sexta, 19 de abril de 2024

Por um jornalismo que combata o obscurantismo e a barbárie, por Jéferson Silveira Dantas

Os jornalões representantes dos grupos empresariais jornalísticos, outrora ativos no golpe de 2016, agora clamam por democracia!

Até onde nos deixaremos guiar pelo medo que nos colocam? Crédito: Hieronymus Bosch; detalhe de “O jardim das delícias”

do objETHOS

Por um jornalismo que combata o obscurantismo e a barbárie

por Jéferson Silveira Dantas

A famigerada reunião ministerial de 22 de abril de 2020 do governo Bolsonaro, que mais se assemelhava a um encontro de uma facção criminosa, sob o olhar prevaricoso e complacente do então superministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Fernando Moro, revelou com nitidez o tamanho do desleixo com a população brasileira, sobretudo, a parcela mais vulnerável socialmente. Indiferentes e alheios à liturgia dos cargos que ocupam, o presidente e os ministros da res publica tupiniquim apequenam cada vez mais o Brasil, um pária internacional. Os jornalões representantes dos grupos empresariais jornalísticos, outrora ativos no golpe de 2016, agora clamam por democracia! Didática e convenientemente procuram trazer à baila a recente história do Brasil (como é o caso do jornal Folha de S. Paulo), quando ingressamos num longo inverno ditatorial que se iniciou em 1964 e se estendeu até 1985. Porém, nos últimos anos, quando a pauta era essencialmente econômica e prejudicial à classe trabalhadora, os grupos empresariais jornalísticos simplesmente se isentaram e se calaram. Ora, a desconexão da pauta econômica coordenada pelo especulador Guedes alinhada ao autoritarismo e medidas de exceção dos oficiais de pijama do governo do capitão reformado do Exército são dois lados de uma mesma moeda! A democracia liberal foi jugulada e as instituições públicas que deveriam zelar, minimamente, pela justiça social foram completamente partidarizadas.

O historiador estadunidense, Timothy (Tim) Snyder, entende que a servidão voluntária alimentou regimes totalitários tais como o fascismo e o nazismo na Itália e na Alemanha, respectivamente, e de que um dos projetos dos regimes totalitários ou tirânicos é repetir ad nauseam as mesmas palavras e frases que aparecem nos meios de comunicação diários, para que sejam aceitas em detrimento de um quadro referencial maior. Em suas palavras, ignorar o mundo real dá início à criação de um antimundo ficcional. Os memes, a autoverdade, a auto-referência e uma campanha eleitoral subterrânea construída por meio das fake news nas redes sociais, foram a tônica do processo eleitoral no Brasil em 2018 e por isso se associa o bolsonarismo às denominadas guerras híbridas. Snyder nos convida a combater a política da inevitabilidade, que impõe à humanidade a inércia e o desconhecimento da História, assim como o combate à política da eternidade, calcada em reducionismos e maniqueísmos políticos; sua aposta reside nas novas gerações entendendo que os sujeitos históricos posicionados em favor da emancipação humana têm muita responsabilidade nestes tempos de desconforto e até mesmo de apatia coletiva.

A barbárie e o obscurantismo institucionalizados ganham, assim, corpo nesse território tão vasto, desigual e desprovido de civilidade. Trata-se do Brasil profundo. Estamos diante de constatações nefastas: são os impérios neopentecostais que determinam, hodiernamente, em quem os fiéis devem votar; são os movimentos ultraconservadores que se intitulam como sem partido, defensores da moral e dos bons costumes das pessoas de bem, que perseguem professores e professoras das escolas de Educação Básica e universidades públicas, acusados sistematicamente de doutrinadores. Karl Marx (1818-1883) em o 18 brumário de Luis Bonaparte afirmou que a história se repete primeiramente como tragédia e, posteriormente, como farsa. Contudo, podemos afirmar ainda que se a história não se repete tal e qual em diferentes contextos históricos, ela pode nos ensinar a não reprisarmos situações que coloquem em risco a humanidade.

Num país tão desigual como o Brasil, os falsos mitos podem ser construídos em contextos assim, ou seja, aparentemente inspiram vontades populares, tais como o combate à violência, à corrupção, à delinquência juvenil, etc.. Todavia, os germens da tirania defendidos por esses sujeitos afeitos a um instinto primitivo apenas conseguem trazer à tona recalques e valores morais duvidosos untados por pastores ligados aos impérios neopentecostais. Durante o certame eleitoral no Brasil em 2018, muitas pessoas se sentiram à vontade para espancar e até mesmo assassinar quem não concordasse com as suas ideias e/ou concepções de mundo. Um dos aforismos do historiador estadunidense Timothy Snyder é, justamente, sobre isso: a maior parte do autoritarismo é concedida voluntariamente e toda obediência por antecipação é uma tragédia política. É salutar recordar que a obediência por antecipação gerou na Alemanha nazista um séquito de voluntários servis, que criaram as suas próprias milícias à revelia do regime hitlerista. A flexibilização do uso de armas de fogo no Brasil pode facilitar o acesso dessas milícias a todo e qualquer arsenal bélico com a chancela da presidência da República.

Diante da pandemia acarretada pela Covid-19 que matou dezenas de milhares de brasileiros, o que se viu do governo Bolsonaro foi o ataque aos serviços públicos e à ciência. Negacionismo e anticientificismo caminhando de mãos dadas! A Emenda Constitucional nº 95/16, que congelou investimentos em saúde, educação e infraestrutura durante 20 anos, aprovada no governo golpista de Temer, cobra agora o seu alto preço em vidas humanas. O empresariado bolsonarista também tem a sua elevada dose de responsabilidade. Se levarmos em consideração o contexto histórico do nazifascismo na Europa das décadas de 1930 e 1940, identificaremos que determinadas propriedades comerciais, segundo análise de Snyder, receberam marcas étnicas, e isso transformou a ética dos cidadãos: se as lojas podiam ser judias, o que dizer de outras empresas e propriedades? O desejo de que os judeus desaparecessem, talvez num primeiro momento reprimido, foi crescendo à medida que a cobiça fermentava. No caso brasileiro, o empresariado de grande capital coligado com o bolsonarismo – sempre em busca da extração da mais-valia seja em que conjuntura for – não se importa com os trabalhadores informais, pequenos e médios comerciantes, muitos menos com aqueles que só podem vender a sua força de trabalho. Está na contabilidade do grande capital a morte (evitável) de milhares de trabalhadores. Os grupos empresariais jornalísticos quando agem como meros assessores de imprensa e ao não se indisporem com os achaques presidenciais e a alienação em larga escala, também prestam um desserviço.

A criminalização dos movimentos sociais, o combate ao comunismo e aos partidos de esquerda são temas recorrentes no governo do capitão reformado do exército. Para os incautos ou para os que, deliberadamente, agem de má-fé, repressão é sinônimo de segurança pública; ou ainda: o saudosismo verde-oliva da ditadura civil-empresarial-militar (1964-1985) teria gerado em mentes insanas a ideia de que havia um país livre da corrupção e dos desmandos, ainda que fontes documentais e as evidências históricas nos demonstrem como os índices sociais, educacionais e econômicos foram dramáticos durante e ao fim da ditadura. Não há nada que nos alente em relação ao combate à corrupção, muito menos no que tange às políticas públicas de inclusão social no Brasil bolsonarista. A violência indiscriminada em relação às mulheres, aos negros, aos povos originários e à comunidade LGBTQI+ vêm crescendo de maneira assustadora no Brasil. Para Snyder, para que a violência transforme não só o clima político como também o sistema, as emoções dos comícios e a ideologia de exclusão precisam ser incorporadas ao treinamento de guardas armados. Esses guardas primeiro desafiam a polícia e as Forças Armadas, depois se infiltram nessas organizações e por fim as transformam.

Sobre a ascensão das religiões neopentecostais no Brasil, o binômio política/religião se tornou uma mistura explosiva num país em que quem tem definido as regras do jogo político são as bancadas da Bíblia, do Agronegócio e das Armas no Congresso Nacional. Mas não basta tomar o poder. A direita orgulhosa, religiosa e conservadora homenageiam torturadores em carros de som nas grandes avenidas, como bem assinala a jornalista Andrea Dip. Orgulham-se, portanto, de sua ignorância; polemizam e provocam especialmente partidários e simpatizantes da esquerda. Não têm medo de serem punidos. Estão do lado das pessoas de bem. Os temas de cunho moral são os que unificam os parlamentares evangélicos, independentemente de partido. Como são avessos aos argumentos, às evidências, à ciência sistematizada, são barulhentos, intempestivos, aguerridos, beligerantes, e esse barulho cria a impressão de volume, de quantidade de poder, de coesão. (…) é uma estratégia de parecer maior do que é, pelo grito – como acontece nas próprias igrejas. As Igrejas têm esse discurso de guerra, de combate, segundo Dip. Mas as alianças dos evangélicos com o grande capital também são evidentes. Não por acaso a bancada BBB (Bíblia/Bala/Boi) vota em bloco em qualquer situação!

Tais igrejas evangélicas detêm 1/3 das concessões de televisão no Brasil. Angariam simpatizantes nas periferias e nos presídios, sujeitos historicamente esquecidos pelo poder público. Essas igrejas estimulam o empreendedorismo, dado o esvaziamento de soluções coletivas e o trabalho formal com carteira assinada, produzindo um caldo de direitização jamais visto. Tragicamente, de acordo com os estudos de Dip, os neopentecostais tornaram-se personagens de um processo sem precedentes no país, com plataformas baseadas na retórica do terror (‘querem acabar com a família’), pelo impedimento da garantia de direitos sexuais e reprodutivos e das ações de superação da violência de gênero. O que se desenha, como vemos, pouco ou nada tem a ver com a defesa das famílias. Acaba por ser uma armadilha (instrumentalização) de grupos políticos para quem professa uma fé. Há mais de 1.500 denominações evangélicas no Brasil. Estrategicamente, o plano das lideranças dessas Igrejas é ocupar cargos executivos e o Judiciário, para barrar as pautas relacionadas aos direitos reprodutivos das mulheres e à comunidade LGBTQI+.

Para o historiador Tim Snyder devemos fazer um grande esforço e nos afastarmos da internet e lermos mais livros. No que tange à mídia hegemônica, o historiador afirma que tudo acontece depressa, mas nada acontece de verdade (…), somos atingidos por uma onda atrás da outra, mas nunca vemos o oceano. De fato, no emaranhado dos noticiosos diários, quantos são capazes de compreender as sutilezas ou armadilhas presentes em cada matéria da pauta jornalística? Ver notícias na televisão às vezes equivale a pouco mais do que olhar para uma pessoa que também está olhando para uma imagem. Consideramos esse transe coletivo uma coisa normal. Caímos nele lentamente.

Por fim, os recuos da teoria e da política no governo Bolsonaro são propositais, pois ciência e a politização de qualquer tema social geram contradições fundamentais. Diante das contradições, o governo que aí está só consegue responder com a repressão, haja vista suas alianças de classe. Aliás, como esquecermos a metralha de 80 balas disparadas contra uma família negra num país que se mostra, diuturnamente, tão desigual, racista, misógino e recalcado? Fora outras violências cometidas pela polícia contra as populações negras e pobres desse país. O misticismo obscurantista aliado à barbárie institucionalizada compromete avanços sociais, científicos e educativo-formativos. Nossas preocupações deveriam ser outras, mas mesmo os grupos empresariais jornalísticos começam a entender (ainda que tardiamente) que devem pautar também a história recente do país, uma história de golpes, ditadura, violação dos direitos humanos, censura à imprensa, etc.

Jéferson Silveira Dantas – Professor vinculado ao CED/UFSC e ao Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).

Redação

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