Políticas da memória, doutrina de guerra e neoliberalismo, por Rogério Mattos

Fica mais claro perceber as dificuldades enfrentadas pelas políticas da memória no Brasil, como também da reescrita de sua história.

Políticas da memória, doutrina de guerra e neoliberalismo

por Rogério Mattos

“A naturalidade e a aceitação da prática de tortura atualmente é uma das heranças da nossa escravidão. E é significativo que ela só fosse publicamente condenada quando atingiu militantes políticos, ou seja, durante a última ditadura civil-militar”. Classe e memória Pode ser sugerido, a partir dessa afirmação de Joel Rufino dos Santos, que a prática da tortura, que ocupou pelo menos 4/5 da história brasileira, com a escravidão, só foi condenada publicamente quando atingiu os setores de classe-média ou os militantes políticos? Se for assim, qual é o escopo, atualmente, de uma política da memória verdadeiramente abrangente? E onde ela se encontra hoje, pois não está mais no Estado e, talvez, não seja fabricada de forma ampla na academia? Fruto dessa (boa) safra de escritores de classe-média está Bernardo Kucinski, antigo jornalista brasileiro, que teve um romance que ganhou grande repercussão nos últimos anos, transformando-o em uma voz importante sobre as políticas da memória dos anos de ditadura. Em K. (esse é o nome do romance) ele relata a experiência do desaparecimento de sua irmã, Ana, através de uma estratégia narrativa em que Bernardo desaparece enquanto autor e jornalista de profissão para fazer sobressair a figura de seu velho pai, que leva nas costas todo o peso do sofrimento, agravado pelo fato de ser um imigrante-judeu-escritor-de-contos-em-iídiche, que morre dois anos depois da filha, sem que nada houvesse ainda sido esclarecido. Ao invés de buscar a realidade de sua história familiar através de um relato historiográfico ou jornalístico, a dupla desaparição ou a camuflagem, a do autor na narrativa e da consciência desse autor de fatos esclarecidos anos depois, faz acentuar, no romance, o sentimento de perda e de ausência de explicação. É um romance de memórias onde se acentua a ausência ou a impossibilidade destas. Talvez não seja por motivo diverso que tenha dito que o Brasil sofre do mal de Alzheimer . O estabelecimento de um paradigma à americana Mas, antes que um caso clínico, as movimentações sociais em apelo pela volta dos militares ao poder até a constituição de um governo protomilitar (2014-2018), mostram que o debate a respeito do direito à memória, em especial para os parentes das vítimas, e, como consequência, da reescrita da História brasileira contemporânea, continuam não exatamente “inatuais” ou fora de moda. O que incomoda é continuarem ou parecerem inoperantes. Não seria o caso de compreender o fenômeno “ditadura militar” de uma maneira mais ampla, tanto no sentido da memória, quanto no da política e da história mais recente? A Constituição de 1988, com todas as ambiguidades que marcaram seu processo de formação, foi a primeira resposta democrática mais enfática, no nível estatal, oficial, contra os arbítrios das décadas anteriores. Não apenas um ato formal que instituiu a volta da democracia no Brasil, a promulgação da Constituição e o início da chamada “Nova República” têm como características, em especial, seu foco nas garantias sociais e não tanto nas individuais, de caráter liberal. Contudo, como financiar o estado de bem-estar social nela previsto, se a mesma Carta que outorga uma série de direitos não prevê os meios para financiá-los? Como livrar o país de um mal tão ou mais grave do que as violações aos direitos humanos, como a miséria, com a incidência de impostos regressivos e com a continuidade do sistema da dívida pública iniciada nos governos militares? Pois não foi só um golpe militar e apoiado pelos EUA, da Operação Brother Sam a Operação Condor, mas um paradigma de política à americana que se estabeleceu bem antes de firmado o chamado “Consenso de Washington”. Como relata o professor Joel Rufino dos Santos: “Em 1967 fui preso e interrogado por um major do Exército que servira na ‘inteligência’ aliada durante a Segunda Guerra. Se chamava Kleber Bonecker, e, descansando de tapas e gritos, quis me explicar qual era a sua missão: – Você é negro puro, eu sou branco puro, por isso somos capazes e inteligentes. A maioria dos brasileiros, infelizmente, porém, é mestiça, sangue fraco, maria-vai-com-as-outras, pouco inteligente. Resultado: de vez em quando o país sai dos trilhos. Compete ao Exército repô-lo no caminho certo. Feito isso, voltamos aos quartéis. Esse singelo discurso anos 60 de um torturador militar marca o encontro dos paradigmas neoliberal e tecnoburocrata, cuja primeira base institucional, entre nós, foi a Escola Superior de Guerra (1949). Muito já se disse dessa réplica brasileira do War College, mas o essencial é que, além de fabricar uma ideologia de Segurança Nacional (a Ordem e Progresso dos positivistas), pôs em circulação social, mais ou menos a partir de 1964, o tecnoburocratismo que seduziu nossa classe dirigente. Com a redemocratização (1982), foi-se a armadura militar e ficou o corpo tecnoburocrático. Pois o que chamamos tecnoburocracia não passa na verdade de uma “contaminação” da política pela ordem militar, a sua colonização pelos conceitos, termos e estratégias do estamento tecnocientífico-militar, visando, em última instância, a transformar todos os problemas de política em problemas de administração“. (SANTOS, 2004, p. 19-20) O fato é que o revisionismo histórico em relação ao tempo ditatorial carece de uma falha na análise econômica. Para financiar o chamado “milagre econômico”, o governo brasileiro recorreu a empréstimos no exterior, oferecidos na ocasião com juros muito baixos. Com a crise do petróleo e a presidência de Paul Volcker no Federal Reserve, os juros foram alterados unilateralmente, a princípio com a desculpa de recuperar o mercado americano das perdas com o aumento do preço do petróleo. Toda a crise da dívida latino-americana foi instalada desde então. Caso o governo brasileiro atuasse em bases verdadeiramente nacionalistas, poderia utilizar o momento de alta liquidez do mercado internacional como um complemento aos seus investimentos. A referência seria o Plano de Metas de JK, como demonstrado em livro recente de Lea Vidigal (2019), como o auge do cumprimento de um programa desenvolvimentista no Brasil, com atuação central do Bando Nacional de Desenvolvimento Econômico. Fiar-se na poupança interna e na criação de crédito em moeda nacional permitiu ao país zerar sua dívida externa e financiar os maiores projetos de infraestrutura da história nacional no século XX. Ao levar em consideração que o “tecnoburocratismo” se perpetua depois da abertura política, e tendo em vista o que foi a economia política furtadiana de Juscelino Kubitschek, claramente se delineia a distinção que passou a operar no Brasil na virada do século entre os antigos economistas do Plano Real, em sintonia com a tecnoburocracia de Washington, e a política econômica voltada para o mercado interno, para o fortalecimento dos bancos públicos e do BNDES, durante os governos do PT. Acima de tudo, deve ser destacado o tipo de “nacionalismo” ainda hoje atribuído aos militares, mais próximo a um estatismo externamente orientado do que da ala provinda da Revolução de 30, cujo último exemplo parece estar lá atrás, com o general Lott…

Escravidão e naturalização da tortura

Joel Rufino dos Santos, quadro oriundo do ISEB, instituição rapidamente desmontada pela ditadura por ser o centro principal do nacionalismo concretizado por JK, também aponta para outra dificuldade, implícita no texto acima transcrito: “A naturalidade e a aceitação da prática de tortura atualmente é uma das heranças da nossa escravidão. E é significativo que ela só fosse publicamente condenada quando atingiu militantes políticos, ou seja, durante a última ditadura civil-militar” (SANTOS, 2013, cap. 1, s/nº). Concomitante à instauração da Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, muitas outras comissões foram criadas, como, por exemplo, o caso notável da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, da capital paulista, que entrou em choque com a CNV nacional e declarou Juscelino Kubitschek assassinado pelo Estado brasileiro. Contudo, quando os principais relatórios dessas comissões já tinham sido publicados, em 2016 se criou, por iniciativa da OAB, a Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil. As pessoas envolvidas diretamente nos crimes de sequestro, tortura e escravidão não podem mais ser punidas na forma da lei, porém o resgate histórico desta Comissão tem um escopo mais amplo, fundamentalmente ligado à reescrita da história nacional, a elucidação do legado da escravidão no Brasil atual e pesquisas que mostrem o papel de atuação de escravos ou negros libertos na luta pela liberdade. A peça teatral Luiz Gama: Uma voz pela liberdade, que rodou o país e está há um bom tempo em cartaz, foi fruto direto das pesquisas realizadas nesta Comissão, que mostra, por seu enfoque na longa duração histórica, como a tortura foi naturalizada em nossa sociedade e não é um capítulo à parte, fruto do golpe civil-militar. Assim fica mais claro perceber as dificuldades enfrentadas pelas políticas da memória no Brasil, como também da reescrita de sua história. O mesmo Joel Rufino aponta: “Talvez sejamos o único país que já mandou para a cadeia os proponentes de um novo ensino da disciplina (a Nova História do Brasil, reprimida pelo golpe civil-militar de 1964)” (SANTOS, 2013, cap. 1, s/nº). A prisão relatada no trecho maior de seu livro acima transcrito, onde o interrogador diz que Joel era “preto puro” e ele “branco puro” (o que via como uma qualidade…) se deu ainda antes do 1º de abril, quando o professor foi preso e levado a interrogatório como “subversivo” exatamente por escrever alguns capítulos da Nova História do Brasil. Mais tarde ele suportaria outras prisões e tortura, por motivos diferentes, e em fase avançada do regime militar brasileiro. Sua contribuição para a formação de um arquivo da literatura brasileira, tanto com seus romances, memórias ou livros teóricos, realça três aspectos aqui destacados quando se quer abordar a história recente e o estado de exceção brasileiro: o econômico (que remete a um suposto “nacionalismo” dos militares, em especial Geisel), o social (as consequências da escravidão) e o cultural (as dificuldades de se reescrever a História no país). Mas Joel Rufino dos Santos, apesar de muito admirado por quem lhe conhece a obra e sua vida de lutas, e mesmo como professor de Letras da UFRJ, não é um nome que costuma entrar no circuito acadêmico tradicional. Se nestas páginas agora escritas é para se falar de memória, que se ressalte esta pelo menos. Leia também: Simas, Joel e Luiz Rufino, Gramsci e o lado de fora da universidade

Referências

SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do social – como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004. ______________________. A escravidão no Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 2013. (Edição digital, sem numeração das páginas). VIDIGAL, Lea. BNDES: um estudo de direito econômico. São Paulo: Liber Ars, 2019. Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.
Redação

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