O Ur-Fascismo brasileiro e Bolsonaro como sua consequência, por Sergio Saraiva

Nada é mais poderoso que uma ideia cujo tempo chegou. E se essa ideia e seu tempo forem o fascismo?

O Ur-Fascismo brasileiro e Bolsonaro como sua consequência

por Sergio Saraiva

Nada é mais poderoso que uma ideia cujo tempo chegou. E se essa ideia e seu tempo forem o fascismo?

Esse parece ser momento atual vivido pelo Brasil – e em grande parte pelo mundo, um retrocesso ao fascismo.

Nosso momento de fascismo, porém, não começa agora – antes, deveríamos marcá-lo em 2013 – a ressaca e a inflexão da nossa socialdemocracia – e atinge seu ápice com a chegada da família Bolsonaro ao poder.

Mas não nos deixemos iludir: Bolsonaro é consequência e não inspiração ou causa do Ur -Fascismo brasileiro.

Ur Fascismo e o momento brasileiro.

”Ur-Fascismo”, é uma palestra que o filósofo Umberto Eco proferiu na Universidade Columbia, em abril de 1995. Já se vai há 25 anos. E relata acontecimentos vividos por Eco na Itália fascista de Benito Mussolini na década de 40 do século passado.

Mas como o fascismo é eterno, descreve a perfeição o Brasil de Bolsonaro de 2019.

Porém, antes, talvez devamos nos perguntar o que motiva o renascimento desse fascismo?

A explicação de Eco ajusta-se como uma luva ao momento brasileiro pós-Lula, ou antes, anti-Lula.

Explica Eco:

“O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos”.

Não é preciso muito esforço de memória para lembrar de como nossas classes-médias reagiram em relação a melhoria da condição social dos pobres na era Lula. Dividir com eles espaço em aeroportos se tornou ofensivo e em shopping center chegou a virar caso de polícia.

Continua Eco:

“Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu auditório”.

E os que ascenderam com Lula tampouco deixaram de se aburguesar. Como explicou Mano Brown em uma entrevista ao Le Monde: “Lula deu oportunidade para que as pessoas tivessem coisas; agora essas pessoas querem a polícia para proteger as coisas que elas têm”.

Ou ainda:

“A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O iluminismo, a idade da Razão, é visto como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”. Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem – contida em alguma “verdade primitiva”.

Em um tempo de completa transformação como o atual, onde o que se chama de 4ª revolução industrial ou “economia 4.0” está transformando o mundo e as relações sociais e econômicas em algo que não sabemos o que será – mas não será o que conhecemos, até aqui – o apelo ao tradicionalismo é antes de mais nada um refúgio. E tome-se “menino veste azul e menina veste rosa”, “tradicional família brasileira”, “Deus e Pátria” e terraplanismo.

E ainda nesse campo, vejamos como Eco identifica no fascismo muitas das atitudes de Bolsonaro, dos seus filhos e dos seus seguidores:

“O Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma invidia penis permanente”.

Se Umberto Eco tentasse descrever o momento brasileiro, escreveria o mesmo.

Mas Umberto Eco também nos dá o ferramental lógico que nos permite entender como alguém medíocre e grosseirão como Bolsonaro pode ser apoiado por um leque tão diverso da sociedade brasileira – desde o semianalfabeto neopentecostal ao procurador do Ministério Público Federal.

A correia de transmissão do Ur Fascismo e os apoiadores de Bolsonaro

Sim, Bolsonaro tem apoio, e muito. Isso é algo que as força progressistas que lhe fazem oposição devem levar em consideração. Mas não, não por qualquer talento especial de Bolsonaro – que ele não os tem. Bolsonaro é só um ícone para personificar o “Ur-Fascismo brasileiro”.

Acompanhemos o raciocínio de Eco:

“Acontece com a noção de “fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein, acontece com a noção de “jogo”. Um jogo pode ser ou não competitivo, pode envolver uma ou mais pessoas, pode exigir alguma habilidade particular ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Os jogos são uma série de atividades diversas que apresentam apenas alguma “semelhança de família”:

1 – 2 – 3 – 4 – ou – abc bcd cde def

Suponhamos que exista uma série de grupos políticos.

O grupo 1 é caracterizado pelos aspectos “abc”, o grupo 2, pelos aspectos “bcd” e assim por diante.

2 (bcd) é semelhante a 1 (abc) na medida em que têm dois aspectos em comum. 3 (cde) é semelhante a 2 (bcd) e é semelhante a 1 (abc) – têm em comum o aspecto “c”.

O caso mais curioso é dado pelo 4 (def), obviamente semelhante a 3 (cde) e a 2 (bcd), mas sem nenhuma característica em comum com 1 (abc). Contudo, em virtude da ininterrupta série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e 1.

O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista”. 

Genial.

Os apoiadores de Bolsonaro

Agora, vamos utilizar essa teoria – 1 – 2 – 3 – 4 – ou – abc bcd cde def – para explicarmos o Ur-Fascismo brasileiro.

Para tanto, vamos nos valer do trabalho de Isabela Oliveira Kalil – doutora em antropologia pela USP e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política e da PUC. Em suas pesquisas, ela identificou 16 grupos que formam o bolsonarismo.

O estudo foi – ou seria – publicado em uma edição da revista Veja que, contudo, não consegui localizar.

A saber:

Meritocratas – pessoas de classe média alta com elevado nível de escolarização. São empresários e profissionais liberais (médicos, advogados, engenheiros) e gostam de enfatizar que “venceram pelo mérito”. Têm um acentuado sentimento antipetista e clareza do que vem a ser um Estado liberal. Afirmam que as discussões em relação a gênero e sexualidade são secundárias.

Pessoas do bem – brasileiros de classe-média com mais de 35 anos e que aparentemente defendem as instituições de Estado. Acreditam que a Polícia Federal poderia substituir o Supremo Tribunal Federal e uma intervenção militar seria bem-vinda. São antipetista e apontam a corrupção e a impunidade como os maiores problemas do país.

Militares e ex-militares – homens e mulheres que têm ou tiveram carreiras dentro das Forças Armadas ou corporações policiais. Vinculam a ascensão das facções criminosas e a escalada da criminalidade ao sucateamento das instituições e à negligência dos governos de esquerda com a segurança pública.

Monarquistas – desprezam ideias à esquerda. Não reconhecem a proclamação da República, por não ter tido apoio popular. Defendem a divisão do poder entre o chefe de Estado, com o monarca da linhagem Orleans e Bragança, e o chefe de governo eleito. Apoiam Bolsonaro pelo discurso pró-militar.

Homes viris – defendem a ideia de que o cidadão deve ter o direito de fazer justiça com as próprias mãos. Formam um grupo majoritariamente jovem com idades entre 20 e 35 anos. Oriundo de diferentes classes sociais. Veem no porte de armas uma solução para a violência urbana – identificada como o maior dos problemas sociais.

Fiéis religiosos – fiéis de todas as faixas etárias que defendem a “família tradicional”- pai, mãe e filhos. Acreditam que esse modelo de família está ameaçado. Atribuem à esquerda – principalmente ao PT – o motivo da inversão de “valores” no país em favor do que chamam de “ditadura gayzista”.

Líderes religiosos – são padres, pastores e cantores evangélicos. Figuras que exercem forte influência doutrinária. Arautos do que é considerado formas de conduta adequadas e integras. Repudiam o que chamam de “ideologia de gênero” e o “kit gay”. São críticos do feminismo, principalmente no que diz respeito ao aborto.

Femininas e “bolsogatas” – mulheres de 20 a 30 anos de classe-média alta ou classe alta. São independentes financeiramente e contra a “vitimização”. Usam o termo “feminina” em oposição à “feminista”. Repudiam o assédio e violência e se alinham ao discurso anticorrupção.

Etnias de direita – pessoas negras, indígenas, orientais e imigrantes. Acreditam que os governos de esquerda fragmentam a “unidade nacional” e que Bolsonaro poderia “unificar” o país com base na ideia de que “o Brasil é um só”. Defendem o fim das cotas em alguns casos e criticam o que consideram “vitimismo”.

Homossexuais conservadores – grupo essencialmente masculino. Não são uma grande base de apoio de Bolsonaro, embora sejam essenciais para afastar o discurso da homofobia. Opõem –se ao discurso LGBT e acham que temas como corrupção e combate à violência se sobrepõem aos seus direitos.

Periféricos de direita – são oriundos das classes sociais mais baixas e defensores do “Estado mínimo”. Incluem profissionais com carteira assinada, autônomos, pequenos empreendedores, desempregado e trabalhadores informais. Têm um discurso de revolta contra a violência e a impunidade

Mães de direita – mulheres de 30 a 50 anos de classe-média baixa, com filhos em idade escolar. Afirmam não ter preconceito de gênero nem ser contra a união de pessoas do mesmo sexo, mas acham que as crianças devem ser “protegidas” dessa realidade. Temem a “doutrinação marxista” na educação.

Estudantes pela liberdade – jovens universitários ou estudantes do ensino médio. Eles se veem privados da participação em grêmios e centros acadêmicos em razão de seus posicionamentos políticos. Criticam políticas afirmativas e vislumbram na “doutrina marxista” uma grande ameaça à educação.

Nerds, gamers, hackers e haters – grupo também majoritariamente masculino, formado por jovens com idades entre 16 e 34 anos. Foram os principais responsáveis pela construção da imagem do “mito”. Agem geralmente de forma organizada e costumam fazer campanhas de assédio on-line contra perfis progressistas, feministas, de lésbicas e gays.

Influenciadores digitais – liberais e conservadores. Produzem conteúdo para as redes sociais. Alguns se lançaram candidatos e foram eleitos. Não se veem inteiramente contemplados por Bolsonaro, seja política, seja moral ou economicamente, mas acreditam que, no momento, ele representa a melhor alternativa.

Isentos – normalmente expressão suas opiniões políticas apenas em círculos mais restritos de amigos ou em reuniões familiares. Tem forte sentimento antipetista, anticorrupção e antissistema. A defesa de Bolsonaro é circunstancial por significar a “saída do PT”. É o grupo que tem apresentado as maiores defecções.

Todos esses grupos, minorias isoladamente, encontraram entre si e em Bolsonaro algum ponto em comum que lhes deu um sentimento de união. O antipetismo e antilulismo os maiores deles.

Quousque tandem abutere Catilina patientia nostra

Até quando viveremos sob a égide desse neofascismo ou Ur-Fascimo?

Pelo tempo em que ele for uma ideia força. Mas esse tempo deve ser breve.

Primeiro, porque o fascismo é antes de mais nada o momento dos medíocres. Não trará as soluções esperadas. Principalmente em relação aos interesses tão variados, quando não antagônicos, dos grupos que formam o bolsonarismo. O fascismo quando no poder é seu principal inimigo por si próprio.

Segundo, porque a revolução tecnológica em curso não pede autorização, ela simplesmente ocorre. E, se Marx estiver certo, ao mudar a infraestrutura, a superestrutura se altera como consequência. Alguém vê Bolsonaro ou o bolsonarismo como condutores de futuro?

Por fim, Maiakovski: “o mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas”.

PS: Oficina de Concertos Gerais e Poesia – um lugar à esquerda.

Redação

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