Ocupar ruas e praças faz diferença?, por Arnaldo Cardoso

O melhor que se pode esperar é que a ação dos sardinhas na Itália represente um estímulo para o resgate da esfera pública da cidadania e da confiança em uma democracia mais participativa

Ocupar ruas e praças faz diferença?

por Arnaldo Cardoso

Enquanto o final de semana no Brasil foi marcado por intensa atividade nas redes sociais digitais e aplicativos de mensagens como whatsapp, repercutindo o episódio da divulgação de vídeo produzido pelo então  secretário de cultura do governo Bolsonaro inspirado em discurso do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, e colocando em questão a capacidade das instituições em frear os ímpetos autoritários do governo, e a eficácia das manifestações de indignação de parte dos cidadãos nas redes sociais; na Itália, país que também enfrenta o crescimento da extrema direita, o final de semana teve como principal acontecimento, mais precisamente na cidade de Bologna, capital da rica região da Emilia Romagna, os preparativos e realização de uma manifestação na Piazza VIII Agosto que reuniu cerca de 40 mil pessoas, naquele que foi o último final de semana antes da eleição regional que ocorrerá no próximo dia 26.

Essa manifestação em Bologna ocorreu pouco mais de dois meses após a primeira de uma série convocada pelos quatro jovens da região, autodenominados “sardinhas”, preocupados com o avanço da extrema direita no país e especialmente sobre seu crescimento na região que nas últimas décadas foi um tradicional reduto da esquerda italiana. Hoje o partido de extrema direita Lega, comandado por Matteo Salvini, se afirma como a primeira legenda do país em intenções de voto e ameaça conquistar a região.

Desde novembro passado os sardinhas empreenderam uma jornada pelas várias regiões do país, realizando manifestações em praças públicas que reuniram dezenas de milhares de cidadãos insatisfeitos com a política e sua escalada de violência na disputa pelo poder entre os partidos políticos italianos. Reclamam também do contágio disso sobre as relações interpessoais no país, ao mesmo tempo em que os sérios problemas econômicos e sociais italianos parecem não encontrar solução. Com cartazes e slogans contra a política de ódio, o racismo, a xenofobia, a intolerância, o nacionalismo, italianos das mais diferentes idades se reuniram nas praças e manifestaram a crença na existência de outras possibilidades para a política. Sem associação a partidos políticos, mas afirmando a confiança na política, os sardinhas provocaram debates nos veículos tradicionais de comunicação como jornais e canais de televisão e também na internet. Em sua página no Facebook e outras redes sociais milhares de seguidores nos últimos dois meses acompanharam diariamente uma criativa comunicação, com postagens dos sardinhas e milhares de comentários de apoiadores e opositores. No último domingo, enquanto quarenta mil pessoas assistiam a apresentações artísticas, principalmente de música, intercaladas por vários depoimentos de apoiadores num disputado palco, a transmissão ao vivo pela página dos sardinhas no Facebook chegou a ter audiência de 250 mil pessoas, em sua maioria apoiadores e simpatizantes registrando comentários de estímulo e agradecimento.

De Salvini e outros representantes dos partidos de direita e extrema direita da Itália os sardinhas ouviram deboche, ridicularização e ameaças de que serão “devorados” por “tubarões”, no “imenso mar aberto” entoado pelos sardinhas tendo como inspiração a bela música de Lucio Dalla “Com’è profondo il mare”. O “imenso mar aberto” que deu nome ao manifesto dos sardinhas, é usado como metáfora da política, onde peixes pequenos se juntam e se movem em cardumes compactos, ganhando força pela união. Na poética dos sardinhas, a reunião, a empatia e o acolhimento são antídotos ao ódio e ao isolamento.

Representantes da esquerda tradicional, como do Partido Comunista Italiano, alertaram sobre os perigos do voluntarismo desses jovens, sem bandeiras políticas e programas claros, produzir nas eleições efeito contrário ao desejado, fortalecendo o discurso e agenda da extrema-direita, com propostas simplistas e desonestas mas de fácil apelo popular, defendendo fechamento de portos e fronteiras contra imigrantes como forma de combater a violência e o desemprego, e ataques ao euro e à União Europeia como responsáveis por todos os problemas econômicos da Itália.

Já o Partido Democrático, de centro-esquerda, aparentemente o potencial favorecido pela campanha dos sardinhas, não poupou elogios aos fundadores do grupo cuja capacidade de mobilização, sem recursos financeiros, superou em muito a de tradicionais lideranças e partidos políticos com suas caras e pesadas estruturas. Nicola Zingaretti, secretário e líder do Partido Democrático na região da Emilia Romagna, postou ontem na página dos sardinhas comentário com elogio e agradecimento ao grupo: “Sozinho se vai mais rápido, juntos se vai mais longe. Obrigado por essa paixão e esse protagonismo. Oxigênio para a democracia nascida da luta antifascista”.  

Em tempos de digitalização da política em que as estratégias de mobilização pela internet são apropriadas por agentes dos diferentes espectros políticos, produzindo arenas virtuais de enfrentamento político, a aposta dos sardinhas na reunião de cidadãos em praça pública (ainda que convocados por meios digitais) para o engajamento político é salutar mas deixa como uma das incógnitas sua eficácia eleitoral.

O resultado da eleição na Emília Romagna no próximo dia 26 além do impacto sobre o futuro próximo da Itália provocará novos debates e estudos sobre as formas da ação política em tempos onde a técnica tem sido usada principalmente para sufocar a espontaneidade da política e contribuído para a perversão do melhor sentido da vontade geral e da República.

Mattia Santori, representante dos sardinhas,  em sua mensagem ao final da manifestação em Bologna avaliou “Valeu a pena, voltamos a fazer política…”.

O melhor que se pode esperar é que a ação dos sardinhas na Itália represente um estímulo para o resgate da esfera pública da cidadania e da confiança em uma democracia mais participativa como meio de ampliação e aperfeiçoamento do processo democrático. Que a inércia dos partidos e descolamento de suas bases, denunciadas por muitos cidadãos, sejam reconhecidas pelos líderes partidários e possam ser corrigidas para que os partidos voltem a desempenhar os papéis que lhes são confiados numa democracia representativa. E que da experiência italiana, países como o Brasil, que se encontram em situação política e social tão crítica, possam tirar algum aprendizado.

Arnaldo Cardoso é cientista político.

Redação

1 Comentário

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  1. Estou gostando da linha jornalística,muita apropriadas ao momento POLÍTICO… Do Brasil,na sua crise política e governamental,
    de OBSCURIDADE SEM FIM.

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