O retorno às aulas presenciais: na balança, o direito à educação, saúde e a vida, por Ana Cláudia Figueiredo

O retorno às aulas presenciais: na balança, o direito à educação e os direitos à saúde e a vida

por Ana Cláudia M. de Figueiredo

No último dia 7 o Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer CNE/CP nº 11/2020, contendo Orientações Educacionais para a Realização de Aulas e Atividades Pedagógicas Presenciais e Não Presenciais no contexto da Pandemia.

Não é razoável a recomendação no sentido de que “os sistemas e organizações educacionais desenvolvam planos para a continuidade da implementação do calendário escolar de 2020-2021, de forma a retomar gradualmente as atividades presenciais”. Não há sinais de que, em um futuro próximo, como previsto pelo CNE, teremos emergido da séria crise sanitária – além das crises política e econômica – em que o Brasil está mergulhado.

O Conselho afirma nesse Parecer, que ainda aguarda homologação pelo MEC, que “as limitações na capacidade de implementar atividades não presenciais ao longo do período de isolamento social poderão afetar de modo desigual as oportunidades de aprendizagem dos alunos”. Isso é um fato! Mas será que a retomada das aulas, em um curto espaço de tempo, reduzirá essa e outras desigualdades?  Certamente que não. E o que é pior:  afetará, de modo desigual, as oportunidades de vida dos estudantes – professores, profissionais que trabalham nas escolas e respectivas famílias –, em detrimento, é claro, dos estudantes que vivem em situação de pobreza.  Isso porque a saúde do ecossistema dos espaços em que se encontram as escolas da periferia é provavelmente mais debilitada, em face da falta de condições de isolamento domiciliar, do não distanciamento social  e da ausência ou ineficácia da higienização das mãos – ante a carência de sabão, de álcool em gel, de água; porque, conforme o Censo Escolar de 2019,  35% das cerca de 110 mil escolas municipais do país não têm água encanada; porque o baixo índice socioeconômico das escolas da rede pública de ensino reflete-se na sua infraestrutura, o que dificultará medidas de prevenção; porque, segundo questionários aplicados pela Undime, referidos no Parecer do CNE, “83% dos alunos das redes públicas vivem em famílias vulneráveis com renda per capita de até 1 (um) salário-mínimo”, o que impõe, em regra, o uso de transporte público e inviabiliza o acesso, em igualdade de condições com os estudantes das escolas particulares,  aos itens de higiene e proteção necessários à prevenção da Covid-19 e, entre outras razões, porque as famílias dos estudantes de baixa renda estarão experimentando situações de luto e de privações mais frequentemente que as famílias dos demais estudantes.

Na última parte do Parecer  o CNE afirma que, enquanto durar a situação de pandemia, o público da Educação Especial somente deverá retornar às aulas presenciais “por indicação da equipe técnica da escola, ou quando os riscos de contaminação estiverem em curva descendente”.  Se a escola não é segura para os estudantes com deficiência, “por razões supracitadas de maior vulnerabilidade”, não pode ser considerada segura, da mesma forma, para estudantes sem deficiência, professores, coordenadores, gestores e outros trabalhadores, porque, em um contexto no qual os níveis de contágio ainda não começaram a decrescer, todos serão vulneráveis. A propósito, a restrição ao retorno às escolas pautada na deficiência ou autismo caracteriza capacitismo, que é a discriminação ou o preconceito contra pessoas com deficiência. Eventual limitação, caso mantida a orientação de retomada das aulas presenciais,   deveria estar pautada não na deficiência, mas na avaliação, aplicável a todos os estudantes, com base em características inerentes a determinado grupo de risco.  É nesse sentido a Nota Pública da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos – Anadep.

De outro lado, se os investimentos em educação seguem em queda nos últimos anos, conforme Relatório do Instituto de Estudos Socioeconômicos divulgado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, não podemos esperar que, antes do retorno das aulas presenciais, sejam garantidos, como recomendado por experiências internacionais (página 11 do Parecer), os recursos necessários para assegurar a oferta de água encanada, lavatórios com acessibilidade, máscaras etc. para todos os estudantes, professores e outros profissionais que trabalham na escola.

Se o Estado não pode, pelo menos em curto espaço de tempo, assegurar condições adequadas para a preservação da saúde e da vida de todos por ocasião do retorno às escolas, seria razoável pensar na retomada das aulas tão proximamente? A resposta baseada nos direitos humanos e na ciência é negativa. O Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped/FE/Unicamp), a propósito, divulgou Nota em repúdio às  orientações do CNE e aos movimentos de governadores no sentido de retorno às atividades escolares (https://inclusaoja.com.br/).

Conforme o estudo do Instituto Rodrigo Mendes, PROTOCOLOS SOBRE EDUCAÇÃO INCLUSIVA DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19: Um sobrevoo por 23 países e organismos internacionais, “O processo de reabertura das escolas passou a ser efetivamente considerado pelos gestores públicos de diversos países, conforme os índices de contaminação pelo vírus começaram a regredir”. O uso de máscaras na Austrália, Escócia, Inglaterra, Noruega, Nova Zelândia e Singapura sequer foi exigido, aparentemente, segundo tal estudo, porque os índices de contaminação nesses países estavam baixos.

Esse não é, infelizmente, o cenário brasileiro. Ao contrário, o país é o segundo em número de infectados e de óbitos, encontrando-se em um patamar elevadíssimo, de quase 1.100 mortes por dia, ainda em ascensão. Diante de tal cenário, a prioridade na decisão de retomada das aulas em tão breve tempo não parece ser a vida e a saúde pública e tampouco a materialização do direito à educação.

O momento requer reflexões. Entre outras questões precisamos pensar sobre a qualidade da educação em nossas escolas e sobre a capacidade dessas de acolher, no momento certo, todos os estudantes e de propiciar-lhes oportunidades de aprendizagem de forma ética e justa. As desigualdades verificadas agora na pandemia já permeavam a essência do nosso sistema educacional. As crises experimentadas pelos brasileiros tão somente trouxeram à tona a injustiça a que são submetidos estudantes pobres, com deficiência e outros. Apenas expuseram o âmago excludente do sistema.

Cabe a nós, enquanto sociedade, exigir as transformações necessárias a tornar o sistema solidário, inclusivo e igualitário, sob todos os vieses. Ao Estado cabe aportar os recursos necessários ao fortalecimento e engrandecimento das escolas públicas comuns, de modo a materializar o propósito do legislador constitucional, de assegurar prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, a fim de garantir, em um futuro que sonhamos seja breve,   universalização do ensino e garantia de padrão de qualidade e equidade, sem deixar ninguém para trás.

Enquanto as escolas não têm condições de segurança para a retomada das aulas presenciais e a Covid-19 segue fazendo vítimas, o melhor seria não nos apressarmos. Colocando na balança o direito à educação, de um lado, e os direitos à vida e à saúde, de outro, precisa prevalecer, para estudantes, profissionais e famílias de todas as classes sociais, os direitos fundamentais à vida e à saúde, sem os quais nenhum outro subsiste.

Enquanto aguardamos, podemos buscar extrair, deste momento tão crítico para toda a humanidade, lições que poucas escolas são capazes de ensinar: sobre o valor da convivência; a importância da saúde, própria e dos outros; a relevância das escolhas conscientes, pautadas na solidariedade e na colaboração; a finitude da vida e o verdadeiro significado dos momentos mais singelos da existência.

Ana Cláudia M. de Figueiredo – Advogada. Coordenadora do Comitê Jurídico da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down. Conselheira no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal de 1987 a 1994.

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