Pandemia, racismo e genocídio indígena e negro no Brasil: coronavírus e a política de extermínio, por Felipe Milanez e Samuel Vida

As tragédias são sempre socialmente desiguais e expõem de forma mais gritante as desigualdades historicamente construídas

Foto: Reprodução

Pandemia, racismo e genocídio indígena e negro no Brasil: coronavírus e a política de extermínio

Por Felipe Milanez[i] e Samuel Vida[ii]

Artigo originalmente publicado no Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais

 

 

Tragédias são sempre socialmente desiguais e expõem de forma mais gritante as desigualdades historicamente construídas, como o grau de exposição aos riscos e a construção das vulnerabilidades. O novo coronavírus Sars-CoV-2 é um agente não humano oriundo de uma zoonose que infecta pessoas e provoca infecções respiratórias, e não foi produzido por humanos em laboratórios, como especulam certas teorias da conspiração. Trata-se de uma nova virose circulando entre humanos e que rapidamente se espalhou por todos os continentes.

No entanto, a exposição ao vírus e o tratamento de seus efeitos infecciosos entre as populações humanas tem sido distribuído de forma extremamente desigual. Enquanto algumas pessoas têm tido acesso privilegiado aos cuidados médicos, a equipamentos para garantir o direito de respiração, de inspirar oxigênio, outros grupos sociais arcam de forma desproporcional com os custos dos males, em uma lógica estruturada pela classificação social.

Essa distribuição desigual pode ser manipulada para o controle de vidas e de maior exposição de grupos sociais à morte, num exercício típico de necropolítica (Mbembe, 2018, 2020).

Entre os atos que caracterizam o crime de Genocídio conforme a Convenção da ONU de 1948, está o de “submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial”. O novo relator especial da ONU para sobre os direitos dos povos indígenas, José Francisco Cali Tzay, do povo Maya Kaqchikel, da Guatemala, cujo ex-presidente Efraín Ríos Montt foi condenado por genocídio, tem um longo trabalho em sua carreira combatendo o racismo em seu país. Em sua primeira manifestação oficial no novo cargo, destacou que “o Covid-19 está devastando as comunidades indígenas do mundo e não se trata apenas de saúde”[iii]. No Brasil, Abdias Nascimento (1978) desmascarou de forma pioneira o nexo direto entre racismo e genocídio negro, que o atual momento de crise está não apenas exposto, como acelerado e também contra indígenas.

A Comissão Nacional da Verdade reconheceu a responsabilidade pela morte de 8.350 pessoas indígenas pelo Estado, o esbulho das terras indígenas e violações de direitos “por ação direta ou omissão”. O crime de Genocídio não se caracteriza pelo número ou quantidade de pessoas mortas, tampouco pela expressa manifestação da intencionalidade genocida, mas sim pelo modo comissivo ou omissivo das ações empreendidas e pelos seus efeitos objetivos. Uma ou algumas mortes produzidas com o interesse de exterminar um grupo afeta a toda dinâmica existencial do grupo, direta e indiretamente, ferindo sua autonomia, fragilizando seu protagonismo político e suas estratégias de resistência cultural, contribuindo para a desintegração de suas identidades e desaparição física.

No caso do Brasil, mesmo antes da divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, o uso político do coronavírus como um elemento para produzir morte de grupos sociais específicos e definidos racialmente assume a característica de genocídio. Não precisava o Ministro da Educação escancarar a ideologia fascista dizendo que tinha ódio ao “termo ‘povos indígenas’”, “povos ciganos”, “pode ser preto, pode ser branco”, ou “descendente de índios”, e se vitimizando para “acabar com esse negócio de povos e privilégios”, para expor como a pandemia acelerou a implantação de uma politica fascista que se materializa com o extermínio.

Já são mais de 24 mil mortes, e elas não foram distribuídas ao acaso da natureza do vírus entre os mais de 380 mil infectados no segundo país mais atingido do mundo. Numa sociedade historicamente estruturada pelas assimetrias sociorraciais que atravessam inclusive as classes sociais, definindo graus diferenciados de reconhecimento e acesso aos direitos sociais, civis e políticos elementares, as vítimas preferenciais deste genocídio são, fundamentalmente, as comunidades negras urbanas (favelas, invasões, cortiços, vila, ocupações etc) e rurais (quilombos, comunidades de fundo e fecho de pastos entre outras formas tradicionais de ocupação de territórios) e os diversos grupos étnicos dos povos originários, chamados genericamente de povos indígenas, também vivendo em contexto urbano, em áreas rurais e em florestas.

Um genocídio relacionado tanto à depuração étnica quanto ao interesse na exploração econômica das terras e dos corpos — sejam das trabalhadoras negras submetidas a um regime de superexposição aos riscos de contágio pela manutenção das atividades do trabalho doméstico nas residências das famílias brancas[iv], sejam dos trabalhadores negros do mercado informal, sejam dos trabalhadores indígenas e negros vinculados à produção do agronegócio, sejam das comunidades indígenas e quilombolas espoliadas de suas terras em medidas que visam legalizar garimpos e grilagem aprovadas em meio a pandemia. Fanon havia identificado a perfeita correlação entre economia e ideologia numa sociedade racista “Numa cultura com racismo, o racista é, pois, normal. A adequação das relações econômicas e da ideologia é, nele, perfeita” (2018, p. 86).

E, no caso de Bolsonaro e um governo que já demonstrou aberta inspiração no regime nazista e, soma-se, também, a eugenia com a exposição à morte de pessoas idosas, doentes, marginalizadas[v]. Na mesma reunião ministerial, os ministros Paulo Guedes, da Economia, e Ricardo Salles, do Meio Ambiente, desenharam o alinhamento dentre a ideologia do bolsonarismo com o interesse econômico através da implantação da politica fascista, tal como Fanon havia denunciado: a “oportunidade” que o momento de “tranquilidade” do genocídio oferece de expansão de lucros, mineração, novas terras para o agronegócio escravagista, além de ter sido colocada uma “granada” no bolso da classe trabalhadora.

No Brasil, o racismo institucional (Carmichael; Hamilton, 1967) impregnado nas estruturas e políticas públicas estatais é uma continuidade do colonialismo – racismo, colonialismo e conquista são termos inseparáveis, como diagnosticaram Aimé Cesaire (1978) e Frantz Fanon (2005). A plasticidade das práticas racistas adotadas ao longo da história da formação social e institucional do país possibilita uma vigorosa reelaboração e adaptação aos novos cenários conjunturais decorrentes da pandemia do novo coronavírus.

O pacto narcísico da branquitude (Bento, 2002) produz uma legitimação das políticas racistas ocasionando um silenciamento de grande parcela dos setores autodeclarados progressistas, incluindo seus partidos políticos e instituições representativas da sociedade civil, hegemonizados por setores brancos beneficiários históricos das políticas de exclusão racial de negros e indígenas, bem como da apropriação desigual de recursos materiais e simbólicos e acesso às estruturas político-jurídicas.

Cida Bento identificou estas alianças inter-grupais entre brancos, o “pacto”, que chama de narcisistico porque constrói uma projeção sobre o negro carregada de negatividade, inventa o outro inferior, ameaçador diante da superioridade do branco. Essa negação evita enfrentar o problema da manutenção dos privilégios raciais, o medo da perda. Esse silenciamento promove a interdição de negros e de índios em espaços de poder, e a exclusão de espaços de vida, como o acesso a respiradores mecânicos.

Nestes pouco mais de dois meses de enfrentamento da pandemia no Brasil, além da evidente e criminosa escolha política pelo governo federal de minimizar os riscos da pandemia e dificultar o estabelecimento de uma estratégia comum coordenada e estruturada conjuntamente com Estados e Municípios, mesmo as políticas e esforços empreendidos pelos governos estaduais e municipais são marcados por recursos, medidas e discursos tipicamente direcionados aos segmentos brancos integrantes das classes altas e médias urbanas e rurais. E quando não basta, a elite branca embarca em um avião UTI para ter acesso tratamento diferenciado num hospital para brancos na sede do centro do capitalismo nacional[vi].

Resumidamente, as políticas de combate à pandemia adotadas estão centradas num eixo supostamente geral e universal que, no fundo, toma como medida as circunstâncias de vida e os recursos acessados pelos segmentos brancos da sociedade brasileira. Assim, as principais orientações e medidas, a exemplo da intensificação da higienização mediante o uso de álcool em gel, água e sabão, a adesão ao isolamento social, o desenvolvimento de atividades laborais em home office, a suspensão de atividades escolares e de parte dos serviços públicos e atividades econômicas não essenciais, além de outras práticas de distanciamento social, só se mostram efetivamente possíveis para as parcelas brancas da sociedade brasileira.

Inexistem políticas específicas para as comunidades negras e indígenas, considerando sua histórica privação material, sua concentração na esfera precária das atividades laborais de serviços, no mercado informal e em atividades rurais vinculadas à produção de alimentos e à agroindústria, as peculiaridades de suas sociabilidades comunitárias, sobretudo em situações de moradias precárias, com alta densidade demográfica e desservidas de bens básicos de infraestrutura, suas dificuldade de acesso aos itens básicos para a intensa higienização prescrita, bem como suas singularidades socioculturais. Diante desta criminosa omissão, proliferam os dados que confirmam uma maior letalidade entre estes grupos, que se encontram efetivamente deixados para morrer[vii].

Se o novo coronavírus é uma novidade epidemiológica para a espécie humana, não há vulnerabilidade decorrente de contatos anteriores, como antigas epidemias que possam ter surgido de Ásia, ou África, Europa, e transportadas para as américas, todos humanos são igualmente vulneráveis, mas alguns morrem mais do que os outros. Não há estrutura genética que explique e justifique diferenças sobre porque no Brasil negros morrem cinco vezes mais[viii] do que brancos por covid-19, ou porque o índice de infecção é maior entre indígenas, até 744%, do que entre brancos[ix].

diferença está no muro: de que lado os indígenas e os negros estão, e de que lado do muro estão os brancos[x]. E esse muro se expande no território em um movimento estruturado pelo racismo ambiental (Bullard e Wright, 2009) direcionando a exposição ao risco a populações racialmente inferiorizadas, como por exemplo a destinação de um hotel para isolamento social nas proximidades do território tupinambá na Bahia,[xi] ou a irresponsável ação policial de reintegração de posse verificada em São Paulo, desalojando 50 famílias[xii], ou ainda a criminosa decisão do governo federal[xiii] de desalojar 800 famílias quilombolas a pretexto da instalação da Base Espacial de Alcântara, no Maranhão.

Mesmo com a alarmante expansão da letalidade junto aos grupos raciais historicamente vulneráveis, os diversos governos começam a esboçar um discurso cínico de responsabilização das vítimas, a partir de sugestões como a suposta “indisciplina” e insistência em violar as regras de isolamento e distanciamento social, além de acenar com medidas de intensificação da repressão policial, criminalização e aumento da opressão sobre estes grupos, indicando o “lockdown” como última solução, nos espaços urbanos, sem cogitar a elaboração e adoção de outras políticas adequadas às especificidades destes grupos.

Enquanto isso, pessoas pertencentes a povos originários morrem e tem a sua identidade negada. Mesmo na hora da morte as pessoas pertencentes aos povos originários têm a sua identidade negada, pois, sem consulta ou contra o desejo de seus familiares, são enterradas como como “pardos”, enquanto gritam por socorro[xiv]. Entre os Kokama do Alto Amazonas, por exemplo, mais do que entre os brancos da sociedade nacional, o novo coronavírus tem uma “alta letalidade[xv] que diferencia do segmento branco da sociedade nacional. Mas suas mortes não constam da lista oficial do Ministério da Saúde.

Por esta razão, o movimento indígena, através da Articulação dos Povos indígenas do Brasil (APIB), passou a realizar sua contagem própria dos mortos e infectados para denunciar a política de extermínio e criou o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena. Essa diferença entre os dados do movimento e do governo federal ultrapassa 100% no número de mortos: 143 mortes registradas pelo Comitê em 26 de maio, enquanto nessa mesma data o Governo Federal conta 40 óbitos e ignora o caso de outras 103 pessoas indígenas que faleceram nesse período. Estes dados revelam que a taxa de letalidade entre indígenas, que já atingiu 67 povos, pode ser superior a 16%, frente a aproximadamente 6% da população brasileira em geral.

Situação semelhante enfrenta a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), que teve a mesma iniciativa e passou a produzir um boletim epidemiológico próprio diante da inviabilização e negação do Estado. Nele, identificaram 48 óbitos, 200 casos, em 1o Estados diferentes, e tem denunciado especificamente o caso trágico em curso no Amapá com relação às populações quilombolas, e a “negligência por parte dos governos locais[xvi]. A entidade quilombola lançou o manifesto[xvii] Vidas Quilombolas Importam. Ambas coalizões de movimentos denunciam o racismo institucional as subnotificações[xviii] como estratégia de invisibilização do extermínio, e construíram boletins epidemiológicos próprios e independentes do Estado.

A afirmação de que há um genocídio em curso no Brasil não é retorica. Tem sido denunciada pelo movimento indígena e negro como uma “política de extermínio”. O Genocídio é um processo. Não é uma “bomba atômica” jogada ao léu. Esse processo de Genocídio dos povos indígenas e negros, que se acelera e se torna aberto com o governo Bolsonaro, diante do Covid-19, pode ser usado como uma “solução final” para avanço do agronegócio e da grilagem sobre as terras indígenas, bem como para o aprofundamento das políticas de desconstitucionalização dos direitos sociais e incremento da criminalização e repressão às comunidades negras urbanas e rurais.

Diante do silêncio cúmplice produzido pelo pacto narcísico da branquitude, resgatar a relação entre racismo, colonialismo e Genocídio, como alerta a cacica Juliana Kerexu[xix] é pertinente e fundamental para se entender o que está acontecendo especificamente no Brasil, mas que pode também se reproduzir em outras situações com contextos semelhantes. Convém rememorar que, historicamente, todas as guerras de conquista se beneficiaram das epidemias para ocupar territórios, seja contra quilombolas ou, principalmente, povos indígenas. Também, a pretexto de combater epidemias foram implementadas verdadeiras faxinas étnicas nas grandes cidades da diáspora, especialmente no início do século XX, aprofundando a exclusão das comunidades negras, empurrando-as para os morros, guetos e demais locais de desamparo e ausência de bens e serviços públicos.

Além de buscar a mobilização de alianças políticas junto à sociedade brasileira e aos movimentos sociais para deter e reverter a atual situação, pressionando os Poderes Públicos a adotarem políticas específicas para o enfrentamento da pandemia nas comunidades negras e indígenas, é necessário ainda convencer as instituições jurídicas como o Ministério Público Federal e os MPE’s, a Defensoria Pública da União e as DPE’s, a cumprirem suas atribuições constitucionais e atuar na defesa dos direitos difusos e coletivos destes segmentos. Neste sentido, a opinião pública internacional pode cumprir um importante papel como uma preciosa aliada na luta contra o Genocídio indígena e negro no Brasil.

Por fim, caberá também um esforço comum para acionar as instâncias protetivas dos Direitos Humanos em escala regional, como a OEA, e em escala mundial, como a ONU, repercutindo as denúncias e responsabilizando os governos e os governantes responsáveis pelo Genocídio em curso.

Aimé Cesaire mostrou que uma sociedade que fecha os olhos aos seus problemas mais cruciais é uma sociedade doente.

A hipocrisia da burguesia europeia colonialista produziu um Hitler dentro da própria Europa, pois toleraram o nazismo quando era praticado com os outros, antes de sofrerem e serem suas próprias vítimas. Césaire denunciou que o hitlerismo vivia dentro do humanismo burguês, era o seu demônio, e que Hitler era o crime contra o homem branco, a aplicação na Europa de processos colonialistas que apenas os colonizados estavam subordinados. Ninguém coloniza impunemente.

Se no Brasil hoje o governo incentiva a situação de invadir as terras e matar indígenas e quilombolas, como disse em uma entrevista recente Ailton Krenak, lembrando Césaire e o apontamento da doença da sociedade produzida pelo nazismo, o genocídio e a política da morte afronta a vida de todos os brasileiros. O problema, coloca Krenak, é que “os brancos continuam fazendo de conta que têm um país civilizado”[xx].

 

[i] Felipe Milanez é Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC) da Universidade Federal da Bahia, integra o Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade. Doutor em sociologia pela Universidade de Coimbra, é coordenador do Grupo de Trabalho CLACSO Ecologia(s) Política(s) desde el Sur/Abya Yala. Foi editor da revista National Geographic Brasil e da revista Brasil Indígena (Funai). Autor de Memórias Sertanistas (Ed. Sesc) e Guerras da Conquista (Harper Collins).

[ii] Samuel Vida é Ogã de Xangô do Terreiro do Cobre, Salvador, Bahia. Militante do Movimento Negro. Doutorando em Direito, Estado e Constituição, UNB. Professor de Direito da Universidade Federal da Bahia. Coordenador do Programa Direito e Relações Raciais (PDRR/UFBA). Secretário Executivo do Afro-Gabinete de Articulação Institucional e Jurídica (AGANJU). Atuou como consultor do PNUD/ONU e Câmara dos Deputados na elaboração do Estatuto da Igualdade Racial. Coordenou a campanha Na Fé e Na Raça.

 

 

Redação

1 Comentário

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  1. A denúncia de Bolsonaro à Câmara por genocídio, com todas as provas verbais, negacionismo da ciência, atos e omissões seja no que se refere ao Covid, como no que se refere à ameaça à integridade de povos indígenas e negros tem mais efetividade para rumar para um impeachment do que o processo no TSE.
    E porque não lutar pelos dois processos concomitantemente?
    Um grupo de advogados, como fizeram com a Dilma, tem provas robustas para apelar para a Câmara de Maia, como foi feito na época de Cunha, de infeliz memória

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