Políticas da memória, doutrina de guerra e neoliberalismo
por Rogério Mattos
“A naturalidade e a aceitação da prática de tortura atualmente é uma das heranças da nossa escravidão. E é significativo que ela só fosse publicamente condenada quando atingiu militantes políticos, ou seja, durante a última ditadura civil-militar”. Classe e memória Pode ser sugerido, a partir dessa afirmação de Joel Rufino dos Santos, que a prática da tortura, que ocupou pelo menos 4/5 da história brasileira, com a escravidão, só foi condenada publicamente quando atingiu os setores de classe-média ou os militantes políticos? Se for assim, qual é o escopo, atualmente, de uma política da memória verdadeiramente abrangente?Escravidão e naturalização da tortura
Joel Rufino dos Santos, quadro oriundo do ISEB, instituição rapidamente desmontada pela ditadura por ser o centro principal do nacionalismo concretizado por JK, também aponta para outra dificuldade, implícita no texto acima transcrito: “A naturalidade e a aceitação da prática de tortura atualmente é uma das heranças da nossa escravidão. E é significativo que ela só fosse publicamente condenada quando atingiu militantes políticos, ou seja, durante a última ditadura civil-militar” (SANTOS, 2013, cap. 1, s/nº). Concomitante à instauração da Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, muitas outras comissões foram criadas, como, por exemplo, o caso notável da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, da capital paulista, que entrou em choque com a CNV nacional e declarou Juscelino Kubitschek assassinado pelo Estado brasileiro. Contudo, quando os principais relatórios dessas comissões já tinham sido publicados, em 2016 se criou, por iniciativa da OAB, a Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil. As pessoas envolvidas diretamente nos crimes de sequestro, tortura e escravidão não podem mais ser punidas na forma da lei, porém o resgate histórico desta Comissão tem um escopo mais amplo, fundamentalmente ligado à reescrita da história nacional, a elucidação do legado da escravidão no Brasil atual e pesquisas que mostrem o papel de atuação de escravos ou negros libertos na luta pela liberdade. A peça teatral Luiz Gama: Uma voz pela liberdade, que rodou o país e está há um bom tempo em cartaz, foi fruto direto das pesquisas realizadas nesta Comissão, que mostra, por seu enfoque na longa duração histórica, como a tortura foi naturalizada em nossa sociedade e não é um capítulo à parte, fruto do golpe civil-militar. Assim fica mais claro perceber as dificuldades enfrentadas pelas políticas da memória no Brasil, como também da reescrita de sua história. O mesmo Joel Rufino aponta: “Talvez sejamos o único país que já mandou para a cadeia os proponentes de um novo ensino da disciplina (a Nova História do Brasil, reprimida pelo golpe civil-militar de 1964)” (SANTOS, 2013, cap. 1, s/nº). A prisão relatada no trecho maior de seu livro acima transcrito, onde o interrogador diz que Joel era “preto puro” e ele “branco puro” (o que via como uma qualidade…) se deu ainda antes do 1º de abril, quando o professor foi preso e levado a interrogatório como “subversivo” exatamente por escrever alguns capítulos da Nova História do Brasil. Mais tarde ele suportaria outras prisões e tortura, por motivos diferentes, e em fase avançada do regime militar brasileiro. Sua contribuição para a formação de um arquivo da literatura brasileira, tanto com seus romances, memórias ou livros teóricos, realça três aspectos aqui destacados quando se quer abordar a história recente e o estado de exceção brasileiro: o econômico (que remete a um suposto “nacionalismo” dos militares, em especial Geisel), o social (as consequências da escravidão) e o cultural (as dificuldades de se reescrever a História no país). Mas Joel Rufino dos Santos, apesar de muito admirado por quem lhe conhece a obra e sua vida de lutas, e mesmo como professor de Letras da UFRJ, não é um nome que costuma entrar no circuito acadêmico tradicional. Se nestas páginas agora escritas é para se falar de memória, que se ressalte esta pelo menos. Leia também: Simas, Joel e Luiz Rufino, Gramsci e o lado de fora da universidadeReferências
SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do social – como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004. ______________________. A escravidão no Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 2013. (Edição digital, sem numeração das páginas). VIDIGAL, Lea. BNDES: um estudo de direito econômico. São Paulo: Liber Ars, 2019. Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.0 Comentário
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