Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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— Os cães ladram, Sancho! É que estamos avançando, por Ion de Andrade


Foto: Reprodução

Por Ion de Andrade

Incorporada à cultura do cotidiano esse diálogo de Miguel de Cervantes entre Dom Quixote e Sancho Pança, ilustra à perfeição o momento atual da crise brasileira. Sim, porque demonstra que, não fosse a relevância dos feitos da era petista, as forças conservadoras não teriam tido a “necessidade” desse esgarçamento sócio-político-econômico e moral com que nos brindou o golpe, a sua legião de monstros e a sua terra arrasada.

Sejamos claros, conscientemente ou não, (porque parte da tomada de decisões é intuitiva de todos os lados) esse preço, alto demais, só se tornou aceitável para a burguesia brasileira e seus aliados (sob a hegemonia que têm) pelo fato de que estavam todos eles profundamente convencidos ao nível das singularidades individuais, (pois da conspiração participaram muitíssimos e não só o topo), de que enfrentavam um verdadeiro esforço de guerra.

Portanto, esse esforço extremo, – de lançar a honradez às favas e condenar um inocente, de destruir tecidos inteiros da economia nacional, de favorecer a sujeição externa e as humilhações internacionais, de atuar pelo prejuízo de segmentos importantes da economia nacional, ou de reduzir o mercado de trabalho e o mercado consumidor- embora beneficiem economicamente o imperialismo, fazem parte do sacrifício de guerra para tentar enterrar de uma vez a única coisa que nesse caso urge inadiavelmente de ser enterrada: a Revolução Brasileira.

Mas não atribuamos a esse termo o conceito clássico de Revolução, da Comuna de Paris, da Revolução Russa, Chinesa ou Cubana, marcadas pela ruptura e pela tomada do poder por forças populares. O caso brasileiro representa algo ao mesmo tempo mais profundo (porque mais definitivo) mas menos espetacular pois não há e não haverá um “momento” de “ruptura” e posterior substituição desse Estado por outro. Se trata, no nosso caso, atenção aqui, do impedimento do alcance do “ponto de não retorno” do processo de consolidação da nossa democracia social, o que representaria o exercício do poder, (no mesmo Estado que aí está), de um novo bloco histórico sem as rupturas que marcaram as revoluções do passado.

Esse é o modelo de revolução cujo banimento mereceu o sacrifício de guerra que hoje faz com que, de forma difusa nesses segmentos, exista o reconhecimento de que as coisas estão piores, mas que é melhor assim, pois o petismo perdeu.

Não vamos nos esquecer que por “Revolução” podemos entender tanto o momento catártico da tomada do poder, como na Revolução Francesa, como o processo pelo qual vai se afirmando a nova ordem numa capilaridade que exprime a ação de certa classe social ao longo do tempo. Para nos atermos à França, hoje podemos enxergar nos acordos realizados entre feudos na idade média pela liberação do comércio entre si, a intercessão da burguesia. Tanto quanto podemos ver no Estado Social francês contemporâneo o dedo do proletariado.

Observe-se também que, diferentemente de tudo o que nos precedeu, não se trata agora da disputa do Poder restrito, após a qual o próprio Estado é substituído por outro, não, o que está em disputa hoje é a supremacia no contexto do mesmo “Estado de direito”, que muda de direção e se preenche de outros conteúdos sob a governança do proletariado, quando amplia a aprofunda a democracia.

Por esse enfoque, a própria burguesia não tem como, ou não deveria por prudência, recuar muito das conquistas sociais precedentes e vigentes, pelo risco da perda, no lance seguinte, do comando do Estado.

Essa é também uma das razões de por que um golpe de força não está na mesa, pois haveria risco real, na volta ao Estado de direito, afinal a única forma de Estado capaz de acomodar a formação do Poder em meio à complexidade gerada por uma Sociedade civil densa, de haver uma ainda mais poderosa supremacia popular no seu comando, o que significaria, simplesmente, mais democracia, mais direitos, mais inclusão e mais cidadania.

O Brasil é, portanto, um grande laboratório para a humanidade do ponto de vista do que virá depois, pois aqui se joga o velho jogo, mas com algumas novas regras. Nesse laboratório, mas só o futuro o dirá, talvez a burguesia brasileira esteja indo muito longe em termos de crueldades com as conquistas consolidadas pelas maiorias, fazendo como quem farreia com a poupança, mas corre o risco de perder o emprego. Quanto a nós, jogando esse jogo pela primeira vez com Lula nos faltou clareza sobre a nossa missão histórica e sobre a natureza mesma desse processo revolucionário novo.

Os estrategistas do lado de lá deveriam começar a interessar-se pelo que acontecerá depois da farra, não como situação de convulsão ou de instalação de um outro Estado, mas porque novos consensos, com ou sem Lula, (o que significa sempre com um Lula inapagável) podem vir a ser erguidos com força e clareza histórica ainda maiores.

Hoje o proletariado deve saber que a sua revolução é democrática, é ele, aliás, que aporta o conteúdo democrático ao Estado de direito, o que nos permite então, nesses momentos, denominá-lo de Estado democrático de direito. Isso significa que, sob esse novo comando o “mesmo” Estado se deu a tarefa de corrigir as assimetrias sociais e de produzir protagonismo das maiorias ou das multidões emancipando-as e tornando-as cidadãs. Um processo que se realimenta e produz mais participação social e mais democracia. Razão porque trazer as periferias à contemporaneidade é tão extraordinariamente estratégico para nós.

O fato que torna a tarefa hegemônica desse componente atrasado, submisso e financista da burguesia brasileira ainda mais difícil é a misteriosa situação nova de que essa revolução, que implica num projeto de desenvolvimento robusto com pesados investimentos do Estado, que implica em inclusão, cidadania, renda e novos horizontes para uma crescimento exponencial da vida espiritual das massas, abre, ao mesmo tempo, atenção aqui, uma quantidade igualmente exponencial de ótimos negócios para outros segmentos da burguesia, não hegemônicos hoje.

O que há de novo aí é que esse Projeto de democratização do Estado e de emancipação das massas, acoplado à sua robusta pauta econômica de encomendas públicas é incrivelmente tentador para diversos segmentos hoje não hegemônicos da burguesia, segmentos esses, aliás, durissimamente punidos no golpe.

Então vivemos a inusitada e imprevista situação de estar disputando a hegemonia do campo burguês com os setores burgueses que hoje a hegemonizam. Atenção aqui: já sabemos fartamente que a burguesia é uma classe exploradora, a interessante pergunta que devemos nos fazer diante do cenário atual é se poderia ser subalterna num contexto de supremacia do proletariado no Estado, como o foi no feudalismo com a aristocracia.

Se admitirmos essa hipótese, a meu ver sustentável, descortinaremos novos cenários e possibilidades de afirmação do nosso Projeto Histórico, o único, aliás, que permitiria num processo de paz social e de reposicionamento dos atores, a emancipação material e espiritual das maiorias, uma democracia sem adjetivos, um robusto crescimento econômico e a afirmação nacional necessária ao Brasil perante o mundo.

Devemos articular, portanto, a aliança estratégica capaz de propor à nação essa Alternativa Histórica para o Brasil: Desenvolvimento econômico robusto com grandes encomendas públicas, democracia plena e participativa e emancipação das maiorias.

Se fizermos isso, que ladrem os cães, pois estaremos chegando.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

7 Comentários

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  1. O que ta acontecendo no

    O que ta acontecendo no Brasil nao me lembrou de Don Quixote.  Me lembrou de Gulliver:  o pais de uma das rainhas que ele encontra em suas aventuras eh chamado de “Laputa”.

  2. Só que essa burguesia é feroz

    Só que essa burguesia é feroz e escravocrata, vide um certo Banco que já quer demitir para recontratar escravos, ou a divida interna que é em grande parte fraudulenta!

  3. Blá blá blá.
    Pelo que vejo o

    Blá blá blá.

    Pelo que vejo o povo não entende porra nenhuma do que está acontecendo e também não está nem aí, mesmo levando pauladas de todos os lados.

    Nosso povo é uma merda.Para chegar a esta conclusão basta verificar pesquisas eleitorais que dão Bolsonaro em segundo lugar, por enquanto.  

    Não duvide da burrice do povo brasileiro. Se este sujeito for candidato e houver eleição em 2018 é provável que ele se eleja no primeiro turno.

    Penso que o Brasil está por merecer um bolsonaro já que esta provado que não merece um Lula.

  4. Boa

    Reflexão robusta pois acena para um Estado democrático que pode dar (como já deu num curto período) certíssimo se essas novas forças apontadas no artigo se articularem para afastar as cruéis e retrógadas forças ligadas ao golpe. Porém, o momento não é só interno. Como enfrentar, desarticular, a participação já não tão mascarada da grande nação do Norte que manipula as forças cruéis internas? Valeria outro artigo sobre o assunto.

  5. czar Nicolau II

    Nunca compreendi tão bem como agora a morte do czar Nicolau II e sua familia. Deveríamos ter feito isso em 85.

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