Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Para José Dirceu, por Urariano Mota

Imagem Reprodução

Para José Dirceu, por Urariano Mota

Leio na Folha de São Paulo a noticia de que a mãe de José Dirceu foi enterrada em Minas Gerais, Notícia curta, da qual anoto.

“Segundo amigos da família, Dona Olga era poupada do noticiário sobre seu filho desde a explosão do escândalo do Mensalão, em 2005. Sempre assistia a filmes em canal fechado.

Preso em novembro de 2013, o ex-ministro pediu que a mãe não fosse informada sobre a detenção antes do Ano Novo. Para justificar a ausência dele nas festas do fim de ano, a família disse à matriarca que Dirceu estava fora do país.

Dona Olga, que nos últimos anos apresentava falhas de lucidez, também não soube que a casa onde morava fora confiscada, em maio do ano passado, por decisão do juiz Sergio Moro. “

Apesar do esforçado tom neutro da notícia, em parágrafos ocultos pude sentir a tristeza e as circunstâncias de José Dirceu na última visita ao corpo da mãe. E fiquei sentido no íntimo. E me impressionou não existir um só repórter que lhe pedisse, fale com o seu coração, José Dirceu. Fale o que não lhe deixam falar. Fale  da sua injustiça, do seu projeto de vida que desejam matar. Conte a sua dor. E como sou ruim, muito ruim de improviso, recupero para ele um trecho do meu romance “O filho renegado de Deus”, publicado em 2013. E pouco me importa que chamem a isso de oportunismo. Pouco importa. A tua dor é nós, Zé Dirceu:    

Ali como agora: a mãe não está morta. Essa é uma ideia que resiste a toda e qualquer lógica, até mesmo aos fatos, aos acontecimentos vividos e testemunhados. A mãe não está morta. Para o sentimento, para a percepção essencial, que diabo são os fatos? O concreto vira falso concreto, o palpável vira engano, e de tal modo que a evidência de ver como São Tomé vira uma burla. O concreto é o que resiste na consciência, ainda que não se possa mais pegá-lo. Isso, contra toda a tradição racionalista, era um tabu, um obelisco erguido contra si, a que ele não podia olhar nos anos de clandestinidade. Pois não encaramos aquilo que contraria a proclamação de nossos ideais públicos. Sobre o que se opõe ao que falamos corremos de olhar detido. Mas o coração rumoreja, e rebelde em silêncio continua a sua busca, daquela que os olhos não veem mais, daquela que insistem em lhe falar que não está viva. O coração continua, e faz seu caminho onde só veem pedras, urtigas, raízes murchas. Ele não sabia, não podia nem queria saber, porque grande era a dor sufocada, que no mais íntimo ele continuava a procurar uma forma e conformação para a mãe. Disso não tomava consciência, porque além de se confessar uma fraqueza era também um ser de intimidade vergonhosa, o olhar para mulheres com alguma coisa dela. Ou da sua feminilidade, ou da sua bravura, ou dos gestos do mais calado carinho. De uma generosidade até o sacrifício. Mães assim se faziam dignas do mais louco amor.

Mas ele não sabia, ninguém devia saber. Isso era desnudo de absoluto segredo, isso estava naquele capítulo e jarro precioso, onde se guarda, e se defende com todas as armas, um caráter próprio, a esquisitice de uma personalidade. No entanto, ainda aí, apesar dos embuços, estava um traço detectável em consultas no divã ou prospecção psicanalítica. O que ele não sabia, nem desconfiava da existência, é que ele sonhava com a vida da mãe mesma, ela própria, sem fantasia ou corpo disfarçado em outras, vale dizer, se o pudor destas linhas for jogado fora, ele sonhava com a sua volta, sim, ela própria, a sua pessoa concreta, real, se assim se pode expressar. “Mas como o real, se ela não mais existia?”, perguntava-se em seus diálogos ocultos de si, do mundo consciente. “Ora, ora…”, respondia-se ainda mais entranhado, com uma pergunta de desejo absoluto, “os mortos não voltam?”. Nesse diálogo de vozes ocultas, nessas vozes que passavam à revelia da sua mente apresentável, nessas falas que fluíam lá no quintalzinho da casinha do bequinho estreito e escondido no fundo de si, ele se falava e sabia ser possível uma dilatação da vida da mãe depois da morte, ou seja, o absurdo de que a sua consciência de visita desprezava, “ah, os mortos”, com um estalo nos lábios que significava “os vivos depois da morte, que bobagem”.

Então nós que o narramos, que o vemos, temos vontade de sorrir para a sua grande certeza, aquela da consciência apresentável, “ah, os mortos…”. Pois ele desprezava o absurdo como os amantes apaixonados dizem desprezar a sua paixão. “Ah, aquela mulher, isso é passado”. E, ao perceberem que não são vigiados, voltam com uma sôfrega pergunta, “você tem visto essa mulher?”, para a continuação ainda mais objetiva e neutra, “onde ela mora agora? em que rua?”, e mais, “está sozinha? é bonita ainda?”. Ah, os mortos. Coisa mais óbvia e redundante: quem não sabe que os mortos estão mortos? E o coração, no mesmo passo em que fala alto essas obviedades, fala-se com uma revolta ainda mais funda e secreta, “não, não, eu a quero com todas as minhas forças, em que lugar mora e vive essa mulher que falo ser passado?”. E por isso Ele, ateu, materialista, em plena maturidade ainda a queria em uma vida nova, como se morta estivesse viva, como se aquela mãe no caixão fosse um engano, ou, de modo mais decisivo e corajoso para o seu coração de materialista, “A mãe continuava em uma segunda vida”. Se é uma lei universal que os mortos estão mortos, essa lei não se aplica a ela, porque se foi morta, hoje está viva.

Então o seu peito de conformar, querendo traduzir o absurdo à razão, dava à mãe uma nova vida, mas com os sinais do tempo, a saber, ela em sua segunda estaria um pouco curva, mais baixinha, e de cabelos brancos. Um tantinho mais magra também, porque na velhice – uma velhice exterior, já se vê, por acréscimos de artifícios -, porque a mãe envelhecida fazia dieta para controlar a glicose no sangue, e por isso estaria um pouco mais magra. E coisas assim, creia-se, não são uma fantasia, divagação ou desnorteio poético. A poesia se dá dentro de cada um liberto, quando nos abandonamos ao que nos faz pessoas. Pois assim se deu, de repente, quando lia algo referente a Hemingway, sentado a um canto e janela, esquecido de si, do mundo, somente atenção exterior ao que lia. Na altura do cemitério, passou ao seu lado uma senhora baixinha, de cabeça branca, com o rosto da mãe, com a respiração ofegante da mãe, com o andar e a beleza da mãe. Foi impressionante como ela se fez ver, sem lhe bater no ombro, sem lhe falar, pois apenas o chamou com a sua passagem e presença. Sem o cheiro nauseante das flores no caixão, ela era uma senhora viva, silenciosa e viva, que lhe anunciava “olha-me, vê-me, eu te digo: a nossa ligação continua. Eu te salvo e te redimo”. Era ela, a voz possuía o calor e timbre do afeto identificador. Pois há um lugar fora das delegacias policiais onde o amor identifica pessoas sem precisar de fotos, impressões digitais e outras evidências inúteis. Ele é determinante da singularidade de uma pessoa como um todo, ao mesmo tempo que a decompõe em traços resistentes aos abalos dos anos ou disfarces. É a temperatura da voz que chega em um telefonema, não importa quanto tempo haja corrido, é até um anúncio de voz que não se emite, em frases, palavras que ninguém escuta, a não ser o amado, o conhecedor, cuja percepção desvenda a fala em um olhar.

Assim a mãe passou por ele na altura do cemitério. Ele não soube o que fazer então. Vontade lhe deu de pular e tocar, tocar aquela senhora (mas ela seria desfeita como bolha de sabão?), e mais vontade lhe deu de pular sobre ela, tocar-lhe a nuca, beijá-la no cangote, mas ela reagiria “quem é você?”.

– Eu sou o teu filho, mãe. Nota como fiquei metido a besta. Leio, anoto e discuto autores reconhecidos no mundo. Nota como estou vestido, bem vestido, diferente de quando era nu. Eu agora como e bebo o que nunca comeste ou bebeste. E ainda assim eu sei, eu sou teu filho, mãe. Eu sou aquele que contigo comeu tanajura.

Essas coisas que dão vontade, por timidez ou medo, e nesse caso foi mais medo que timidez, porque para a mãe ele jamais seria tímido, na hora ele teve um medo menor, de gente pequena, indigna do menino: na hora teve medo de cair no mais vergonhoso ridículo. Que coisa feia seria se, contra todas as evidências, se a mãe se voltasse e o olhasse, ainda que com uma denúncia no olhar:

– Eu não sou a mãe. Eu não me chamo a mãe.

Mas ainda aqui ele a olharia pela penúltima vez, nunca pela última, para lhe gritar:

– Por que você me engana?

Na hora foi esse medo de escândalo, de ridículo que o paralisou. Mas o medo mais grave lhe veio depois, ao refletir. E se ele houvesse dado um pulo para a ilusão? Isso queria dizer, um pulo para o nada, um pulo para agarrar a bolha de sabão? Ou tocar na imagem do espelho, onde em lugar de um corpo de carne só se encontra um reflexo? Mas aí a desilusão era bem diferente do que ilude a matéria bolha de sabão, a matéria espelho e imagem. Seria uma desilusão de identidade. Tocar na mãe e vê-la desfazer-se no ar, não, o seu amor o impediria. Ela não seria morta duas vezes, uma naquele caixão, outra no seu reaparecimento. Então ele viu, ao levantar os olhos daquela boba e descartável página, a passagem da mãe ao seu lado, que não lhe tocou com as mãos nem lhe falou com a boca, mas que o levou a vê-la dizendo-lhe:

– Não procures, filho, o mundo em representações vãs, não procures a vida no que é mais vaidade, ouro de latão que vida. Não te percas. Eu sou o teu caminho há muito. Mas foges, insistes em não me ver. Tu queres uma sonata, eu sou ela. Tu queres um desenho, uma pintura, isso já te dei. Tu queres a revelação impossível do carinho, basta que me sigas. Volta a tua vista para meu vestido sujo.

E foi tão rápido em instantes físicos, contáveis, estreitados e comprimidos em segundos, foi tão rápido. Mas que duração! É ela, ele se disse, é ela, e não soube ao certo se se abandonava à sua presença, se se dizia, “para com isso, é impossível, A mãe morreu”, mas como? Ela era palpável, visível, estava passando ao seu lado às 13 horas de uma sexta-feira, é ela, ele se disse. E ficou em estado de êxtase, esquecido de que era um empedernido ateu, um rígido materialista, abalado que estava no ônibus por um movimento do coração. É ela. Então os transportes dos cristãos, dos loucos, dos místicos de todas as religiões é real, é real, e ele não sabia, porque dava a todos a categoria de ilusões de alienados. Mas isso na hora ele não pensou, descobriu depois sem a ninguém falar, guardou em si aquela língua de pentecostes, porque era mais abrasante que suas proclamadas crenças. A mãe passava ao lado mui digna, velhinha, pobre mas em belo vestido, talvez porque, depois de tantos anos, muito houvesse melhorado. Elegante, com uma elegância natural, sem alarde. Olhando-a bem – e o coração olha melhor à distância -, olhando-a bem, os anos haviam tirado dela o ar selvagem, ou o aspecto livre de mulher índia, quem sabe ela houvesse ficado uma índia civilizada. Ou melhor, na aparência exterior domesticada. A mãe ali, tão rápido, talvez fosse uma concessão do afeto. Talvez com lógica amorosa, naquele amor que é cego para a miséria material, talvez o sentimento corrigisse o passado.

*Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia/299487-1

 

 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

4 Comentários

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  1. Só nos blogues a gente

    Só nos blogues a gente consegue ler alguma homenagem respeitosa à mãe de Diceu e também a ele e sua família. Já exprimi o sinto tão profundamente mesmo antes de saber que Dona Olga anda meio esquecida. De repente, pode ter sio melhor a diminuição da memória para um mãe que teve que viver o que ela viveu em relação ao filho, e à família em geral, afinal se um ente querido tem seu nome enxovalhado todos os parentes sentem, porque também são discriminados. 

    Renovo meus desejos de que Deus tenha recebido Dona Olga com todo Seu carinho e amor, oferecendo-lhe um cantinho de paz, a Paz de Deus que a gente não vê por aqui.

     

  2. Sabe filho

    Talvez eu saiba de tudo,mesmo que ande esquecida, sei que quando as notícias rareiam,  rondam os perigos. São perigos covardes, apenas porque você anda por aí altivo. Mas filho, cuidado com os homens mediocres , pois eles tem ódio.

    Já notou que eles não tem olhos, apenas vísceras. Não tem mãos  apenas garras  e tem um profundo medo, mas se fantasiam quando ganham poder.

    Eles chegaram até aqui a nossa porta, e eu vi o medo em seus olhos. Cuidado meu filho, mas continue altivo por aí.

    Desculpe mas agora eu vou dormir um pouco.

     

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