Pandemia, contradições e inovações no federalismo brasileiro, por Sonia Fleury

A análise empreendida encaminha-se para o atual cenário da Covid-19, ou de “Pandemia e pandemônio federativo”, que, de acordo com Sonia, pôs o Brasil diante do espelho.

do CEE Fiocruz

Pandemia, contradições e inovações no federalismo brasileiro, por Sonia Fleury

Este artigo apresenta análises relativas à pesquisa em andamento Futuros do Federalismo no Brasil, conduzida pelo CEE-Fiocruz. O texto de Sonia Fleury discute o federalismo como processo de pactuação entre União, estados e municípios, abordando as assimetrias que resultam tanto de uma tradição centralizadora, quanto da ocorrência de profundas desigualdades regionais no país. Analisa, ainda, a relação do federalismo brasileiro com o Sistema Único de Saúde, lembrando que a Constituição de 1988 “associou, indelevelmente, nosso federalismo à democracia social, expandindo as competências e recursos dos entes federados subnacionais”, como destaca a autora. Ao mesmo tempo, aponta a ausência histórica de um comprometimento da União com o SUS, com redução de sua participação no financiamento do sistema e aumento da participação dos estados e municípios. Por fim, a análise empreendida encaminha-se para o atual cenário da Covid-19, ou de “Pandemia e pandemônio federativo”, que, de acordo com Sonia, pôs o Brasil diante do espelho.

por Sonia Fleury

Federalismo como processo de pactuação

O princípio orientador do federalismo é a unidade na diversidade. Pressupõe uma situação de heterogeneidades que segmentam uma nação, mas também a construção de uma estrutura de poder com vistas à preservação da unidade nacional, necessária para evitar sua fragmentação e garantir a estabilidade social. Trata-se de uma forma de lidar com a organização político-territorial do poder baseada na necessidade de acomodar a competição e o conflito, autonomia e união. O princípio da soberania compartilhada deve comportar uma divisão de poderes entre os parceiros em condições de reconhecimento mútuo, e se materializar em estruturas onde convivem cooperação e competição, resultando em processos de pactuação, já que o próprio termo federal é derivado do latim foedus, que significa pacto.

O processo de descentralização, na medida em que amplia a autonomia – política, administrativa, tributária e financeira – e as competências na provisão dos serviços públicos, tensiona o arranjo federativo previamente existente, em especial quando não há correspondência entre poderes, atribuições e recursos. Entre os fatores que dificultam a construção de unidade por meio de pactos federativos encontram-se a existência de assimetrias decorrentes tanto da tradição e trajetória institucional centralizadora, quanto da ocorrência de profundas desigualdades regionais entre as capacidades dos níveis governamentais. A indefinição legal em relação às competências compartilhadas e a elevada concentração de recursos no nível nacional também são fatores que levam a impasses na construção de um federalismo estável.

Os arranjos federativos são também postos à prova em situações de crise econômica prolongada, nas quais a disputa por repartição de recursos, projetos de desenvolvimento e estratégias político-ideológicas se acirram.

 Entre os fatores que dificultam a construção de unidade por meio de pactos federativos encontram-se a existência de assimetrias decorrentes tanto da tradição e trajetória institucional centralizadora, quanto da ocorrência de profundas desigualdades regionais entre as capacidades dos níveis governamentais

O desenho federativo pode ser estabelecido como um federalismo assimétrico, quando se traduz em estruturas legais e administrativas com diferentes graus de autonomia para entes em condição de elevada desigualdade. Neste caso, a pressuposição de um processo de pactuação não implica em igualação dos entes e distribuição horizontal do poder sobre o território.

Por outro lado, um desenho de federalismo simétrico existe quando todos os entes no mesmo nível horizontal são dotados das mesmas competências, autonomias e responsabilidades, mesmo sendo reconhecidamente diferenciados em relação às suas capacidades e recursos. Ou seja, todos os entes possuem poder de veto, embora não possuam o poder de implementar de forma autônoma as políticas e programas pactuados, dependendo para tanto de recursos nacionais. Nesse caso, o desafio é construir fundos de apoio e mecanismos de capacitação, além de planos de desenvolvimento regionais para superar e/ou minimizar as assimetrias.

Compreendemos o sistema federativo como um processo, em permanente construção, esta, limitada pela cultura e trajetória institucional centralizadoras, por estruturas de governança autoritárias, e por lideranças que favorecem o conflito ao invés da busca de consenso, fomentando uma cultura de intransigência e intolerância.

O federalismo, portanto, diz respeito a um arranjo particular das relações governamentais nos marcos das definições das competências constitucionais dos entes federados. A criação e aprimoramento dos diferentes mecanismos de distribuição dos recursos, negociação, cooperação, coordenação e gestão de redes de políticas são os principais elementos facilitadores da efetividade das políticas públicas compartilhadas.

Nesse sentido, o federalismo pressupõe o funcionamento institucional democrático, muito embora a experiência brasileira tenha presenciado períodos de centralização e ditaduras, nos quais foi mantida a forma federativa nos textos legais. Nada mais simbólico dessa ambivalência e do predomínio do poder unificado do que a cerimônia de cremação das 21 bandeiras estaduais em uma pira, ordenada por Vargas após a implantação do Estado Novo, tendo ao fundo o Hino Nacional tocado sob a regência de Villa-Lobos! Nem democracia, nem autonomia, mas, ainda assim, federação, o que se repetiu também durante a ditadura militar. Um federalismo unitário e autoritário.

Compreendemos o sistema federativo como um processo, em permanente construção, esta, limitada pela cultura e trajetória institucional centralizadoras, por estruturas de governança autoritárias, e por lideranças que favorecem o conflito ao invés da busca de consenso, fomentando uma cultura de intransigência e intolerância

Federalismo Brasileiro e o SUS

A Constituição Federal de 1988 reafirmou o federalismo como cláusula pétrea, introduzindo um modelo singular, no qual os municípios também são considerados entes federados com autonomia e responsabilidades próprias. No seu artigo 23, trata das competências concorrentes, envolvendo todos os entes federados, rezando, entre outras atribuições compartilhadas:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I – zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público; II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; (…) X – combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos; (…).

Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. (Parágrafo único com redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006).

Portanto, defesa da democracia, saúde e proteção social, combate à pobreza e marginalização, entre outras atribuições, são competências de todos os entes federados, sendo que normas complementares deveriam fixar como e com que instâncias e instrumentos se daria essa cooperação. Infelizmente, assim como muitas outras disposições que deveriam ser normatizadas posteriormente à promulgação da CF/88, essa também não o foi. Seguramente, por falta de interesse político dos envolvidos, e/ou impossibilidade de se chegar a um consenso.

Mesmo assim, o texto constitucional associou, indelevelmente, nosso federalismo à democracia social, expandindo as competências e recursos dos entes federados subnacionais, tanto em relação à sua autonomia quanto aos compromissos de prestação de serviços por meio de sistemas de políticas públicas que assegurem a materialização e exegibilidade dos direitos da cidadania.

O capítulo mais inovador da CF/88 trata da Ordem Social, desvinculando, pela primeira vez, direitos sociais da condição de trabalho, para situá-los como parte da condição universal da cidadania. Na Ordem Social se incluem os direitos relativos à Seguridade Social – Saúde, Assistência e Previdência – e aqueles direitos relativos à Educação, Cultura, Desporto, Ciência, Tecnologia e Inovação, Comunicação Social, Meio Ambiente, Família, Criança, Adolescente, Jovem e Idoso, e Índios. Ou seja, um amplo espectro envolvendo todos os direitos abrangidos na proteção social universal e na atenção diferenciada a grupos específicos, além dos direitos relativos à sustentabilidade ambiental e preservação do patrimônio cultural, incluindo também aqueles que dizem respeito à democratização da comunicação e promoção da soberania por meio do desenvolvimento da ciência e tecnologia.

Defesa da democracia, saúde e proteção social, combate à pobreza e marginalização, entre outras atribuições, são competências de todos os entes federados (…) O texto constitucional associou, indelevelmente, nosso federalismo à democracia social, expandindo as competências e recursos dos entes federados subnacionais, tanto em relação à sua autonomia quanto aos compromissos de prestação de serviços por meio de sistemas de políticas públicas que assegurem a materialização e exegibilidade dos direitos da cidadania

Em texto extremamente avançado em termos dos direitos sociais, culturais e ambientais, a CF/88 atribuiu grande parte dessas competências como concorrentes, envolvendo todos os entes federativos em seu planejamento e execução de políticas públicas (excluindo a Previdência Social). Dessa forma, o avanço na proteção social foi constitucionalmente associado ao fortalecimento do federalismo brasileiro.

Além da universalidade do direito à saúde, também foram constitucionalizados princípios fundantes do SUS, a saber, a integralidade do cuidado e a construção de um sistema único, descentralizado e hierarquizado, com participação social em todos os seus níveis (artigos 196 e 198). A relação com o setor privado foi uma questão altamente conflituosa, terminando por estabelecer sua participação de forma subsidiária embora todas as ações e serviços de saúde sejam considerados de relevância pública (art. 197). A legislação ordinária e as normas legais que se seguiram buscaram operacionalizar e dar concretude a esses princípios constitucionais.

Portanto, o arranjo federativo brasileiro na saúde foi definido com público, cooperativo, democrático, descentralizado e participativo, e, ainda que deixando margem para a existência do setor privado de forma complementar ou suplementar ao SUS, ressalva sua relevância pública.

Na transição democrática foram geradas inovações institucionais que favoreceram o deslocamento do poder do nível Central para o Local e do Estado para a Sociedade. É no vértice do cruzamento entre o Local e Societário que se encontra a originalidade do federalismo democrático brasileiro. É reconhecido que o movimento sanitário chegou à Assembleia Nacional Constituinte com organicidade em torno do projeto da criação do SUS. Tal capacidade assegurou recursos institucionais na área de Saúde que se foram traduzindo em um progressivo aprofundamento do arranjo federativo. Na ausência da regulamentação infraconstitucional das competências concorrentes e das necessárias instâncias de pactuação e geração de consensos, bem como da ausência de representação dos municípios frente ao governo estadual (como é o caso do Senado para com a União), foram criadas as Comissões Bipartites e Tripartites para a representação dos entes federativos, com a institucionalização de um canal permanente de negociação e busca de uma normatização consensuada. A participação social se dá tanto nas Conferências de Saúde, onde se aciona um mecanismo de formação da vontade política, quanto nos Conselhos de Saúde, instrumentos de controle social e cogestão nos três níveis de governo. A organização dos Secretários Estaduais de Saúde no Conass e dos Secretários Municipais de Saúde no Conasems representou importante avanço na direção de uma governança compartilhada. Mais recentemente, a ênfase na regionalização buscou resgatar a importância da coordenação estadual, enquanto instrumentos gerenciais de regulação de emergências, leitos e filas de transplantes avançaram na transparência e eficiência, e o crescimento da atenção primária à saúde expandiu significativamente a inclusão e a cobertura, além de aumentar a eficácia e eficiência das ações e programas.

Portanto, o arranjo federativo brasileiro na saúde foi definido como público, cooperativo, democrático, descentralizado e participativo, e, ainda que deixando margem para a existência do setor privado de forma complementar ou suplementar ao SUS, ressalva sua relevância pública

Essa arquitetura institucional conformou o arranjo federativo das relações intergovernamentais, que opera em um contexto de negociações com o Legislativo, composto por um sistema partidário altamente fragmentado e com a crescente participação do Judiciário na garantia de direitos individuais, enquanto o STF passa a exercer, cada vez mais, um papel moderador de conflitos na ausência de definições infraconstitucionais dando interpretação às normas e garantias institucionais. À enorme capilaridade do SUS, presente com uma rede de atenção em todo o território nacional, somam-se as funções de normatização, modelagem do sistema, financiamento, vigilância epidemiológica e sanitária, e regulação. Paralelamente, interage com os sistemas de formação de recursos humanos e desenvolvimento científico e tecnológico e produção industrial de insumos e equipamentos. Fica, pois, patente a complexidade e magnitude desse sistema que deu cara e dinâmica ao federalismo cooperativo no Brasil nos últimos trinta anos.

 É no vértice do cruzamento entre o Local e Societário que se encontra a originalidade do federalismo democrático brasileiro.

Concomitantemente, atores do mercado da saúde marcaram presença constante na defesa dos seus interesses e lucratividade, seja através do lobby, do financiamento das campanhas políticas e mesmo se elegendo como parlamentares. Uma dinâmica empresarial altamente concentradora se estabeleceu e fortaleceu-se ao longo desses anos, mobilizando a mídia contra o SUS ao mesmo tempo em que buscava subsídios, desonerações e uso dos serviços do setor público e contratado, recusando-se a ressarcir o SUS por serviços prestados a seus beneficiários e sempre defendendo medidas de desregulamentação dos planos e seguros.

A efetividade da rede interfederativa do SUS enfrentou-se com a desigualdade estrutural e inter e intra-regional prevalecentes no país, com a existência de entes federativos com baixa capacidade técnica e com uma rede de serviços precária, levando a que a descentralização acentuasse a fragmentação e desigualdades, sem que estratégias nacionais efetivas compensassem as deficiências preexistentes.  Assim sendo, muitos municípios e estados seguem altamente dependentes dos recursos repassados pela União, o que, por si só, é altamente limitante da sua autonomia.

Nos anos recentes, de aprofundamento da crise do sistema político brasileiro e da crise econômica, é voz corrente a afirmação de que tal se deve ao esgotamento do pacto social construído na transição democrática e concretizado por meio das negociações na Assembleia Nacional Constituinte. No entanto, ao invés de um pacto o que houve foi um enfrentamento de posições conflitantes, com conquistas parciais como o capítulo da Ordem Social. Parcial porque, a mesma carta constitucional preservou uma estrutura tributária altamente regressiva, totalmente incompatível com os princípios universalistas e distributivistas que orientaram a construção dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais.

No caso da saúde nunca foram cumpridas as disposições transitórias que atribuíam 30% do Orçamento da Seguridade Social (OSS) para essa área, o próprio OSS foi solapado como projeto de planejamento integrado sendo progressivamente subtraídas parcelas significativas dos seus recursos com a eternização da DRU [Desvinculação das Receitas da União], pagamento de inativos e utilização de recursos da CPMF para produção de superávit, em um claro movimento de centralização. A recentralização de recursos financeiros foi também acompanhada pela perda de autonomia dos entes subnacionais com as limitações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A perda de recursos da saúde se acentuou com a não promulgação da CPMF, enquanto estados passaram a ter sua autonomia financeira limitada pela Lei Kandir.

As políticas de austeridade utilizadas, nos últimos anos, como método de enfrentamento da crise econômica terminaram sendo entronizadas pela EC 95, estabelecendo um teto, pelo período de 20 anos, para os gastos sociais.

A resultante de todos esses anos de ausência de um comprometimento efetivo da União com o SUS se refletiu na redução da sua participação relativa no seu financiamento, enquanto aumentava a dos estados e municípios, esses últimos estrangulados pelo aumento das demandas e pelos custos das decisões judiciais. Propostas de privatização do sistema de saúde como vouchers, planos populares e radical descomprometimento da União com o sistema, repassando os recursos diretamente aos estados e municípios com sua efetiva desresponsabilização, foram colocadas pelo governo atual, a título de um novo pacto federativo, ao mesmo tempo em que os direitos dos trabalhadores foram drasticamente reduzidos e os benefícios previdenciários ficaram mais difíceis de serem alcançados pelos grupos mais vulneráveis. A política econômica retrógrada neoliberal mostrou-se um fracasso, aumentando a desindustrialização e jogando milhares de trabalhadores no desemprego e informalidade, já que as reformas trabalhista e previdenciária, apesar de vendidas como salvadoras da economia, apenas acentuaram a pobreza, afetando seriamente a economia de estados e municípios.

Nesse ponto de sua trajetória se dá o encontro do SUS e do federalismo brasileiro com a pandemia do Covid-19.

A resultante de todos esses anos de ausência de um comprometimento efetivo da União com o SUS se refletiu na redução da sua participação relativa no seu financiamento, enquanto aumentava a dos estados e municípios, esses últimos estrangulados pelo aumento das demandas e pelos custos das decisões judiciais

Pandemia e pandemônio federativo

A pandemia colocou o Brasil diante do espelho:

1 – Ficou patente o total desgoverno e irresponsabilidade do presidente da República descredenciando as autoridades sanitárias, participando de manifestações antidemocráticas, tentando vender a ideia de um remédio milagroso, negando a gravidade da pandemia, criticando a OMS, atribuindo aos governadores a culpa pela fome e desemprego, enfrentando a Câmara e o STF, enfim, negociando cargos e prebendas com partidos do Centrão, como forma de prevenir-se de um impeachment e/ou de acusações de crimes praticados pela sua família.

2 – O ministro da Saúde Mandetta e a mídia descobriram a existência do SUS, sua capilaridade, dedicação dos profissionais e enorme carência de equipes e equipamentos. Mesmo assim, reconheceram o sistema como um dos únicos recursos existentes para enfrentamento da pandemia, aliado ao isolamento. O fortalecimento do Ministério da Saúde e do ministro, simbolicamente vestindo o colete do SUS, como autoridade máxima durante a pandemia, foi abortado pelo governo tanto por não ter instituído uma comissão ministerial sob seu comando quanto pela sabotagem constante do presidente em relação à recomendação de isolamento.

3 – Outra descoberta foi relativa à ciência brasileira, em um momento em que o governo cortara verbas, atacava as universidades e centros de pesquisa e difundia ignorâncias como o terraplanismocomunavirus etc. Cientistas passaram a ser figuras diárias nos telejornais, explicando o desenvolvimento da pandemia e os cuidados necessários para evitar sua disseminação massiva antes que se equipasse o SUS para receber os pacientes.

4 – Apesar dos reconhecimentos, isso não se traduziu em medidas efetivas de injeção de recursos no sistema de saúde, na reconversão de indústrias para produção de equipamentos, na importação de equipamentos e insumos, no apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico para redução da dependência e fortalecimento do complexo industrial da saúde.

5 – Desde antes da pandemia, os governadores já se organizaram em consórcios regionais, destacando o Consórcio Nordeste, reunindo os governadores que por serem de partidos de oposição, amargavam a perseguição do governo central, como ficou evidente no corte de beneficiários do Bolsa Família, exatamente na região com maior incidência da pobreza. A experiência de compra conjunta de medicamentos em 2019 mostrou-se altamente compensadora e fortaleceu esse arranjo federativo. Durante a pandemia, a criação de um Comitê Científico para assessorar as decisões das autoridades mostra seu potencial inovador. Foi também criada a Brigada Emergencial da Saúde, importados respiradores e liberada a contratação de médicos estrangeiros.

6 – Outros governadores e prefeitos, mesmo de partidos mais conservadores, adotaram posição favorável ao isolamento e respaldaram suas decisões em orientações técnicas e científicas, passando a ser considerados inimigos do governo central.

7 – Os recursos destinados a socorrer os sistemas de saúde e os estados e municípios tardaram a ser aprovados e mesmo aqueles recursos provenientes de emendas parlamentares destinadas ao Ministério da Saúde (MP 941), mais de R$ 2 bilhões, ainda não chegaram ao destino, porque não foram liberados. Na aprovação do orçamento de guerra, a área econômica continuou a embutir suas propostas restritivas e privatistas, dificultando o andamento do processo. Já a permissão para que o Banco Central compre papéis podres dos grandes bancos e investidores foi aprovada (PEC 10/2020) na Câmara, sem limite algum, algo estimado pelo presidente do Banco Central em torno de R$ 972,9 bilhões, o que aumentará a dívida pública e será pago pelos contribuintes.

Desde antes da pandemia, os governadores já se organizaram em consórcios regionais, destacando o Consórcio Nordeste, reunindo os governadores que por serem de partidos de oposição, amargavam a perseguição do governo central. A experiência de compra conjunta de medicamentos em 2019 mostrou-se altamente compensadora e fortaleceu esse arranjo federativo

8 – A tentativa do governo central de impedir que os governos subnacionais decretassem o isolamento social foi vetada pelo STF, que terminou por respaldar a interpretação constitucional sobre a autonomia dos entes federados, sem subordinação ao governo central. Já a falsa contradição, criada pelo presidente e apoiada por empresários, entre cuidar da saúde com a manutenção do isolamento ou reativar a economia para salvar os pobres do desemprego, foi mais uma manobra para jogar nas costas dos governadores uma crise econômica que inevitavelmente se aprofundou com a pandemia.

9 – As tensões federativas não se deram apenas de forma vertical. Governos municipais se recusaram a receber pacientes de outro município (caso de Campinas e São Paulo), enquanto nem mesmo se conseguiu um comando único da rede hospitalar pública, envolvendo os três níveis de governo, no Rio de Janeiro onde sobram leitos nos hospitais federais e faltam equipes. Porém, cooperação entre tradicionais adversários políticos, como o governador da Bahia e o prefeito de Salvador também ocorreram.

10 – A falta de equipamentos de proteção individual e de recursos humanos qualificados tem exposto os profissionais de saúde a uma situação de contaminação inevitável, com os profissionais de enfermagem apresentando um índice de mortes maior que aquele observado em países europeus com alta incidência do coronavírus.

Outros governadores e prefeitos, mesmo de partidos mais conservadores, adotaram posição favorável ao isolamento e respaldaram suas decisões em orientações técnicas e científicas

11 – Em meio à pandemia ocorreu a demissão do ministro da Saúde e sua substituição por um gestor privado, sem qualquer experiência na rede pública, que expressa sua total compatibilidade com o pensamento do presidente e sua preocupação com a ocupação da rede privada. Dedicou-se a obter dados sobre a incidência da pandemia – mesmo sem testes disponíveis –, atestando que sua orientação era a busca de evidências para traçar uma saída do isolamento. Sobre o que fazer até lá, nem uma orientação certeira, sem ambiguidades.

12 – A militarização do Ministério da Saúde, que já tem 13 direções ocupadas por militares, além da negociação das áreas sempre cobiçadas pelos partidos do Centrão, mostram claramente que há um projeto político de destruição do SUS, de sua burocracia sanitária técnica e da resistência política que representa a um projeto elitista e privatista, já que se apoia no pilar do direito universal à saúde.

13 – A arquitetura federativa do SUS não tem sido utilizada, a CIT – Comissão Intergestores Tripartite não se reuniu desde o início de fevereiro, e os representantes dos secretários estaduais de Saúde – Conass – e dos secretários municipais de Saúde – Conasems – não têm participado efetivamente do processo decisório, abrindo-se mão do poderoso mecanismo de governança compartilhada que sustentou o SUS até agora.

14 – Finalmente, o que me pareceu mais revelador da sociedade brasileira diante do seu espelho pandemia foi a descoberta dos invisíveis! INVISÍVEIS: mesmo com nossas cidades cercadas por favelas, com condições desumanas de habitação e saneamento, um transporte público torturante, ruas cada vez mais cheias de sem teto, crianças vendendo tudo e qualquer coisa nos sinais, milhões de desempregados nas estatísticas oficiais, que estão vendendo quentinha em cada esquina para os que tentam sobreviver trabalhando no Uber ou no IFood.

15 – Durante o início da pandemia a mídia e as autoridades sanitárias recomendaram medidas preventivas como isolamento, lavar as mãos, usar álcool gel, fazer home office. Para qual país estavam se dirigindo? Não houve qualquer recomendação ou medida concreta das autoridades para criar condições de enfrentamento da pandemia em situações de favelas e periferias densamente populosas e sem os serviços básicos. Mesmo os profissionais que cuidam dessa população na atenção primária e nos centros de referência de serviços assistenciais não foram treinados, equipados e envolvidos em estratégias de ação conjunta com lideranças das favelas para lidar com situações que requerem isolamento, remoção de doentes etc. Nem mesmo a internet foi facultada para que os profissionais não se expusessem e os moradores pudessem manter-se em isolamento!

16 – O NÓS POR NÓS se transformou na maior bandeira da população das favelas e periferias, mostrando a potência da organização coletiva e solidária.  Mobilização de apoios e solidariedade, distribuição de recursos arrecadados, difusão de informações sobre a pandemia e medidas de prevenção, criação de brigadas para sanitização das favelas, contratação de médicos e criação de um Samu próprio, enfim, uma miríade de iniciativas e inovações foram desenvolvidas pelos próprios moradores, com apoios da sociedade civil e de órgãos, como a Defensoria Pública, que obrigou o Rio de Janeiro a fornecer água para as favelas (veja informações sobre coronavírus nas favelas em wikifavelas.com.br) Mesmo assim, sabemos que, não havendo um plano de contenção específico para as favelas, na ausência do poder público, a mortandade será fatal. Esse é o limite da nossa pobre proteção social!

A arquitetura federativa do SUS não tem sido utilizada, a CIT – Comissão Intergestores Tripartite não se reuniu desde o início de fevereiro, e os representantes dos secretários estaduais de Saúde – Conass – e dos secretários municipais de Saúde – Conasems – não têm participado efetivamente do processo decisório, abrindo-se mão do poderoso mecanismo de governança compartilhada que sustentou o SUS até agora

17 – O pior de tudo foi como o governo promoveu a contaminação massiva ao gerar uma burocracia impensável, para que os pobres tivessem acesso ao auxílio emergencial aprovado pelo Congresso no valor de R$ 600,00. CPF, app, inscrições on-line, um celular para comunicação, abrir contas, filas intermináveis nas portas das agências da CEF, enfim tudo que nem mesmo o mais sádico burocrata poderia conceber. Ao invés de utilizar a lei da renda básica de cidadania e distribuir os recursos para a totalidade da população, criando a opção de destinação dos recursos para o fundo nacional de saúde, utilizando as prefeituras e as organizações comunitárias como canais descentralizados e mais próximo da população. Essa política tem um nome, necropolítica, ou seja, o exercício do poder pela eliminação dos indesejáveis. Ambiguamente, às vezes considerados essenciais, como as empregadas domésticas na visão do prefeito de Belém, ou os entregadores de comida na visão da classe média nacional.

18 – A população indígena, que é altamente vulnerável à contaminação e não apresenta defesas imunológicas, está sendo infectada pelos grileiros e garimpeiros, favorecidos pela política do governo central. A iniciativa internacional para estancar a disseminação entre os indígenas tem sido a mais importante iniciativa nesse sentido.

 A arquitetura federativa do SUS não tem sido utilizada, a CIT – Comissão Intergestores Tripartite não se reuniu desde o início de fevereiro, e os representantes dos secretários estaduais de Saúde – Conass – e dos secretários municipais de Saúde – Conasems – não têm participado efetivamente do processo decisório, abrindo-se mão do poderoso mecanismo de governança compartilhada que sustentou o SUS até agora

19 – A regulação única dos leitos hospitalares nas redes pública e privada, apesar de apoiada constitucionalmente (art. 197) e na lei orgânica da saúde (Lei 8080), parece ser um tabu que a maior parte dos governantes não quer quebrar e que os empresários relutam em disponibilizar. A mobilização das entidades científicas e profissionais e a experiência internacional mostram que essa é a única saída ética factível. Medidas judiciais e de executivos locais como o decreto de requisição administrativa de leitos privados promulgado pelo Governador do Maranhão já mostram que o caminho será esse, inevitavelmente.

20 – No meio do pandemônio e da pandemia não dá para divisar se o SUS e o federalismo sairão fortalecidos ou não. Depende da resistência democrática, dificultada pelo próprio isolamento e pela falta de alternativas ao pacto de poder vigente. Muitas questões foram enunciadas acima, mas ainda não há uma agenda federativa comum. O fato do nosso federalismo ser altamente concentrado na condução política e financeira da União é um empecilho, pois temos um governo central dificultando uma ação coordenada efetiva no enfrentamento da pandemia. Sua superação será necessária, o que redesenhará o federalismo brasileiro de forma inequívoca, ou o país sucumbirá à pandemia e ao pandemônio.

* Na impossibilidade técnica de atender ao convite da Abrasco para participar da Ágora sobre o tema do Federalismo, realizada dia 28 de abril de 2020, aproveito para adicionar esses comentários às importantes contribuições dos palestrantes e debatedores.

** Sonia Fleury é doutora em Ciência Política e pesquisadora sênior do CEE- FIOCRUZ, onde integra o grupo de pesquisa sobre Futuros do Federalismo no Brasil.

O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es), não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

Redação

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