Pedro Nava 116 anos, por Jorge Sanglard

Máquina de escrever e cadeira do escritor juiz-forano, que revelou que a memória é uma coisa inextinguível, estão em biblioteca comunitária em Juiz de Fora

Ilustração Pedro Nava na Praça da Estação em Juiz de Fora por Eliardo França

Pedro Nava 116 anos 

O tempo não mata o passado

por Jorge Sanglard

Se não tivesse se encantado em 13 de maio de 1984, há 35 anos, o escritor mineiro e maior memorialista brasileiro, Pedro Nava completaria 116 anos em 5 de junho de 2019. Em Juiz de Fora, a Biblioteca Comunitária Pedro Nava, situada no bairro Monte Castelo, é a depositária da máquina de escrever Remington e da cadeira de encosto do escritor juiz-forano, que revelou que a memória é uma coisa inextinguível. Os dois objetos de trabalho, que serviram durante toda a vida para Nava escrever sua grande obra memorialística, foram doados pela família e entregues pela professora doutora e pesquisadora Ilma de Castro Barros e Salgado ao então presidente da Sociedade Pró-Melhoramentos do Bairro Monte Castelo, vereador Wanderson Castelar, em 2013.

Tanto a máquina de escrever quanto a cadeira permaneceram durante 10 anos, por empréstimo, na reserva técnica do Museu de Arte Murilo Mendes, da UFJF. O então detentor dos direitos autorais da obra de Nava, Paulo Penido (1936 – 2013), sobrinho de Nieta (Antonieta Penido da Silva Nava – 13/01/1904 – 23/11/1994, que foi casada com o escritor), autorizou em carta de 26 de abril de 2013 a efetivação da doação e apenas recomendou “cuidado com o fantasma que acompanha a cadeira”. Segundo Ilma Barros, a história remete ao fantasma de que, segundo Nieta, aparecera na referida poltrona como “um leve contorno de um homem alto, pernas esticadas”. E o próprio Nava, no livro Galo das Trevas (1987, pags 42 a 47), afirmaria ter tido a impressão “de ver o assento de pano ceder e também como se leve sombra estivesse pousado e descansado as costas fatigadas…Tive a certeza de que a sombra que ali se punha era a de  Antônio Carlos Ribeiro de Andrada”.

A Biblioteca Comunitária Pedro Nava passa por reforma e abriga os dois objetos de trabalho e Wanderson Castelar afirmou que a memória de Nava precisa ser reverenciada e preservada. A pesquisadora Ilma Barros destacou a importância da obra do escritor ser permanentemente estudada como referência memorialística para Juiz de Fora, para Minas Gerais e para o Brasil.

Entrevista antológica

Em 1983, um ano antes de sua morte, Nava concedeu sua última longa entrevista ao jornalista Ricardo Corrêa Barbosa, na época, colaborador da Revista Isto É, no Rio de Janeiro. Realizada especialmente para a composição de um perfil comemorativo dos 80 anos do memorialista mineiro – “Pedro Nava: o minerador do Tempo” – por Humberto Werneck e Ricardo Barbosa, a entrevista do escritor permaneceu inédita em sua totalidade até sua morte, quando foi publicada num encarte pela revista D’Lira, de Juiz de Fora, um dos marcos literários na imprensa de Minas Gerais na década de 1980. Pela importância das revelações do memorialista, vale a pena um resgate de aspectos abordados, principalmente, sobre o ofício de escrever memórias.

A editora Companhia das Letras iniciou, em 1° de março de 2012, a reedição da obra do escritor mineiro com o relançamento de “Baú de ossos”, o pontapé inicial da maratona de suas memórias em 1968, aos 65 anos, e de “Balão cativo”, abrangendo o período entre o retorno para Minas Gerais após a morte do pai e o internato no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Se “Baú de ossos” recupera a genealogia dos antepassados de Nava e os primeiros anos de sua infância, em “Balão cativo” o escritor revela os anos decisivos do final da sua infância e a sua adolescência, vividos entre Juiz de Fora, Belo Horizonte e o Rio de Janeiro. Estes dois passos iniciais de sua trajetória como grande memorialista brasileiro representam um mergulho fundo no panorama geral da sociedade, da vida e da cultura brasileiras no século XIX e no início do século XX.

Em Belo Horizonte, capital mineira, uma estátua em bronze do escritor Pedro Nava está situada na Praça do Encontro, antiga Praça Professor Alberto Deodato, na esquina da rua Goiás com rua da Bahia, no coração da cidade, a cerca de 20 metros do prédio da Prefeitura. Inaugurado em dezembro de 2003, ao lado da escultura do poeta, cronista e amigo Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987), o conjunto de esculturas simboliza o reconhecimento à importância literária e poética dos dois escritores para Minas e para o Brasil. O escultor e artista plástico Leo Santana é o autor das duas esculturas e Paulo Penido destacou a importância das esculturas a céu aberto como um símbolo marcante do papel literário de Nava e Drummond. Mas afirmou, na ocasião, que os grandes centros, no Brasil, vinham enfrentando o dilema de pichações e de depredações, com roubo de peças de bronze, de estátuas e de monumentos a céu aberto. Paulo Penido defendeu a luta permanente contra o vandalismo, o esforço permanente na conservação das obras e a necessidade de alguma forma de vigilância em monumentos e esculturas em todo o país.

Máquina Remington onde Pedro Nava escreveu sua obra memorialística

A escrita da memória

Pedro Nava, na referida entrevista, explorou detalhes de seu processo criativo e comentou os 15 anos de memorialística que reuniam, até então, quase duas mil páginas literárias, ressaltando que a retomada da existência não era uma coisa aprazível, completamente agradável. Para o saudoso escritor, esse encontro consigo mesmo deveria ser uma coisa muito boa, muito agradável, muito gratificante, mas não era, porque, ao contrário do que poderia parecer, “o tempo não mata o passado”. O passado, segundo Nava, fica computado, fica gravado dentro de nós absolutamente intacto. O passado aparece com tudo de bom, com tudo de ruim, com tudo que nos agrada e desagrada quando é reescrito. E, usando um argumento forte, revelou que, quando o passado é reescrito é que ele é um pouco anulado. E explicou: “nós aniquilamos um pouco o passado com esse aspecto catártico que tem a escrita. Mas para fazer isso é preciso sofrê-lo de novo. É retomar a vida outra vez e padecê-la outra vez”.

Esse processo de catarse, dizia Nava, representava a escrita da memória. Assim, para o fato objetivo, o fato nu, o fato em si, essa catarse tinha uma existência absoluta. A prova disso, o escritor dava ao explicar: “eu tenho esquecido certas coisas que eu tinha completamente vivas dentro de minha memória depois que as pus por escrito. Depois delas escritas, desapareceram certas datas, certas pessoas. Certos aborrecimentos que eu tinha com determinadas pessoas desapareceram completamente. Eu fiz uma espécie de pazes com muita gente através da minha literatura um pouco vingativa sobre algumas pessoas que me desagradaram”.

A partir da publicação do livro Baú de Ossos, editado em 1970, a crítica brasileira passou a considerar a obra de Pedro Nava como um dos mais significativos acontecimentos da literatura brasileira e um marco na memorialística. Ao explicar seu processo de escrita, Nava confidenciou: “O escrever é difícil, depois não. Até quando eu quero lembrar, gosto de reler; porque eu confesso que releio muito o que escrevo, não só na pesquisa de incorreções como também para aprender a não cair mais nelas. Isso porque eu não gosto de alterar o texto”. Enfático, declarou: “Um texto, mesmo errado, fica errado e eu faço a correção em notas de um outro livro que venha depois”. Nava não admitia alterar o texto escrito, porque “o texto é inalterável”. E foi mais além em sua explicação: “O que está escrito está escrito. É como um sujeito alterar um retrato, uma pintura, ou alterar uma escultura. Não dá. Acrescentando ou tirando, muda completamente. Há uma harmonia entre as partes que tem de ficar, de modo que esse erro entra corrigido depois de uma maneira indiferente numa nota”.

Mais especificamente sobre o método de escrever, o memorialista ressaltou que o ato requeria uma disciplina que foi sendo aprendida aos poucos. De uma conversa surgida, de onde algum fato poderia servir como um princípio de algo literário, o escritor tomava nota imediatamente, mesmo que fosse desordenadamente em cadernos. Nesses cadernos, Nava ia tomando nota de tudo que pudesse ser desenvolvido literariamente. Quando partia para escrever um capítulo, pensava muito no que seria escrito. Assim, ia “organizando o esqueleto”, articulando o sumário do que seria escrito. Após consultas nos cadernos de escritos, numerava e punha o número ao lado daquele esqueleto. Só depois, partia para a máquina de escrever. Às vezes, durante a própria criação, nascia uma porção de modificações no texto. As modificações entravam e, depois, o escritor retomava e recompunha. E não escondia detalhes: “Eu não tenho obediência cega ao esqueleto, quer dizer, não tenho uma disciplina militar prá escrever aquilo. Eu caio fora, mudo o encadeamento, corto, descolo, ponho em outro lugar, levo prá diante, colo papelzinho aumentando onde devo entrar. Eu jogava fora esses cadernos e esses originais. Escrevia em minha máquina e com uma cesta que, aliás, é um balde, um tacho de papel inútil ao lado. Cada ficha que eu usava eu amassava e jogava fora. Dos dois primeiros livros, eu destruí completamente tudo quanto serviu de esboço, de esqueleto e de ficha”.

Cadeira de Pedro Nava doada à Biblioteca Comunitária Pedro Nava

Foi após uma conversa com o poeta Carlos Drummond de Andrade —“justamente o nosso Drummond”—, sobre isso, que Nava mudou um pouco a prática de jogar papéis fora. Drummond disse a ele na ocasião: “Mas você não faça isso. É o cúmulo o que você está fazendo. Papel não se joga fora!”. Pedro Nava revelou, na ocasião, ter aprendido isso com Drummond: “a expressão literalmente é dele. Ele não jogava coisa nenhuma, nem poema que ele achava ruim, que não prestasse. Ele guardava, de modo que comecei a guardar e a valorizar o que movimentava de papéis, de idéias, de coisas, pelos milhares de fichas que fui juntando depois de usá-las e pelas centenas de páginas que eu fui usando também desses esboços, desses esqueletos que eu ia fazendo”.

Ao ser questionado, na referida entrevista, sobre o que constaria no último volume de suas memórias, revelou irônico: “será quando eu morrer, é o que vão contar: “Faleceu na data de hoje o autor dessas memórias deixando-as nesse ponto”. E não deixou dúvidas quanto ao assunto: “Eu vejo isso da seguinte maneira: a memória é uma coisa inextinguível. Nós acabamos, mas a memória acaba conosco também, e acaba interrompida, porque tudo é interrompido, a vida é interrompida também. São coisas que estão fora de mim. O que está dentro de mim acaba comigo. O fim das minhas memórias é o fim da minha atividade material. O meu ciclo se encerra, acaba. A minha vida acaba naquele momento, de modo que um relato de memória não tem fim. Qual foi a memória que teve fim? Foi o livro do Proust, por exemplo, porque ele acabou, ele fez um ciclo de uma sociedade. Ele tinha como plano aquilo, e não escrever memórias. Ele foi um memorialista, mas fez principalmente o romance dele onde há 70% de memória. Mas tinha um fecho, ele tinha de acabar aquilo de uma maneira… e acaba terrivelmente, ele acaba sem acabar, ele solta o indivíduo no tempo. A última palavra que ele usa é Tempo, com ‘tê’ maiúsculo”.

Jorge Sanglard – Jornalista e pesquisador. Escreve em jornais no Brasil e em Portugal

Redação

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