Paraisópolis: barbárie de Estado contra a juventude funkeira, por Dennis Novaes

A perseguição aos bailes funk é tão antiga quanto a existência dessas festas, e tem origem antes mesmo dos primeiros funks cantados em português.

do CEE Fiocruz

Paraisópolis: barbárie de Estado contra a juventude funkeira

por Dennis Novaes

Na madrugada de domingo, 1º de dezembro, a sociedade brasileira desceu mais alguns degraus rumo ao abismo da barbárie em que se encontra. Sob os cassetetes e balas de borracha da Polícia Militar de São Paulo, que tirou a vida de nove jovens em um baile funk na favela de Paraisópolis, vimos agentes de Estado se distanciarem cada vez mais dos ideais democráticos que, supostamente, deveriam defender. As mortes de Luara Victoria, Eduardo Silva, Bruno Gabriel, Mateus dos Santos, Gabriel Rogério, Gustavo Cruz, Dennys Guilherme, Denys Henrique e Marcos Paulo marcam mais um capítulo da perseguição à cultura popular negra e periférica no Brasil.

Para um pesquisador do funk carioca como eu, a tragédia em Paraisópolis soa perturbadoramente familiar. A perseguição aos bailes funk é tão antiga quanto a existência dessas festas, e tem origem antes mesmo dos primeiros funks cantados em português. Na década de 1970, os Bailes Black, precursores do funk carioca, foram monitorados por órgãos da ditadura militar então vigente[1]. Nos relatórios de agentes do regime a justificativa para as represálias era, explicitamente, o incômodo gerado pela reunião em massa de jovens negros celebrando sua negritude. O fim da ditadura não representou o fim da repressão e, na década de 1990, diversos bailes nos subúrbios cariocas foram fechados. Ainda hoje, nas favelas do Rio de Janeiro, as incursões violentas da polícia são comuns nos bailes e é possível encontrar diversos registros onde policiais espancam e humilham jovens presentes nessas festas.

A perseguição aos bailes funk é tão antiga quanto a existência dessas festas, e tem origem antes mesmo dos primeiros funks cantados em português

É evidente que atitudes violentas e arbitrárias como essas seriam inconcebíveis em festas frequentadas por jovens brancos nas áreas ricas de qualquer cidade. As bases para tratamentos tão distintos se encontram na estrutura racista e economicamente desigual da sociedade brasileira. O mesmo racismo fundamentou a perseguição ao samba e à capoeira no início do século XX, mas há uma diferença fundamental. Como afirmam as pesquisadoras Adriana Facina e Adriana Lopes, no início do século passado, as elites brasileiras ainda estavam preocupadas em construir um projeto de nação, mesmo que inserisse a cultura negra de forma subalternizada. Na Era Vargas, políticas culturais foram bem sucedidas em seu projeto de atrelar o samba à uma ideia de nacionalidade. O funk, contudo, cresceu no auge do neoliberalismo, das políticas de encarceramento em massa e da guerra às drogas. A palavra de ordem não é mais integrar, mas exterminar.

Um erro comum, mesmo entre pessoas preocupadas com a defesa dos direitos humanos, é apontar um suposto despreparo das polícias militares. O que ocorreu em Paraisópolis não é fruto de despreparo. Trata-se de uma das polícias mais letais do mundo aplicando de modo arbitrário todo o seu treinamento. As favelas e periferias do Brasil são exemplos do que as antropólogas Veena Das e Deborah Poole definem como margens do Estado. Ao contrário do que o senso comum leva a crer, as margens não são espaços onde o Estado é fraco, ou ausente, pelo contrário: é nas margens que podemos compreender as práticas de Estado, suas políticas de extermínio, controle populacional e manutenção de desigualdades. Nesses territórios, a Constituição Federal ainda é uma promessa que os moradores sonham viver. Na prática, o “excludente de ilicitude” almejado por Sérgio Moro e Bolsonaro já existe quando se matam pretos e pobres. O aval que o governador João Dória deu à atuação dos policiais é um triste exemplo.

O mesmo racismo fundamentou a perseguição ao samba e à capoeira no início do século XX, mas há uma diferença fundamental. (…) No início do século passado, as elites brasileiras ainda estavam preocupadas em construir um projeto de nação, mesmo que inserisse a cultura negra de forma subalternizada. A palavra de ordem não é mais ‘integrar’, mas ‘exterminar’.

A ausência de investimentos públicos em saúde, educação e infraestrutura nas favelas e periferias é gritante. O funk, contudo, não é reflexo da “falta de cultura ou educação”, pelo contrário. Ele é um exemplo das manifestações culturais periféricas criadas por artistas que transformam a adversidade em arte. Falamos aqui do gênero musical mais popular do Brasil contemporâneo.

A Kondzilla, canal do Youtube dedicado ao funk, atingiu a marca de 50 milhões de inscritos e já ultrapassa 24 bilhões de visualizações no site. Em 2019, tornou-se o maior canal de música do mundo. O funk expressa a potência criativa da juventude favelada, é fonte de renda para milhares de famílias e trabalhadores. Nenhum dos jovens mortos na tragédia de Paraisópolis morava na comunidade. Todos se deslocaram por quilômetros para curtir uma festa e isso é um exemplo do que o funk é capaz de mobilizar.

O funk não é reflexo da ‘falta de cultura ou educação’, pelo contrário. Ele é um exemplo das manifestações culturais periféricas criadas por artistas que transformam a adversidade em arte

Em vez de investir nessas manifestações artísticas, aproveitando seu potencial de geração de emprego e renda, as políticas públicas estatais têm se voltado para a repressão e violência. O único caminho para nos livrarmos de barbáries como a ocorrida em Paraisópolis é reverter este quadro.

Dennis Novaes – Antropólogo, doutorando em Antropologia Social no Museu Nacional e mestre pela mesma instituição. Há seis anos pesquisa o funk e sociabilidades nas favelas cariocas.

O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es), não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

[1] Os trabalhos de Paulina Alberto e Lucas Pedretti contam esta história com detalhes.

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