‘Os Miseráveis’ poderia ser escrito hoje, por Jorge Abrahão

A 10 mil km de Montfermeil, em Paraisópolis, a segunda maior favela da cidade de São Paulo, nove jovens foram mortos e a polícia atua com muita violência

‘Os Miseráveis’ poderia ser escrito hoje

Por Jorge Abrahão

Da Rede Nossa São Paulo

Desigualdade ainda é a marca de nosso tempo, seja no subúrbio de Paris ou em Paraisópolis

“Não existem ervas más, não existem homens maus. Existem somente maus cultivadores”. A frase de Victor Hugo, escritor, poeta e estadista francês do século XIX, aparece estampada na última cena do filme “Os Miseráveis”, do cineasta francês Ladj Ly. O filme, que dividiu o Prêmio do Júri de Cannes deste ano com “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho, e deve representar a França no Oscar, atualiza o romance do famoso escritor deixando claro que ele poderia ter sido escrito hoje e que a passagem de quase dois séculos não foi suficiente para resolver o que a história denunciava: seguimos miseráveis.

O filme foi rodado em Montfermeil, uma comuna situada em um subúrbio a 17 km de Paris, onde o diretor do filme viveu e a partir de onde retrata a desigualdade ainda existente na França. Para quem vê o filme fica evidente que Paris não representa a França. Como os Jardins não representam São Paulo; a Barra da Tijuca, Rio de Janeiro; Moinhos, Porto Alegre; nem Boa Viagem, Recife.

Em Montfermeil, a polícia atua em conluio com os políticos e traficantes e é violenta com a população mais vulnerável e os jovens.

Em certo momento do filme fica claro que o diretor quer passar uma mensagem: polícia, políticos, traficantes, imigrantes, comerciantes ou juventude, todos, sem exceção, são miseráveis e estão submetidos a um modelo de sociedade que os reduz e oprime. Porque compartilham o mesmo ambiente, vivem as mesmas tensões, os mesmos temores, independentemente do grupo a que pertencem. Fica clara a representação de nossa incapacidade de criar uma sociedade que permita que todos vivam com dignidade e liberdade.

Corta!

A 10 mil km de Montfermeil, em Paraisópolis, a segunda maior favela da cidade de São Paulo, nove jovens foram mortos e a polícia atua com muita violência. Em Vila Andrade, distrito a que Paraisópolis pertence, a idade média ao morrer é de 63 anos. No Morumbi, distrito vizinho e rico, é de 73 anos, uma diferença de 10 anos.

Seguramente, a morte de jovens é fator chave para explicar essa diferença de vida. Em Paraisópolis, onde vivem 100 mil pessoas, não há um equipamento público de cultura sequer e o baile funk tem sido uma das únicas opções de lazer para os jovens.

A Vila Andrade é o distrito que apresenta o maior tempo de espera por consulta com um clínico geral na rede pública de saúde do município: 75 dias. O tempo de espera para creche é de 261 dias e 10% dos bebês nascidos vivos em 2018 eram de mães com até 19 anos de idade. Os dados são do mapa da desigualdade publicado pela Rede Nossa São Paulo.

A desigualdade é a marca de nosso tempo e o desafio é reduzi-la em uma proporção maior que o crescimento das cidades, sob risco de instabilidades políticas e sociais.

É inconcebível vivermos com essas diferenças num mesmo país, numa mesma cidade, sobretudo porque há riqueza e recursos, porém, são mal distribuídos e as prioridades não são voltadas aos mais vulneráveis. Os protestos que ocorrem em muitas cidades do mundo nos dias de hoje —Santiago, Beirute, Bagdá, Paris e outras— estão relacionados a isso.

É chegado o momento de um pacto de redução das desigualdades na sociedade, envolvendo governos, empresas e sociedade civil. Temos conhecimento para enfrentar os problemas e reduzir as desigualdades. Carecemos de coragem para enfrentar os interesses envolvidos e de senso de bem comum para construir um patamar de dignidade para todos. Ninguém tem interesse em instabilidades sociais, mas no Brasil flertamos com a irresponsabilidade ao apostar em políticas econômicas que aumentam ainda mais a concentração de renda.

Não existem ervas más, não existem homens maus. Existem somente maus cultivadores.

A frase de Victor Hugo, os subúrbios de Paris e Paraisópolis fazem pensar que há algo que vai além da política —sem dela prescindir—, como estimular relações mais humanas em casa e no espaço público, e descobrir maneiras de criar laços de afeto que transcendam nossas diferenças.

Jorge Abrahão
Coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis.

*Conteúdo publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo

 

Redação

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