Por uma estratégia comunitária do SUS na pandemia

Desde o início da pandemia, o Ministério e a maioria das secretarias estaduais e municipais de Saúde adotaram unicamente uma estratégia passiva e restrita que consiste, basicamente, no atendimento a infectados que acorrem às UPAs e aos hospitais.

Por uma estratégia comunitária do SUS na pandemia

por Alcides da Silva Miranda, Dario Pache, Jeferson Miola, José Mario Neves e Tadeu de Paula Sousa

Ao histórico sub-financiamento do SUS, o golpe de 2016 agregou um acelerado processo de desmonte e desfinanciamento via EC 95. Este desmonte, porém, foi ainda mais acentuado nos 15 breves meses de Luiz Henrique Mandetta e sua equipe no Ministério da Saúde.

Na gestão Mandetta, enxotaram médicos cubanos, cortaram o Mais Médicos e esvaziaram a atenção primária. No período dele, a Estratégia de saúde da família [ESF] e as vigilâncias sanitária e epidemiológica foram sucateadas. E, como mostrou o despreparo do Ministério da Saúde no início da pandemia, a produção cientifica e tecnológica do SUS foi negligenciada.

Esse sucateamento enfraqueceu a capacidade do SUS coordenar uma eficiente estratégia comunitária ativa para enfrentar o COVID-19. Uma estratégia baseada na atenção primária e na vigilância em saúde em estreita coordenação com a rede hospitalar e especializada do SUS.

Desde o início da pandemia, o Ministério e a maioria das secretarias estaduais e municipais de Saúde adotaram unicamente uma estratégia passiva e restrita que consiste, basicamente, no atendimento a infectados que acorrem às UPAs e aos hospitais.

Além de não integrar a atenção primária do SUS, esta estratégia também acabou abdicando do controle comunitário de prevenção e transmissão da doença, o que é um grande equívoco.

Sob o pretexto da “incontornável” falta de reagentes no mercado mundial, até hoje não se faz a testagem em larga escala da população; requerimento básico para um planejamento mínimo.

Em plena pandemia, a atenção primária em saúde, que tem capacidade para atender e resolver eficazmente mais de 80% das necessidades e demandas de saúde da população, está funcionando com uma ociosidade que, em muitas realidades locais, ultrapassa os 50%.

Devido a esta “desassistência programada”, pessoas portadoras de doenças crônicas como diabetes, hipertensão, cardiopatias etc, têm seus casos agravados e, inclusive, vão a óbito por falta de acompanhamento clínico ou de receitas para aquisição de remédios de uso contínuo.

As mulheres, além de privadas de exames e consultas periódicas para prevenção precoce de câncer de colo uterino e de mama, não têm acesso a métodos contraceptivos, passando a conviver, muitas vezes, com uma gravidez indesejada. Há, ainda, o agravante das gestantes que não estão sequer conseguindo fazer acompanhamento pré-natal no SUS.

É uma bomba armada. Aos óbitos e adoecimentos graves pela COVID-19, se somarão muitos outros óbitos e agravamentos de doenças devido à escolha pela “desassistência programada”.

Para além [1] das recomendações de natureza geral para a prevenção e controle da propagação da COVID-19 – como isolamento e distanciamento social; restrição da atividade econômica ao menor nível essencial; proteção de empresas, empregos e renda mínima para trabalhadores e pessoas em situação de vulnerabilidade –; e [2] das medidas específicas para cura e tratamento, como ampliação de leitos de UTI e provisionamento de meios e medicamentos; também é necessário ativar-se, urgentemente, [3] a atenção primária e a vigilância em saúde tendo como centro desta ação a saúde da família e da comunidade.

É por meio do trabalho expandido da saúde da família, reforçada com agentes comunitários de saúde capacitados e bem equipados, que o enfrentamento do coronavírus será mais eficaz. No âmbito da saúde da família e da comunidade se consegue [1] rastrear e mapear casos com ampla testagem e visitação de casa em casa em cada território; [2] executar o isolamento específico de contaminados e/ou sintomáticos; [3] prevenir e controlar a propagação da doença; e [4] hierarquizar o encaminhamento de pacientes segundo o nível de tratamento recomendado – ambulatorial, hospitalar ou internação em UTI.

A ação do COVID-19 no organismo humano ainda está sendo investigada. Descobriu-se, por exemplo, que o vírus ilude o sistema imunológico e confunde o diagnóstico clínico, como acontece com pacientes liberados após atendimento médico por apresentarem sintomas leves, apesar do nível crítico de oxigênio no sangue e que, menos de 12 horas depois, falecem.

Com agentes comunitários de saúde equipados com um simples oxímetro portátil [aparelho para medir o nível de oxigênio no sangue] encontrável no mercado a um custo não superior a R$ 150, tais pacientes poderiam ser diagnosticados precocemente e salvos.

A atenção primária em saúde, cuja rede é capilarizada em todo o país, pode fomentar um rico e consistente processo de mobilização das comunidades e dar sustentabilidade ao enfrentamento à pandemia. Isso viabilizaria ações relevantes como de educação em saúde; suporte comunitário às pessoas vulneráveis e isoladas; distribuição de alimentos e artigos de higiene; monitoramento da circulação nas comunidades etc.

Devido à postura irresponsável e desastrosa do governo Bolsonaro, porém, o COVID-19 avança a galope. O Brasil já é o epicentro mundial da doença. Mesmo com subnotificação e manipulação estatística, em algumas semanas o país será recordista mundial absoluto em número de pessoas mortas e contaminadas. A trajetória da epidemia no país seguirá ascendente, se interiorizando e se propagando com altas taxas de reprodução do vírus.

A experiência internacional mostra que a curva declinante da doença é mais lenta que a curva crescente até o pico de contaminação. Isso significa que, após atingir o nível máximo de contaminação, quando iniciar trajetória de queda de infectados, devem ocorrer no país mais mortes que o observado na fase de contágio crescente, que é a que o Brasil se encontra hoje.

Na longa maratona do COVID-19 no Brasil, portanto, é urgente a necessidade de adoção de uma estratégia comunitária ativa do SUS para se diminuir mortes e sofrimentos evitáveis. O que está sendo feito hoje é insuficiente e não aproveita o potencial pleno do SUS.

Esta estratégia da saúde da família e comunidade está dando certo em populações e países com condições socio-sanitárias semelhantes ou até piores que o Brasil, como Mumbai, na Índia, e a maioria das nações do continente africano.

No Brasil, experiências comunitárias que se afiguram como verdadeiros auto-governos [Paraisópolis e favelas em vários Estados] adotaram suas próprias medidas de saúde da família e da comunidade e vêm obtendo resultados mais encorajadores que a média brasileira.

Se ficassem dependentes da estratégia passiva e restrita dos governos, certamente estas comunidades estariam seriamente ameaçadas de genocídio.

O SUS potencializa sua eficácia no enfrentamento à epidemia do COVID-19 se conseguir integrar à sua estratégia esta abordagem comunitária. Além do financiamento adequado do sistema, é fundamental uma estratégia correta.

Este texto, neste sentido, é uma contribuição e, também, um convite para a discussão sobre alternativas de enfrentamento ao coronavírus a partir desta perspectiva.

Alcides da Silva Miranda, professor do Bacharelado em Saúde Coletiva da UFRGS

Dario Pache, professor do Bacharelado em Saúde Coletiva da UFRGS

Jeferson Miola, especialista em Saúde Coletiva pela UFSM; integrante do IDEA

José Mario Neves, doutor em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS; do IDEA

Tadeu de Paula Sousa, professor do Bacharelado em Saúde Coletiva da UFRGS

Redação

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