Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
[email protected]

Por que tantas derrotas do nosso lado?, por Urariano Mota

Como dizia o rei da cafonice brasileira, o chamado rei roberto carlos, “são muitas emoções”. Nos últimos 14 dias, os brasileiros em geral, e os pernambucanos em particular, temos passado por fortes emoções. Perdemos em pouco espaço o escritor e jornalista Marco Albertim, o deputado Manoel dos Santos,  o ex-deputado Pedro Eugênio e o sanfoneiro Camarão.  Já na quarta-feira, o coração balançou para Armando Monteiro Neto, ministro da nossa presidenta. Pelo visto, em Pernambuco ninguém morre mais de tédio. É só do coração.

Por que tantas perdas em tão pouco tempo? Por que a má sorte só está soprando para o nosso lado? A revolta, diante do irracional do falecimento de tantas pessoa valorosas, não cabe no quadro geral de que nada é mais racional que a morte.  Mas mesmo aí, nessa constatação conformista, existe um dose forte de irracionalidade. Pois não seria mais democrático, e até para vitória da eloquência da estatística, não seria mais representativo que a morte espalhasse os seus bens por todas as raças, ideologias e credos? Por que nos mais recentes dias a morte só tem batido em nosso lado?

Como não tenho uma segura resposta, tomo outro caminho, de outra maior racionalidade: a vida é mais racional que a morte. Até mesmo nas piores condições, ver como o homem se levanta e luta contra a sua negação é estímulo para todos os dias.

Lembro, por exemplo, de Canhoto da Paraíba, que neste 24 de abril faz 7 anos da sua morte. Eu me refiro à resistência do genial violonista, como nesta passagem, que um dia vi.  

Em um domingo, fui à casa de Canhoto da Paraíba. Ele estava na altura de 82 anos, sentado em uma cadeira, como sempre estivera durante 16 horas, todos os dias em seus últimos três anos. Depois de um AVC, ele falava com dificuldade e baixo. Eu havia ido à sua casa como portador de um presente, os CDs Vale dos Tambores, do compositor e intérprete Carlos Henrique Machado. 

Descobri dessa vez que Canhoto via mal por somente uma das vistas. Mas Canhoto era um homem com mania de felicidade. O seu prazer era sorrir, procurar o sorriso, buscar a felicidade. Ele sofria, claro, ele percebia o sofrimento, mas isso não o levava ao desespero. Naquele domingo, carregava comigo meio litro de uísque, para beber enquanto ouvisse os choros de Carlos Henrique Machado. Então eu pedi à sua filha Vitória um copo com gelo. Que fez Canhoto? Pediu um também, porque desejava me acompanhar na bebida. Mas Vitória, filha, secretária, enfermeira e companheira repôs a nossa alegria no quintal da realidade:

– Ele não pode beber, por causa do remédio. Ele toma Gardenal.

Então eu, o caridoso – e a caridade se confunde com a crueldade em mais de uma rima – levei o meu copo de uísque ao nariz de Canhoto, para que ele, se não podia beber, pelo menos sentisse o aroma do álcool no domingo. O diabo era que ele, gripado, estava com as narinas cheias de vick. O frustrado, acreditem, fui eu. Canhoto, não, ele foi do desejo de me acompanhar na bebida, que não podia mais, à paciência de viver com o que era possível. E por isso, para não afrontá-lo com a minha temporária saúde, bebi menos, somente três doses, em respeito a seu estado. E assim melhor pude ver e observar a sua pessoa.

Aos primeiros acordes do choro Canto dos Quilombos ele sorriu. Melhor dizendo, pôs um sorriso que não voltou a se fechar nos lábios. Então entraram o cavaquinho, o bandolim, os violões. Para quê? Como é que se podia ser infeliz a ouvir uma composição assim? Não sei se descobri a pólvora, mas Canhoto era feliz porque era um homem musical. Ele retirava do som o remédio para a desgraça.  Porque a sorrir ele se pôs a balançar a cabeça também, a dizer e a se repetir “sim” em silêncio. Então eu senti que ele estava liberto. Ele não estava mais naquela cadeira, ou melhor, estando sentado nela, a cadeira era um objeto de profundo conforto. Era como estar na dor e integrar a dor em algo maior, em outro lugar, onde a própria dor não tem razão, como canta Paulinho da Viola. Então ele comentou, baixinho, à sua maneira, mas com um ar no rosto que não admitia outra frase:

– Como tem gente boa no Brasil. 

E dessa vez fui eu que balancei a cabeça. Vieram outros choros, até chegar na composição Catira. E ele, esquecido do nome do artista que ouvia:

– É João Pernambuco?

– Não, Canhoto, é Carlos Henrique Machado, eu lhe respondi.

Senti que ele não me via, não mais pela falta de visão, mas porque a ausência de luz era um elemento para a sua viagem. E ele estava mais que certo, não era uma ilusão, um escapismo, como qualquer idiota de manual poderia escrever. Aquilo era típico da arte: fazer do circunstancial um elemento de composição, sempre. Na dor, na alegria, na felicidade, no sofrimento, no riso, na raiva – tudo era matéria para a expressão.

Mas isso que acabo de escrever, no calor do que percebo agora, ele sabia sem conceito cerebral, ele sabia por sentimento, a balançar a cabeça e a sorrir. Impossibilitado que estava de ele próprio de executar a beleza, com as suas gordas, canhotas e generosas mãos – porque ele era todo esquerdo, agora sinto, o que nele era destro era apenas auxílio para o outro lado -, ele passou a compor de outra maneira, enquanto acompanhava os movimentos do choro do CD. Então eu percebi que Canhoto estava tocando! Acreditem, porque eu vi Canhoto a executar o violão, apesar do AVC, tocando. Como? – Ele estava com uma das pernas cruzada, posta sobre o joelho. Com a mão esquerda, imóvel, repousada em um braço da cadeira, com a direita ele marcava posições de acompanhamento do violão na tíbia, no tornozelo!

Essas coisas a gente vê e deve olhar para o outro lado em sinal de respeito. Mas era irreprimível. Ver as notas a correr com o polegar, com o médio, o indicador, em marcações imaginárias em uma tíbia que se transformara em braço de violão.

Acredito que essa lembrança de Canhoto poderia ser uma resposta à pergunta: por que nos mais recentes dias a morte só tem batido em nosso lado? Ou como expressou o poeta João Cabral:

“E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica” .

*No Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia/262783-333

https://www.youtube.com/watch?v=NwD2hlQapTU

 

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. As mágoas estão se acumulando…

    As mágoas maltratam a alma. A alma ferida leva a doença ao corpo. Somente os insnsíveis, frios e calculistas não se deixam abater. São irracionais e somente a maldade os alimenta. A mágoa da percepção das injustiças, causam a doença conhecida como ” coração partido “. 

    1. Coração partido

      Coração partido pode apressar a partida, Marly, mas a maldade torna-a mais dolorosa. O homem amoroso que se machuca e se deixa ir, no final, como no relato sobre o Canhoto, sorri e de alguma forma, compreende e agradece. O homem vil acaba por sentir somente a dor, pois que a alegria e a doçura não se abrigam ali.

      Pungente e muito bonito o relato.

  2. Um terno e belo choro

    Obrigada pelo linda reflexão, Urariano. Também ando pensando no porquê de tantas perdas em tão pouco tempo. E so do nosso lado… 

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador