partir da cor de sua pele, padecem, são os casos midiáticos de tragédias envolvendo essa população.  Ainda assim, são mostrados apenas quando a tragédia é suficientemente interessante para dar audiência. Nunca a dor das pessoas é tratada com seriedade e compromisso ou é associada ao racismo. As políticas públicas não se ocupam disso.

As experiências de quem desde criança é discriminado pelo tom de sua cor de pele vai moldando seu modo de sofrer.  A formação da nossa subjetividade é atravessada pelas experiências inaugurais com o outro, determinando de que forma, mais tarde, vamos lidar com as dificuldades, os conflitos e as perdas. Quem sofre com o racismo desde o nascimento, ao vivenciar a discriminação dos pais, dos familiares, dos antepassados, tem a sua subjetividade esculpida por essas experiências e sua compreensão de mundo terá como pano de fundo a violência do que viu, ouviu e sentiu.

O racismo rasga e invade todas as dimensões da existência e se materializa no dia-a-dia de quem sofre toda sorte de estigma, de discriminação e injustiça sem que sua dor seja reconhecida, inscrita e por isso mesmo não considerada ou tratada.

Por outro lado o negro sabe qual a sua dor. Desde que conheceu a opressão colonialista o Banzo ganhou outra dimensão. A dor do banzo é a dor da perda no mais amplo espectro. É dor da saudade de uma terra que não se chegou a conhecer, uma Wakanda onde nunca se pode pisar. O desejo da retornar à condição de normatividade. De ser maioria em número e em representatividade, sentido.

O Banzo é o sofrimento psíquico de quem não pertence e não se pertence. Dos despossuídos de voz, estética e inteligência. Não por não as ter, mas por não se lhes permitir ter.

Quando o Estado invisibiliza o sofrimento negro como específico da condição do negro dentro de uma estrutura que o ignora para o bem e para o bom, mas o destaca para o mal e para o mau, nesse momento o racismo estrutural se consolida como verdade incontestável.

[1] Marcia sempre foi encantada pelas palavras e do que com elas se produz. Psicanálise, Literatura, Música e Cinema são seus companheiros inseparáveis. No sul, graduou-se-se em Letras, e em São Paulo, em Psicologia. Na sequência, fez a formação em Psicanálise, teoria que norteia a sua clínica e sua escrita.

[2] Cristiane Alves – Mãe da Gi e do Giggio, mulher negra e feminista por nascimento. Professora da rede estadual de ensino desde 1998, e inconformada desde sempre.

Especialista em Educação Especial e Inclusiva – (Altas Habilidades/Superdotação)- UNESP – 2016

Tecnóloga em Gestão Ambiental e segurança do Trabalho – Uni-A 2004

Geografia bacharelado e licenciatura – UNESP 1996

Cristiane Alves

Cristiane Alves

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  • Tem um documentário já de décadas que toca neste tema da questão sócio-emocional com o racismo. Chama-se "Olhos Azuis", onde a professora Jane Elliot utiliza-se de técnicas de psicodramas para que ajude as pessoas a sensibilizar-se a partir da experiência. Por exemplo, não é sem razão que grande parcela de negros em sociedades racistas sofrem em número alto de doenças como hipertensão, hipertrofia cardíaca e outros adoecimentos vinculados a forte estresse emocional causado em especial pelo desconforto e tensão do convívio em ambientes ácidos.

    https://www.youtube.com/watch?v=mph1tuACRo4

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