Os Sardinhas na Itália e a crise de representação política, por Arnaldo Cardoso

No cenário político italiano onde a crise de representação política vem se agravando a exemplo do que também ocorre em outros países

Os Sardinhas na Itália e a crise de representação política

por Arnaldo Cardoso

No cenário político italiano onde a crise de representação política vem se agravando a exemplo do que também ocorre em outros países, a onda de manifestações convocadas pelos “Sardinhas”, iniciada um mês atrás em Bologna – capital da Emilia Romagna – e que no último sábado (14) reuniu mais de cem mil pessoas na praça San Giovanni em Roma, deu voz a uma parcela da população até então silenciosa mas insatisfeita com a política de ódio que vem polarizando a sociedade, enfraquecendo as instituições do Estado democrático e os próprios partidos políticos. Essa insatisfação popular com a política encontra suas raízes na incapacidade que o sistema político vem demonstrando de produzir respostas efetivas aos problemas que afetam a vida dos cidadãos como a escassez e/ou precarização do emprego, a queda na oferta e qualidade de serviços públicos, a corrupção, a violência urbana e a falta de perspectivas para a grande maioria da população, de jovens a idosos.

Na trilha do agravamento da atual crise de representação política na Itália são marcos recentes a queda em dezembro de 2016 do Primeiro Ministro Matteo Renzi, do Partido Democrático, de centro-esquerda, após a derrota em plebiscito que propunha uma reforma do Senado – redução do número de cadeiras e deslocamento de poder ao Executivo em nome da agilidade na decisão política –. Com a derrota, a renúncia de Renzi deu lugar a uma campanha política radicalizada que, nas eleições de 4 de março de 2018 resultou na ascensão do outrora nanico partido de extrema-direita, Liga, liderado por Matteo Salvini. Como terceira força política do país, a Liga se credenciou para a formação de governo através de coalizão com o Movimento 5 Estrelas – primeiro colocado nas eleições – que governou o país por um ano e pouco, até agosto passado, quando Salvini implodiu a aliança. 

A substituição da aliança entre o M5S (centro-direita) e a Liga (extrema-direita) pela atual aliança entre o M5S e o PD (centro-esquerda) que governa o país, tem sido explorada pelo líder da Liga para denunciar junto ao eleitorado italiano a falta de coerência e de projeto político de cada uma das agremiações.

Após a arriscada e fracassada jogada de Salvini em agosto passado, intentando precipitar novas eleições, o agora ex-Vice Primeiro Ministro, ex-Ministro do Interior e líder personalista da Liga passou a conduzir uma agressiva estratégia para conquistar eleições regionais e assim pavimentar sua volta ao poder federal, desta vez sem depender de alianças.

Para a compreensão do quadro presente é importante lembrar que desde as eleições legislativas de março de 2018, a coalizão de direita liderada por Salvini venceu eleições em sete regiões anteriormente governadas pelo Partido Democrático (PD). Mas foi a recente e robusta vitória da Liga na Umbria, região localizada no centro do país e tradicional reduto da centro-esquerda, que estimulou a ambição de Salvini e tornou a Emilia Romagna seu próximo e principal alvo.

A rica região da Emilia Romagna cuja população é de 4,4 milhões de habitantes e que reúne nove províncias é um importante centro industrial que abriga empresas icônicas do país como as de automóveis e motocicletas Ferrari, Masserati, Lamborghini, Ducati e também o cluster da indústria de cerâmica, referência mundial do setor, entre outras. É também conhecida pela excelência de universidades e centros de pesquisa em diversas áreas, além de desempenhar importante papel na produção artística e cultural do país. Apesar dos indicadores de desenvolvimento econômico e social que fazem da região referência no país e em toda a Europa, os efeitos deletérios das crises econômicas nacionais, européias e mundiais tem produzido crescente descontentamento com a política e, especialmente com o partido que governa a região há várias décadas, o Partido Democrático. 

Salvini já anunciou que vencendo as eleições regionais de 26 de janeiro de 2020 na Emilia Romagna, requererá eleições gerais. A Liga de Salvini vem liderando todas as pesquisas de opinião pública para governo do país.

E foi nesse contexto que quatro jovens da Emilia Romagna, inconformados com a falta de reação das forças “progressistas” da região às ameaças de Salvini, se reuniram e decidiram convocar uma manifestação para o mesmo dia em que o líder da Liga iniciaria, em Bologna, uma série de comícios pela região.

Usando das redes sociais, especialmente do Facebook como meio para a convocação e disseminação de sua mensagem de rejeição à política do ódio e de exclusão utilizada pela extrema direita, com foco na Liga de Salvini, os Sardinhas alcançaram seu primeiro feito, superando as expectativas. A meta era reunir na praça Maggiore seis mil pessoas, número superior às cinco mil esperadas pelo comício de Salvini no estádio PalaDozza. Ao final os Sardinhas reuniram treze mil pessoas, mesmo sob frio e chuva.

O que se seguiu foi uma sequência bem-sucedida de manifestações que reuniram em praças de norte a sul do país, milhares de pessoas contrárias à política de ódio da extrema direita, ao racismo, à xenofobia e ao escancarado flerte com o fascismo. Desde a primeira manifestação, os Sardinhas insistiram na independência em relação aos partidos políticos. Criticaram a agressividade da direita e a falta de iniciativa da esquerda, esta última assistindo atônita ao avanço da extrema direita. 

As manifestações dos Sardinhas passaram a ganhar crescente atenção dos principais noticiários do país e do exterior. Em uma das muitas entrevistas realizadas, especialmente com o jovem Mattia Sartori, principal representante dos Sardinhas, o experiente político italiano Marco Rizzo, do Partido Comunista Italiano questionou o jovem sardinha sobre a ausência de bandeiras do “movimento”. Rizzo avaliou que “não basta ser contra o ódio ou contra Salvini, é necessário ter uma ideia precisa a seguir”. Em resposta, Sartori insistiu na necessidade de independência e na liberdade de crítica aos tradicionais partidos políticos.

Nesse particular vale lembrar que já em 2009 na Itália viu-se o surgimento do Movimento 5 Estrelas, também originário na Emilia Romagna e crítico ao sistema político, aos partidos tradicionais, à União Europeia, à corrupção, e que hoje assiste à deterioração de seu apoio popular frente à incapacidade de apresentar respostas eficientes aos problemas do país e de governar.

Ainda na entrevista com Sartori, Rizzo tocou num ponto crítico da política italiana, de forte embate nas últimas campanhas eleitorais, que é a participação da Itália na União Europeia, bloco do qual o país é um dos membros fundadores. A extrema direita – especialmente a Liga de Salvini – e a maioria da esquerda são críticos da orientação política emanada das principais instituições supranacionais do bloco e, especialmente da política de austeridade econômica defendida pela troika (BCE, FMI e Comissão Europeia). A Liga de Salvini explora em sua propaganda a ideia de perda de soberania do país frente às autoridades de Bruxelas. Já os Sardinhas e os milhares de cidadãos que lotaram as praças entoando o hino icônico da resistência italiana ao fascismo, Bella Ciao, vêem – genericamente – no fortalecimento do bloco europeu o melhor caminho para o país. 

Marco Rizzo no diálogo com Mattia Sartori, lembrou a crise enfrentada pela Grécia e o destino do Syriza, partido de esquerda que representou uma esperança para o país e se viu vencido no enfrentamento da crise econômica desencadeada a partir do transbordamento do crash norte-americano de 2008. Rizzo asseverou que o risco é repetir o que se viu na Grécia “‘Bella Ciao’ sendo cantada nas praças e os governos aceitando os piores ditames da UE contra os trabalhadores”.

Ainda na mesma direção Rizzo alertou “Com os sardinhas bradando bandeiras da União Européia, Salvini não vai a 50% vai aos 80%, preste atenção”.

Semelhantes avaliações têm sido feitas por vários intelectuais italianos e, nos últimos anos, muitos trabalhos acadêmicos foram realizados por jovens pesquisadores na Itália e em outros países europeus, sobre a ascensão da extrema direita na Europa, antieuropeísta e soberanista. Também no tocante à política de ódio insuflada pela extrema direita diante de “notícias” de uma “invasão de imigrantes”, importantes pesquisas denunciaram o ardil na deliberada distorção de números.  

Na manifestação em Roma, no último sábado, os Sardinhas leram e ecoaram artigos da Constituição italiana como o 3, que diz “Todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, idioma, religião, opiniões políticas, condições pessoais e sociais”.

Essa defesa é louvável mas no tocante aos imigrantes e refugiados não resolve a falta de  políticas públicas que tornem digna a vida de milhares de estrangeiros que vivem na Itália. Para enfrentar as verdadeiras raízes do problema é imperioso que a política externa de importantes nações europeias para suas ex-colônias sejam modificadas para que contribuam efetivamente com a redução dos danos causados pelo colonialismo que se estendem até os dias de hoje e que explica  os numerosos deslocamentos humanos destas nações empobrecidas. 

Uma das últimas declarações dos Sardinhas postada em sua página do Facebook foi: “nos últimos 30 dias, os Sardinhas liberaram uma energia extraordinária; será preciso muita paciência para também dar uma identidade política a esse fenômeno. […] Entendemos a urgência de ter respostas, mas reiteramos que elas só podem amadurecer com o tempo e com a construção de um caminho compartilhado que continuará se fortalecendo” […].

Importante destacar que desde o início os Sardinhas afirmaram a confiança na política e o reconhecimento do papel dos partidos políticos, diferentemente dos movimentos antissistema e antipolítica que prosperaram na Europa nos últimos anos, estimulando o avanço dos autoritarismos e extremismos de direita.

Em tempos de exacerbação do ambiente virtual, um dos feitos dos Sardinhas foi resgatar o sentido da praça pública como espaço privilegiado para a manifestação política (é verdade que isso vem ocorrendo também em muitos outros países, com as praças e ruas reunindo milhares de manifestantes, mas em cujos contextos tem predominado a violência repressiva dos aparatos de segurança do Estado). Quanto às redes sociais digitais, os Sardinhas as utilizaram para a convocação dos cidadãos, mas afirmaram repetidas vezes suas críticas ao uso que os partidos e líderes políticos tem feito dessas mesmas redes para através da disseminação de fake news e ataques a reputações capturar o voto de cidadãos desiludidos com os desacertos da política.

Em contexto tão crítico para a democracia no mundo, é difícil recusar aplausos a iniciativa de convocação da cidadania para a praça, feita por jovens de cujo país tão importantes pensadores nos legaram obras extraordinárias sobre a política, mas de onde também as páginas da história do século 20 não nos permitem esquecer o horror do fascismo que alí encontrou nascedouro e prosperou, e de como suas insidiosas ideias continuam a nos espreitar.

Que as belas imagens das praças italianas totalmente ocupadas por cidadãos a partir da convocação dos Sardinhas nesses últimos dias de um ano tão sombrio sirvam de estímulo para a renovação de ideias e responsabilidades das forças políticas verdadeiramente comprometidas com a democracia, para o enfrentamento dos reais problemas que afetam a vida dos cidadãos, especialmente dos jovens que estão dando mostras de que não desejam ver a  materialização das distopias retratadas nas várias séries de televisão que povoam esse ainda jovem mas angustiante século de extremos.

Arnaldo Cardoso, cientista político.

Redação

1 Comentário

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  1. Debitem a conta na “Operazione Mani Pulite” .
    Caso a Itália saia da UE (da organização obesa que se apropriou do nome) , e o meio caminho para se tornar pusilanimamente medíocre.

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