Izaias Almada
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
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O verdadeiro e cruel mecanismo, por Izaías Almada

O verdadeiro e cruel mecanismo

por Izaías Almada

Há quase cem anos, mais exatamente no dia 16 de julho de 1921, o mundo começava a ser sacudido por um dos mais infames processos penais na história da humanidade e o consequente julgamento de dois cidadãos italianos que emigraram para viver e trabalhar nos Estados Unidos: os cidadãos Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti.

Um ano antes, 1920, perseguidos por serem anarquistas, foram presos sob a acusação de cometerem um assassinato na cidadezinha de South Braintree no Estado de Massachusetts, mortes essas derivadas de um assalto a uma fábrica de sapatos. Os mortos foram o agente pagador dos salários da fábrica, Frederick Parmenter, e seu guarda costas Alexandre Berardelli.

Mais de cem pessoas testemunharam a favor dos réus, negando que estivessem presentes à cena do crime, provando-se – inclusive – onde estavam. Outros, ameaçados, foram obrigados a mentir, a cometer perjúrio.

O verdadeiro assassino, o imigrante português Celestino Madeiros, entregou-se à polícia três anos depois, mas – como diria um juiz colonizado da cidade de Curitiba no Brasil, um século mais tarde, isso não vinha ao caso. “A lei é igual para todos”, dizem os cínicos. Sobretudo, nos Estados Unidos… Do Brasil.

Ao tomarem conhecimento da pena que lhes foi imposta, morte na cadeira elétrica, Sacco e Vanzetti gritaram para o mundo: “podem crucificar os nossos corpos hoje, como estão fazendo, mas não podem destruir nossas ideias que permanecerão”.

Triste e trágico desabafo, pois no mundo do século XXI poucos sabem sobre o movimento anarquista e muito menos sobre Sacco & Vanzetti. Os ideais de justiça social permanecem, sobretudo com o aumento da população mundial em escala vertiginosa.

Autoproclamando-se polícia do mundo, os Estados Unidos da America se tornaram um país arrogante, cuja política de intromissão nos negócios de outros estados vai até os dias de hoje com invasões e ameaças de guerra nuclear. O estado norte americano não conhece outra política senão a da força, criada já na colonização do seu atual território com a dizimação dos povos indígenas e na escravidão brutal imposta aos milhares de africanos que para lá foram trabalhar. O macarthismo seria outro exemplo de intolerância já em pleno século XX.

Desde então, tomado por um ufanismo doentio, os norte americanos sofrem de um complexo de perseguição paranoico e pensam que o mundo está sempre querendo destruí-los, sejam anarquistas, comunistas, socialistas e até extraterrestres. Seus super heróis estão sempre a salvar o mundo… Está aí toda a produção de Hollywood e das séries televisivas que não me deixam mentir. Uma paranoia criada para justificar, entre outras barbaridades, a manutenção de sua indústria armamentista, esta que se constitui na maior máquina de guerra a serviço da estupidez humana.

Os italianos Sacco e Vanzetti não escaparam a essa paranoia, mesmo sem a televisão, a internet e as redes sociais para desmoralizá-los. Imigrantes, com ideias humanistas e de igualdade social, em defesa dos trabalhadores dos EUA e de todo o mundo, tinham que ser detidos e eliminados. Era preciso cortar o mal pela raiz. Dar o exemplo

Interessante aqui relembrar o discurso de um dos advogados da defesa dos dois condenados sem provas, Fred. H. Moore, reproduzido na peça teatral dos dramaturgos italianos Mino Roli e Luciano Vincenzoni, texto que dá origem ao roteiro do magistral filme “Sacco & Vanzetti” do diretor Giuliano Montaldo e que demorou nove anos para ser lançado no Brasil, censurado que foi pela ditadura civil/militar de 1964.

Palavras do advogado Moore: “Senhores da Corte, senhores jurados. Seria o meu dever fundamental fazer um resumo dos testemunhos prestados neste processo… Sublinhar a improcedência dos relatórios da Acusação, os álibis irrefutáveis exibidos pela Defesa… Deveria convidá-los a refletir sobre certo barrete e se o furo causado de um ou outro modo possa ser prova irrefutável de culpabilidade. Deveria repetir-lhes e demonstrar-lhes uma vez ainda que Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti, no momento do assalto pelo qual foram acusados, encontravam-se um no Consulado Italiano de Boston, outro em Plymouth. Deveria analisar cada elemento, refutar cada elemento da Acusação, concluir com sutis argumentações demonstrando a inocência de Sacco e Vanzetti. Deveria agir assim. Mas se a puerilidade da Acusação, se a evidente má fé das testemunhas e se a vontade de atingir, a todo custo, estes dois inocentes não os convenceram até este momento, como posso esperar convencê-los agora, com minhas simples palavras? Não, não falarei deste processo, cujo tema deveria ser: homicídio por roubo. Mas falarei do outro processo, o verdadeiro, que se desenrolou neste recinto. A Acusação deu demasiada ênfase ao fato de Sacco e Vanzetti serem anarquistas e desertores, mas isso não faz deles dois assassinos. Lembrem-se de que eles estão aqui para serem julgados sobre sua opinião política. A Constituição do nosso país, uma das mais iluminadas de todo o mundo civil, não deixa sombra de dúvida sobre este ponto: dois seres humanos devem ser julgados independentemente de sua opinião política, de sua raça e religião. Rosa Sacco, a mulher do acusado, logo que soube que o seu marido foi detido, queimou todos os livros de política que ele conservava em casa. Este é um episódio indigno, senhores do júri! Nenhum cidadão americano deveria ser posto na condição de queimar os livros que prefere e ama. Queimam-se os livros, destroem-se as ideias, suprime-se a liberdade… Tenho dito, Meritíssimo”.

Curto e grosso. Os dois italianos já haviam sido julgados pela imprensa e, consequentemente, pela opinião pública(da). Testemunhas foram ameaçadas dentro do tribunal e fora dele, chantageadas com a perda de empregos ou mesmo com a própria prisão.

Difícil não lembrar esse acontecimento que sempre me comoveu, quer pela injustiça em se condenar dois inocentes à morte, mas também pela brutalidade e pela insensibilidade de um sistema que vive da exploração do trabalho e do acúmulo imoral de riqueza. Mais do que isso, pela irracionalidade da massa ignara e belicosa que destila seu ódio contra os que verdadeiramente trabalham em condições precárias para que muitos possam se divertir em seus prostíbulos.

O cruel processo de perseguição ao ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva inscreve-se, nesse limiar do século XXI, no mural das grandes injustiças sociais que de tempos em tempos maculam a convivência pacífica entre os homens.

Brutal, impiedoso, maquiavélico, é preciso que os brasileiros aprendam de uma vez por todas que lugar de pobre é no fundo do quintal, nas periferias, nos presídios, na coleta do lixo, na limpeza dos bueiros, espremido em metrôs e ônibus no início e no final do dia, a receber salários de fome sem reclamar, não ter acesso a escolas e universidades e esperar três, quatro, cinco meses para uma consulta médica.

E para que isso fique bem claro e que não pairem dúvidas sobre a questão é mandar para a prisão àquele que, mesmo sem ser um radical, desafiou tal sistema. Para isso basta buscar pela experiência exemplar dos nossos “irmãos” do norte.

O ex-presidente Lula acabou sendo entregue às feras há uma semana após fazer um discurso magistral, discurso esse que também me remeteu ao discurso de Bartolomeu Vanzetti ao saber que ele e seu amigo Nicola Sacco iam ser eletrocutados.

Reflitamos sobre o que disse Vanzetti: “Eu digo que sou inocente. Sou inocente, não só do homicídio de South Braintree, mas em toda a minha vida nunca roubei, nunca matei ninguém, nunca derramei sangue humano. Isto eu quero dizer-lhes de modo que fique bem claro. Toda a minha vida eu combati o mal. Não só o mal condenado por lei e pela moral comum, mas também o mal admitido e protegido pela lei e pela moral comum. A exploração do homem pelo homem, a ofensa à dignidade humana. E se há uma razão pela qual estou aqui como culpado… se há uma razão pela qual, dentro de poucos instantes, vocês poderão me destruir, é esta e nenhuma outra. Li em um jornal que nem mesmo um cão teria sido tratado como nós temos sido tratados neste processo. Eu digo que nem mesmo um cão sarnento teria sofrido o tratamento que nós temos sofrido ultimamente. O senhor, Juiz Thayer, tem estado contra nós desde o princípio, mesmo antes de nos olhar no rosto. Para o senhor foi suficiente saber que éramos dois anarquistas e de um momento para o outro nos transformamos em dois assassinos. O senhor deu a conhecer a sua opinião sobre nós em várias ocasiões, juiz Thayer: num trem, no Clube Universitário de Boston; no Golfe Clube de Worcester. Estou certo de que se as pessoas que relataram suas palavras contra nós tivessem a coragem civil de subir ao banco das testemunhas e confessar os preconceitos do senhor, o seu ódio cego e sem medida por nós e pelo que representamos, estou certo de que, se isso acontecesse, talvez MM. – e me desagrada dizer isso porque o senhor é um velho tanto quanto meu pai… talvez MM., o senhor é que estivesse aqui, no nosso lugar. Vocês usaram de todas as armas para influenciar as paixões e os preconceitos dos jurados. Eles nos odeiam neste momento porque nos declaramos contrários à guerra. Nós acreditamos que a guerra seja uma coisa errada e tomamos consciência, dia a dia, das suas consequências e dos seus resultados. Onde está o progresso espiritual conseguido? Onde está o respeito pela vida humana? Nunca, como hoje, depois da guerra, tem havido tantos crimes e tamanha corrupção. Só tem uma coisa que me consola. Que estou sofrendo e pagando por culpas que cometi efetivamente. Estou sofrendo porque sou um anarquista e efetivamente sou um anarquista. Estou sofrendo porque sou italiano e efetivamente sou italiano. Mas estou tão convencido de estar com a razão, tanto que, se vocês me matassem duas vezes e se eu pudesse voltar a viver duas vezes, eu viveria para fazer exatamente aquilo que fiz até hoje. Falei até agora só de mim mesmo e quase me esquecia do meu amigo Nicola. Talvez eu fale melhor do que ele, mas, muitas vezes, ouvindo as suas palavras simples, sinto-me pequeno e miserável. Muitas vezes tenho precisado esconder a minha comoção diante de Nicola, este homem que vocês taxaram de ladrão e assassino, e que irão condenar. Mas se vocês o matarem, o seu nome reviverá no coração de toda a gente, ao passo que os seus ossos, Sr. Katzmann, e os seus Sr. Juiz, já terão sido destruídos pelo tempo; quando os seus nomes, as suas leis e as suas instituições não forem mais que uma frágil lembrança daquele passado em que o homem era lobo do próprio homem. Era o que eu tinha a dizer. Obrigado por terem me ouvido.

Alguns anos depois deste discurso o nazi fascismo tomou conta de alguns países pelo mundo dando origem a Segunda Guerra Mundial. Mais do que isso: aproveitando a derrota militar do nazi fascismo, Os Estados Unidos da América se impuseram como polícia do mundo, criando um conceito duplo de democracia, a deles e a dos outros.

LULA LIVRE!

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

4 Comentários

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  1. É doloroso lembrar desse

    É doloroso lembrar desse caso, como é muito pior vermos uma repetição desse poder judiciário , digo isso no sentido geral, com essa perseguição da turma de Curitiba contra o ex-presidente Lula. Em pelo século XXI.

  2. O tal juizinho

    Sacco e Vanzetty eh leitura obrigatoria a qualquer ser que se diga humano. Imagina se que em direito haja ate disciplina focada nos poderes do estado e nas tiranias. Uma nota de 100, caro amigo, se este juizeco alguma vez ouviu falar da dupla Sacco&Vanzetti. Mais provavel que ele tenha o cerebro lavado por xuxa e outras drogas da globo….

  3. Lembro de ter lido numa

    Lembro de ter lido numa enciclopédia do advogado, no verbete “erros judiciais” sobre o caso SACCO & VANZETTI. Até hoje guardo a fala de uma testemunha ao indigitado juiz, quando este lhe perguntou se jurava dizer a verdade no tribunal. A testemunha lhe respondeu: “Sim, meritíssimo, a despeito do terror que infligem a quem tenta dizer a verdade neste tribunal”.

  4. Assassinato
    Os italianos foram, na realidade, assassinados pelo Estado. O fato de ter acontecido um julgamento não elimina a culpabilidade do Estado, já que as provas da inocência não foram consideradas. Foi realmente um julgamento e, consequentemente, um assassinato político.  Sobre o caso Lula, o que eu não entendo é: 1-) quem deu o poder ao árbitro de Curitiba para retirar o caso da comarca do Guarujá; 2-) o poder de rejeitar testemunhas da defesa; 3-) o poder de não ser obrigado a demonstrar, pelo menos, uma prova documental; 4-) escrever que o caso não tinha ligação com os desvios da Petrobras e ninguém retirar dele o processo; 5-) está em que lei que é possível acreditar na acusação baseada em convicção; e 6-) mandar executar um condução coercitiva sem antes convocar para depoimento. Que poder é esse que só esse árbitro tem? De onde vem esse poder único e devastador? E as instâncias superiores, para que servem? Esse já é o segundo caso de condenação política, sem provas. O primeiro foi o Mentirão. Teremos outros? Isso não vai parar?  

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