Por quem os sinos dobram? Não por Katellen ou Ágatha, por Vilma Aguiar
Mais uma criança muito pequena morre no Rio de Janeiro. Mais uma menininha negra. Bala perdida, diz a reportagem.
Bala perdida, expressão que não faz nenhum sentido. Uma bala que mata não é perdida. Bala que mata cumpre sua missão. Partamos daqui, dessa observação banal ou, antes, implicante. Como se houvesse aí um problema de semântica, ou de semiótica. Porque não. Ou não apenas.
A ideia de uma bala perdida é a ideia de um acidente. De alguém que estava naquela esquina da vida que conhecemos como estar no lugar errado, na hora errada.
Ora, nada é menos acidental que uma criança de 5 anos estar ao lado da mãe indo para a escola. Mesmo que seja em Realengo. Mesmo que seja em 2019, no estado governado por Witzel, no país governado por Bolsonaro. Simplesmente não é possível aceitar que a sexta criança morta no Rio de Janeiro neste ano seja mais um acidente. Na mesma ocasião outra criança morreu. Esta tem 17 e não merece manchete nem está nesta estatística. Meninos negros de 17 anos já são apenas bandidos. Nada de ser “un niño frente a Dios”.
Digamos então com todas as letras. Não se trata de bala perdida. Trata-se de assassinato. E assassinato no quadro de uma guerra que o Estado brasileiro empreende contra sua população pobre e marginalizada. Coincidentemente negra. Não é possível que policiais atirem a esmo no meio da rua. Não é admissível. Não importa contra quem pretensamente são esses tiros.
É isso, antes de tudo, que devemos condenar com todas as nossas esperanças de um dia o acampamento virar uma nação. É o mais básico, o mais elementar princípio da democracia. O da igualdade. Imagine se a polícia atirasse nas ruas do Leblon e de Ipanema com a mesma desenvoltura que atira em Duque de Caxias ou no Complexo do Alemão. Seria um escândalo; é impensável. O governador iria à televisão dizer que repudia esses atos. Por que então no Realengo é permitido?
Poderíamos apelar para compêndios de sociologia para explicar por que a ideia da igualdade não pegou no Brasil. Poderíamos falar da violência estrutural de nosso necroestado. Poderíamos falar sobre a militarização e/ou da milicianização da polícia. Do fracasso da guerra às drogas.
Mas comecemos for fincar os pés no chão e perguntarmos por que continuamos falando em bala perdida, em fatalidade ou em confronto. A resposta nem é tão complicada. As vidas de Ágatha ou Katellen não valem nada. Porque essas crianças e jovens das periferias das cidades brasileiras tem o peso de uma pena. A peninha que dá quando seu rosto é estampado nos jornais, se você é pelo menos uma pessoa empática e pensa no desperdício de uma vida e na dor dos pais e parentes. Mas mesmo por nós elas são esquecidas logo em seguida. Viram número da violência que já naturalizamos. E seguimos pro caderno de esportes.
A bala é perdida. A causa parece perdida. Os sinos não dobram por elas.
Vilma Aguiar – socióloga, Doutora em Ciências Sociais (UNICAMP), Mestre em Filosofia (USP). Atualmente é professora de pós-graduação, presidente da Escola da Política e desenvolve uma pesquisa sobre o impacto do feminismo na vida privada de mulheres. Escreve sobre política, feminismo e crônicas no blog Política no feminino (vilmaaguiar.blogspot.com)
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