Paquiderme, por Wilson Ramos Filho

Paquiderme

por Wilson Ramos Filho (Xixo)

Não lembro bem quando foi. Faz tempo. Meus filhos ainda não eram nascidos. Fui convidado para falar sobre arbitragem de conflitos coletivos de trabalho na Associação Comercial do Paraná (ACP). Havia publicado minha tese de doutorado sobre o tema.

O ambiente me era hostil. Falaria para empresários compondo mesa com advogados empresariais. Achei importante aceitar. Levaria a eles uma visão diferente daquela à qual estavam acostumados e defenderia a necessária contratação coletiva das condições de trabalho e de mecanismos de solução de controvérsias decorrentes das relações de emprego.

Eram cinco expositores, quatro figurões do universo empresarial e um desconhecido esquisito de rabo de cavalo. Para não ferir os inflados egos na preferência de quem falaria por primeiro, ordenaram as intervenções por ordem alfabética. Foi minha sorte e meu azar.

O tema geral era Dissídios Coletivos e relações de trabalho, ou algo assim. Como seria de se esperar, com pequenas variações, todos defenderam a prevalência do negociado sobre o legislado, a desoneração das folhas de pagamento, a modernização nas getulistas leis trabalhistas, o afastamento do estado nas relações de trabalho e as privatizações. Cada um a seu modo insistia na incompetência paquidérmica do Estado comparando-a à eficiência e ao dinamismo empresarial. Aquilo foi me irritando.

Minha intervenção começou de modo desastroso. E depois só piorou. Entrei atravessado. Afirmei que nem sempre a iniciativa privada era eficiente, questionei a mão invisível do mercado e cometi a inabilidade de falar em corda na casa de enforcado. O banco Bamerindus havia quebrado, prejudicando os acionistas minoritários. Por influência de FHC, foi comprado pelo HSBC pelo valor simbólico de R$ 1,00. Esta era, afirmei, uma evidência de péssima gestão privada que prejudicara milhares de pessoas. Matizei, pode haver má gestão no setor público e no privado.

O desconforto foi imediato. Dois ou três deixaram ostensivamente o recinto. Todos se moveram nas poltronas, entreolharam-se, chocados com o que ouviam. O presidente da mesa, silente durante as exposições anteriores, interveio, de forma ríspida e deselegante. Sustentou que o Bamerindus havia quebrado porque o Banco Central, incompetente como tudo que era estatal, não havia fiscalizado adequadamente as atividades do banco paranaense. Concordância geral. Estupefato e inexperiente, bati boca com ele. Mesmo diante da evidente ineficiência da gestão privada do banco, a culpa era sempre do Estado, indaguei.

Foi um deus nos acuda. Pessoas se levantaram, alguns gritavam, a maioria apenas bufava entre muxoxos. Um desastre. O evento foi encerrado sob pretexto do adiantado da hora. Ao final nem se despediram de mim.

Caminhando para casa, nervoso, enfim compreendi as reações de meus interlocutores. Maria Cristina Andrade Vieira, herdeira e gestora do Bamerindus, era (ou havia sido, não lembro direito) presidente da ACP, a entidade anfitriã. Entre tantos exemplos de gestão privada temerária, por alguma razão psicanalítica, tive o mau-gosto de escolher falar logo sobre o Bamerindus! Agi como um hipopótamo em uma loja de louças.

Conto essa história para dela destacar um aspecto que me parece atual: a culpa sempre é do Estado, dos governos, para aqueles que não conseguem pensar a realidade fora da racionalidade liberal, capitalista.

Vejo nas redes sociais muitas críticas às administrações públicas que não impõem o isolamento social e que, mesmo com número crescente de mortes e de contaminados, flexibilizam o distanciamento social. O banco quebrou porque o estado não fiscalizou. Os negócios estão abertos porque o estado permite a reabertura. O banqueiro não teve culpa, estava no papel dele. Os empresários não têm responsabilidade pelas milhares de mortes que decorrerão de sua gananciosa insistência em voltar à normalidade da exploração capitalista. A culpa é do governo, do presidente, do governador, do prefeito.

Boa parte da população, diante do afrouxamento das diretrizes públicas, está saindo do isolamento. Estamos flexibilizando nossos protocolos. Vamos aos parques, batemos perna, desnecessariamente, pelas ruas, visitamos e recebemos pessoas em nossas casas, já não trocamos de roupa ao voltar da rua, não lavamos com tanto esmero as compras, relaxamos nos cuidados pessoais, com os nossos e com os outros. Morrerão centenas de milhares de pessoas sem ar, como enforcados, em decorrência dessa nossa atitude, mas a culpa é do Bolsonaro, do governador, do prefeito que não quiseram ou não conseguiram resistir à pressão dos empresários para a retomada da atividade econômica. O capitalismo não é responsável.

Como visto, sigo sendo um hipopótamo em loja de louças e, inconveniente e inoportuno, continuo a falar em corda na casa de enforcado. O inferno são os outros, disse Sartre. A culpa é dos outros e a responsabilidade é do governo que não fiscaliza. Estamos contaminados pela maneira bolsonara de viver em sociedade. Não consigo respirar. Mas a culpa não é minha, não é tua, não é nossa.

Wilson Ramos Filho (Xixo), professor de Direito do Trabalho (UFPR), integra o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora.

Redação

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