Paixão do ódio e da ignorância, por Stella Jimenez

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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O que leva um ser humano a se fanatizar com um monstro? Parte 2

Paixão do ódio e da ignorância

por Stella Jimenez

Lacan enumera três paixões do ser: amor, ódio e ignorância.

Para facilitar a compreensão, substituirei a palavra “ser” pela palavra “narcisismo”

Retomo, então, as três paixões do narcisismo: amor, ódio e ignorância, são as forças básicas que movem os seres humanos. Sobre o amor fanático e cego que se dedica ao caudilho, falarei em outro texto. Só direi que amor é a tendência a incorporar o objeto amado e a se sentir confundido com ele, para enriquecer o narcisismo, por enquanto o ódio implica cuspir aquilo de que não se gosta e o querer destruir. O ódio é a expressão direta da pulsão de morte transformada em desejo de matar, e se dirige ao objeto externo, cuspido, vivenciado como estranho. A mera presença desse objeto socava o narcisismo, e se deseja suprimi-lo para para que o narcisismo fique mais forte, mais poderoso.     

Em textos anteriores analisei algumas das fontes indiretas do ódio². Mas há muitos outros sentimentos, além dos já trabalhados, que facilmente podem ser transformados em ódio: a frustração, a rivalidade, a enveja. Alain Badiu³. analisando a eleição de Trump, e de outros líderes fascistas ou filofascistas, conclui que são quatro as causas desta eleição:

– o sistema capitalista atual, neoliberal, financeiro, que concentra cada vez mais a riqueza. Sistema que ocasiona pobreza e desemprego maciço por fechamento de fábricas e por automatização.

– a frustração que isto ocasiona nos sujeitos.

– a perda de confiança nos partidos políticos tradicionais, que não conseguiram resolver estes problemas.

– a falta de opção de outros sistemas econômicos, já que as tentativas comunistas fracassaram.

No Brasil, houve, sem dúvida, uma decepção com o partido que governou o país entre 2002 e 2016. Teria sido possível se fazer mais? Se teria manifestado esse descontentamento se um outro tipo de líder tivesse tomado a palavra? Poderia se ter capitalizado esse desencanto de uma outra forma? Ë um tema que deixo para sociólogos e historiadores. O que me interessa é localizar como este caudilho conseguiu se fazer porta-voz de diversas frustrações. Em primeiro lugar, porta-voz dos generais reformados que se ressentiram da abertura que as mobilizações populares impuseram à ditadura começada em 64.

Não é casual que declare que é necessário retroceder 40 anos, a 1978, ano que foi marco importante desta distensão. Porta voz das insatisfações da bancada da bala, furiosa com a lei de desarmamento. Porta voz da inveja de alguns grupos evangélicos que se ressentem do gozo dos outros. Porta voz do pior do agronegócio, frustrado por não poder expandir sua terra por causa das demarcações indígenas, e furioso pelas restrições ambientais. Juntou todas estas frustrações, as focalizou num inimigo único ao que acusa de ter “destruído o país pela roubalheira”, e temos alguns dos piores sentimentos humanos condensados e instrumentalizados por um líder monstro. Uma série de mágoas confusas e inconvenientes que estavam soterradas em porões e no fundo das pessoas, encontraram expressão e legitimidade para sair à luz. Ressentimentos confusos e envergonhados se transformaram em raiva, da raiva passaram à indignação e ficaram prontos para serem precipitados em violência.

Aos medrosos, este caudilho promete liberar as armas. Ninguém quer ter uma arma para se defender, se alguém quer ter uma arma é para poder matar. A sensação de poder matar produz uma embriaguez narcísica e uma recuperação imediata de gozo.  

 

A paixão da ignorância.

À primeira vista, é difícil aceitar a existência desta paixão, e que seja tão forte como as duas outras.

Voltemos à situação original: o narcisismo quer exterminar o objeto estranho, para se sentir mais forte. Aceitar que o extermínio é impossível implica, desde já, uma perda. Se é impossível destrui-lo, ao menos é possível dominá-lo, e uma forma simbólica de domá-lo é pelo conhecimento, o que não deixa de ser uma forma de conjuração. Assim nasce o amor ao saber, tão importante para a espécie humana: a pulsão de morte se transforma em desejo de domínio e permite que uma parte do ódio se transmute em amor e que se queira incorporar o conhecimento. Assim como esta via, existem outras. A criatividade, a solidariedade, o sentimento de justiça, a institucionalização e a cultura são outras vicissitudes da pulsão de morte, agora domesticada. Isso não quer dizer que todo o ódio tenha sido transmutado, e que a pulsão de morte não possa se manifestar na sua forma mais pura também nos indivíduos aparentemente mais sofisticados.  

Mas o narcisismo pode escolher outro caminho; uma outra forma radical de eliminar o objeto é o ignorando. O sujeito pode não querer nada saber do objeto, o que implica não querer nada saber.

Sempre os regimes fascistas infringem um ataque ao saber. Pensem nas queimas de livros na Alemanha nazista, ou na frase completa que o fundador das falanges franquistas, Millan Astray, pronunciou na Universidade: “Morra a inteligência, viva a morte”. Esses ataques “ao saber” produzem reações entusiastas nas pessoas. É suficiente ver nos filmes a alegria com que a multidão joga os livros na fogueira. Seria possível pensar que estes ataques acontecem porque o caudilho quer deixar a população na ignorância, para poder governar com mais rigor. Também é certo, mas eu acho que só num segundo tempo: o fundamental é que este tipo de líderes capitaliza no seu favor a paixão da ignorância (sem sabê-lo, porque ele também é ignorante). Se não fosse assentada na paixão pela ignorância, a idade média teria durado muito menos.

Lembro de um filme espanhol, muito belo e muito triste: A língua das borboletas. Baseado num relato autobiográfico, narra a relação que se estabelece entre uma criança problemática e um professor entusiasta e dedicado. A última cena é dilacerante, porque retrata a reação do professor e do aluno quando as brigadas franquistas e a guarda civil levam o docente ao fuzilamento, só por não ser tradicional e por ser laico. Se vocês pensam que se trata somente de uma despedida cheia de dor, estão muito enganados. Vale a pena ver o filme.

A paixão da ignorância provoca vários afetos secundários: ressentimento pelos intelectuais e pela intelectualidade, vergonha de admitir a falta de conhecimentos e de interesse, etc.

Imaginem um caudilho monstro, como o que estamos acompanhando à revelia, que não só faz questão de se mostrar simples e desinformado, mas também demoniza o conhecimento? Ë a oportunidade para se identificar e também para dar vazão à paixão da ignorância. Por isso a maior parte das pessoas parece tão fechada a todo tipo de raciocínio, e porque se entusiasmam tanto escutando frases contraditórias e rudimentares, sempre ditas em tom provocativo.

Quando as pessoas são legitimadas na paixão pela ignorância, é inútil tentar argumentar, dar dados, mostrar conhecimento. Tudo isto vai ser visto com a maior desconfiança. Na idade média, aquele que tentasse intervir desta maneira seria considerado enviado do diabo. Hoje se usa um epiteto anacrônico: comunista. O saber passou a ser considerado comunista. “A cultura é comunista”, assegura um vídeo compartilhado por muita gente.

Assistimos, espantados, a uma obtusa cruzada pela “escola sem partido”. O que se propõe é uma escola com um único partido, o do caudilho monstro. Sem liberdade de cátedra, sem estímulo ao pensamento. Sem lugar para o questionamento salutar sobre os grandes interrogantes da humanidade: a origem, que se trabalha com a história, o sexo, o gênero. Sem lugar para aceder às grandes criações humanas nem à diversidade do pensamento que, naturalmente, cada professor introduz (só um grande culto à ignorância permite afirmar que todos os professores são marxistas). O que se deseja sob o nome de escola sem partido é Escola Sem saber.   

¹ Não são a mesma coisa, mas a substituição se justifica porque a única consistência ilusória que o ser falante pode almejar é a do ego narcísico

² Os temas já trabalhados foram: pulsão de morte, medo, sentimentos identitários, sensação de que alguém está ficando com o gozo que falta.
 
³ Alain Badiu, Universidad de California, Los Ángeles , 9-11-2016: Ocurrió durante el horror de una profunda noche.
 
Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. No sentimento de orfandade

    No sentimento de orfandade que se tornou comum nos tempos actuaes, sinto falta de artigos de psicólogos, psicanalistas e sei lá quem, que nos ensinem a lidar com os parentes e relacionamentos dominados pela lavagem cerebral ‘geleca’, de baixo nível.

    Sempre fui frio sobre isso – há mais de 10 anos cortei relações com 2 irmãos “evangélicos”, acabaram, que se explodam. Agora na doença bostossáurica cortei relações com o derradeiro irmão – que se exploda.

    Acho que isso tem a ver com uma “incapacidade” que sempre tive de sentir qualquer vestígio de “espírito de corpo”, corporativo, essas coisas.

    Assim, sinto falta de artigos e ‘dicas’ de como lidar com isso. Tenho 70 anos, longe de famílias desde sempre, sem problemas em lidar com isso modernamente – TNC (que vão todos Tomar No Cú).

    Mas tenho minha queridíssima e vital companheira que é bem diferente – ainda que com as mesmas minhas perspectivas,sofre muito em afastar-se de parentes que últimamente tornaram-se “zumbis-gelécas-xexelentos”.

    Por outro lado eu sou incapaz de lidar com tias velhinhas esquecendo que são cúmplices do fato de que milhões de gentes que nunca mais verão um médico na vida.

    Então – uma convocatória a essa gente que tirou a vida para estudar e escrever e pretensamente pensar – há alguma opção para entendimentos mínimos, ou só TNC mesmo ?

  2. As paixões

    Por virtude ou por desgraça todos nós somos nesta vida habitados, instigados ou vítimas de paixões.

    Cumpre-nos, para sobreviver, experimentando-as, compreende-las, aprecia-las, sofrer com elas ou sermos suas vítimas fatais.

    Molas propulsoras da vida, considera-se doente aquele que não nutre alguma paixão.

    Mas, existe aquele ser, velho e velhaco, de muitas vidas, que não só controla as próprias paixões, como também conhece e manipula as paixões alheias.

    Esse quer o poder e, controlando as paixões próprias, tem o gatilho para despertar, ainda que latentes, as paixões do ódio e da ignorâncianos nos demais.

    Não atribuamos, portanto,  responsabilidade plena aos incautos, cujas paixões de ódio e ignorância foram estimuladas ao máximo.

    Que cada um dos atingidos consiga despertar dessa hipnose e recupere o próprio controle, ainda que pela dor, embora saibamos que há muitos que se acostumam e até são estimulados a gostar de  sentir dor, numa constatação de que nunca estaremos totalmente livres.

     

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