Os dogmas da economia globalizada em xeque, por Wellington Pereira e Nilson Maciel de Paula

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Ocorre que o devaneio em torno das virtudes do livre comércio, em meio às ilusões vendidas pelos arautos do neoliberalismo, foi interrompido pelas fissuras nos mercados globais.

Os dogmas da economia globalizada em xeque

por Wellington Pereira e Nilson Maciel de Paula

Os impactos econômicos e sociais induzidos pelo prolongamento da pandemia causada pelo covid-19 convoca a sociedade a repensar os dogmas neoliberais que norteiam o funcionamento dos mercados internacionais e a forma como os países se inserem na rede de produção global e interdependente. O funcionamento do comércio internacional é moldado por uma “lógica canibal” sustentada por dogmas camuflados como científicos, entre os quais estão a autossuficiência dos mercados e a inserção dos países nas cadeias produtivas globais regida por um certo fair play. Nessa interpretação todos os países (e empresas) podem participar do jogo desde que sejam “aptos” e ocupem posições previamente determinadas pela capacidade de produzir de forma mais “eficiente”, relativamente aos seus pares.

O contexto da pandemia do coronavírus deixa claro que a ideia de que todos os países ganham mais quando se especializam em produtos nos quais têm maior produtividade relativa é uma falácia, sobretudo quando vista sob a perspectiva da soberania nacional e dos interesses de sua população. Assim, a crença nas vantagens comparativas carrega uma inverídica premissa de igualdade, para a qual todas as atividades gerariam resultados semelhantes como vetores de desenvolvimento econômico. Ao longo da história esse argumento foi recorrentemente utilizado por policy-makers para defender os interesses econômicos de seus respectivos países, segundo a fórmula mágica da especialização relativa. Esse é a clássica e típica justificativa que só premia os países vencedores na história do capitalismo.

Ocorre que o devaneio em torno das virtudes do livre comércio, em meio às ilusões vendidas pelos arautos do neoliberalismo, foi interrompido pelas fissuras nos mercados globais. Ao mesmo tempo, as posturas antiglobalistas ganharam mais espaço e holofotes, sobretudo sob o governo de Donald Trump cujo discurso, agressivamente protecionista, mostrou ao mundo que o “America first” era mais do que uma simples retórica eleitoral. Assim, acastelado em sua posição hegemônica, o governo estadounidense redefine sua geopolítica reorientando as relações comerciais e produtivas em seu próprio benefício, e ignora solenemente seus impactos em outros países na arena da economia globalizada.

As denúncias recentes de que os Estados Unidos vêm praticando “pirataria moderna” ao bloquearem, por diferentes maneiras, o envio de cargas de equipamentos e outros produtos médicos e hospitalares produzidos na China reafirmam a prevalência da lógica do canibalismo no contexto das relações econômicas neste mundo globalizado. Esta é, na verdade, apenas uma demonstração pontual da necessidade dos países estabelecerem suas estratégias comerciais de acordo com sua capacidade de controlar rotas e condicionar suas decisões às necessidades domésticas.

Vê-se que essa pandemia tende a reforçar espíritos protecionistas encapsulados em atitudes nacionalistas. A vacilante União Europeia, já afetada pelo evento do Brexit, vê-se diante de níveis distintos de propagação da pandemia e de seus efeitos locais. A atenção de cada país às suas próprias tragédias e ao risco de contágio pelos vizinhos fragilizou os elos de integração regional. Além disso, sua continuidade como bloco regional sólido dependerá de uma agenda única e solidária de ajuda e recuperação econômica aos países mais afetados por essa crise. Crescem, portanto, receios de que os fantasmas da fragmentação nacionalista, que circularam pelo mundo em outros tempos, voltem a povoar as relações multilaterais e as estratégias geopolíticas.

Frente a este contexto de disputas potencialmente agressivas, o Brasil está diante de um grande problema após sucessivos governos terem negligenciado parcelas expressivas de seu parque industrial e o próprio desenvolvimento tecnológico. E ver isso ocorrer, de forma letárgica, como se fosse o mais natural dos movimentos de uma economia globalizada, representa um autoflagelo que gradativamente corrói a sociedade e a soberania nacional. Embora a dependência e a subjugação do país à indústria estrangeira seja um aspecto estrutural da economia brasileira, isso ficou explícito com a pandemia do covid-19 que desnudou a lógica canibalesca do funcionamento dos mercados internacionais. Portanto, ao acatar decisões corporativas e mercadológicas de especialização competitiva, os demais países se tornaram reféns de uma agenda claudicante, com prejuízos de difícil reversão para suas estruturas industriais e para suas agendas de soberania nacional. Tristemente, este desdobramento é mais preocupante em países pobres e em desenvolvimento, e mais evidente em momentos de crises, como a atual, quando os interesses de suas populações são subjugados à “lógica canibal” implícita no ideário do mercado livre e autossuficiente.

Quando os interesses soberanos de um país estão em jogo fica claro que o canibalismo passa a ser praticado explicitamente pelos próprios governos nacionais. Contudo, são poucos os que têm poder, de fato, nessa disputa. Os EUA, inclusive, têm padecido das decisões de suas empresas por terem transferido milhares de fábricas para a Ásia na busca por espaços mais competitivos. Como num efeito bumerangue, o setor de equipamentos e produtos médicos e hospitalares, até agora ausente do núcleo industrial estratégico, revela sua importância para a soberania nacional.

Assim, a defesa de ações conduzidas pelo Estado, que estimulem e fortaleçam a existência de um leque diverso de atividades produtivas, deveria ser aceita a partir da premissa que protege os interesses e a soberania nacional. Quando essa defesa estiver em contradição com o dogma da autossuficiência dos mercados, sua legitimidade decorrerá da maior coesão entre as ações do Estado e os interesses e as necessidades da população local.

É nesta perspectiva que se deve negar a lógica falaciosa de funcionamento dos mercados internacionais baseado no dogma de que os países devem se especializar nos (poucos) setores onde possuam maior produtividade relativa. Esse argumento ignora toda e qualquer preocupação em se garantir a soberania estratégica e o bem-estar do povo. Por isso, é necessário refutar dogmas que determinam o funcionamento das relações econômicas e sociais com base em princípios lógicos pouco aderentes às estratégias de desenvolvimento e à soberania nacional específicas de cada país. Nesse sentido, as escolhas pós-crise deveriam privilegiar uma compreensão mais ampla dos interesses econômicos em jogo, para se garantir maior altivez e independência das nações no exercício de sua soberania num mundo globalizado, qualquer que seja o sentido deste após o fim da pandemia, pois os dogmas da economia globalizada foram postos em xeque.

Wellington Pereira é professor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPR

Nilson Maciel de Paula é professor sênior do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPR

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. E, assim sendo, podemos pensar, dentro de nosso território, aí sim, em especializações (concentrações) de cada setor estratégico que quisermos desenvolver, em diferentes locais, sendo está uma forma de combatermos, ao mesmo tempo, os desequilíbrios regionais.

  2. Em relação à sua observação “Esta análise é superficial”, pode ser útil a leitura de A CLASSE MÉDIA NO ESPELHO de Jesse de Souza.

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