Por uma frente de libertação nacional, por Roberto Bitencourt da Silva

Como oportunamente Darcy Ribeiro reverberou, o Brasil é um país com enormes possibilidades. Trata-se de um entroncamento de matrizes étnicas e civilizatórias.

Por uma frente de libertação nacional

por Roberto Bitencourt da Silva

O novo ano inicia com alguma dose de esperança entre os brasileiros, devido à crescente realização de campanhas de vacinação na cena internacional. Experimentar o controle dos riscos de contágio, assim como a plausível atenuação dos problemas sanitários decorrentes da pandemia, consiste, talvez, na maior expectativa que se pode depositar neste 2021.

No terreno da política institucional, antigos hábitos e empobrecidos esquemas de interpretação, muito familiares entre as lideranças e os partidos de esquerda, deram o ar da graça ao final do ano passado. Irão persistir, sem dúvida. Refiro-me, particularmente, à exclusiva atenção dada a cálculos meramente eleitorais e restritos ao âmbito parlamentar de atuação. Cada vez mais enjauladas nos limites da busca por votos e nas jogadas legislativas, as esquerdas (no plural), desde o golpe de Estado de 2016, norteiam as suas ações em torno da dicotomia democracia versus fascismo.

Uma defesa abstrata da democracia contra o autoritarismo, representa a diretriz da retórica e das escolhas das esquerdas. Não foi em vão que PT, PC do B e PDT aderiram à candidatura patrocinada por Rodrigo Maia (DEM) à presidência da Câmara. Parte dos deputados do PSOL também expressa apoio. A incapacidade apresentada por amplas faixas dos setores progressistas de fazer um minucioso diagnóstico da crise chama a atenção e influi em tais passos e tomada de decisões. Em vez de uma etérea e inócua frente pela democracia, o que o Brasil mais necessita é de uma frente de libertação nacional. O jogo, o programa e a agenda de ações, aí seriam forçosa e radicalmente diferentes.

Como oportunamente Darcy Ribeiro reverberou, o Brasil é um país com enormes possibilidades. Trata-se de um entroncamento de matrizes étnicas e civilizatórias. Algo que oferece múltiplas formas de ver e fazer as coisas, que permite aguçar a capacidade imaginativa e o engenho criativo, com potencial força de incidência no cotidiano de inúmeras áreas de atuação: música, cinema, tecnologia de ponta, ciência e educação etc. Uma singular pluralidade cultural. Somos uma gente com rico e diverso patrimônio cultural.

Um vasto território dotado da maior biodiversidade da Terra. Segurança alimentar e energética facilmente assegurada. Tudo isso é insumo para construir uma grande nação, independente e altiva no cenário internacional. Tudo isso oferece subsídios para obter pujança e bem-estar social. Temos vocação para grandeza. Cumpre acioná-la.

Contudo, o que prevalece é uma verdadeira gestão da escassez, incrementando a miséria e o desalento. Uma crueldade contra o Povo Brasileiro. O destino que está sendo alinhavado é trágico. Não é obra exclusiva do presente, mas ganhou aceleração nos últimos anos, após o golpe midiático, judicial e parlamentar de 2016.

O capital estrangeiro, em meados dos anos 1990, controlava cerca de 6% do patrimônio empresarial, dos recursos econômicos e financeiros no Brasil. O que tinha então de mais desnacionalizado era o setor industrial. O dramático golpe de Estado anterior, de 1964, foi dado exatamente para evitar o domínio e a internalização tecnológica de vanguarda no Brasil e o controle efetivamente nacional da indústria. O personagem interpretado por Paulo César Pereio, no filme “Eu te amo”, de 1981, anunciava em alto e bom som que a sua fábrica tinha falido. Isso porque o ministério da Fazenda teria estimulado uma transação para beneficiar as multinacionais gringas. Uma boa explicação ficcional da nossa cinematografia, para iluminar uma faceta da dependência tecnológica.

No ano de 2019, contando também com a propriedade de parcelas da dívida pública (interna e externa), o capital estrangeiro controlava, nada mais, nada menos, do que escandalosos 50% do PIB. Desde então, deve ter aumentado essa participação. Praticamente todos os estratégicos meios de produção estão sob o domínio externo de conglomerados e oligopólios empresariais, fundos de pensão e investimentos. É aí, de fato, o lócus do poder no Brasil. Fomos convertidos ao status de colônia aberta, pouco devendo às trajetórias de países mais frágeis no continente americano.

A opção acolhida pelas classes dominantes e por seus representantes políticos de primeira hora (como Michel Temer e Jair Bolsonaro) tem sido impor um rebaixamento do tipo de inserção da economia brasileira na divisão internacional do trabalho, na chamada globalização. Até onde pode chegar esse rebaixamento é uma questão decisiva. Norteando o projeto das classes dominantes, estas acabaram com uma miríade de garantias de proteção ao trabalhador, leis conquistadas desde a era Vargas. Normatizaram a intermitência, o trabalho precário e terceirizado. Almejam ainda suprimir os direitos dos servidores públicos.

As montadoras de veículos, multinacionais poderosas, parecem não dar bola para a intensa depreciação das condições salariais e de vida do trabalhador brasileiro. Algumas, simplesmente, preferiram fechar as portas. Tudo indica, como trabalho aviltado o Brasil não parece interessar tanto ao sistema econômico global. Na condição de mercado consumidor a ser explorado o interesse não é maior. Precisamente pela natureza a cada dia mais espoliada e degradada do trabalho, muito mal remunerado e bastante precarizado, os padrões de consumo da maioria esmagadora estão significativamente amesquinhados.

Sob as vestes de sujeitos habilitados para consumir quinquilharias de ponta tecnológica do centro do capitalismo ou da China, nós brasileiros não parecemos ter melhor sorte. Os seguidos e duros cortes na educação são sinais importantes, retraindo, ainda mais, possibilidades formativas, cognitivas no horizonte. Limitações sendo erguidas até para a preservação de práticas convencionais no país, tais como a formação cultural colonizada para acompanhar as “modas” e a instrução visando operar as máquinas e os equipamentos vindos de fora. Rudimentarização absoluta. Para um novo tipo de economia, um novo modelo, inclusive de oferta, educacional. Um novo tipo humano, ensina Gramsci.

Nesse sentido, o setor primário-exportador e a financeirização ganham maior ênfase na economia brasileira, resultando em aumento do desemprego e da informalização do trabalho. O Senado, há poucos dias, aprovou lei que autoriza até 25% da propriedade de terras dos municípios pelo capital estrangeiro. A subjugação legalizada.

O governo federal promove ações deliberadamente voltadas à morte de brasileiros. Tornar o trabalhador dispensável (inclusive com escolaridade alta) tem sido o resultado imediato desse conjunto de iniciativas. O projeto em curso é de colonização vil e sem máscara, fazendo com que o país prescinda do próprio povo, seja como agente cultural, seja como sujeito do trabalho e da produção, seja como consumidor. Genocídio deliberado. A face tenebrosa do chamado biopoder, a que faz alusão Michel Foucault, talvez nunca tenha ficado tão evidente em nosso país. Cortes de auxílios emergenciais. Negacionismo e desinformação em face da covid-19. Descaso e letargia na promoção da vacinação.

Nada, absolutamente nada vai alterar a rota destrutiva do país por dentro das instituições. Muito menos com atores políticos que defendem as lesivas e antinacionais medidas assinaladas, seja o liberalismo eivado de gestos e retórica parlamentar adocicada, como o de Rodrigo Maia e sua trupe, seja o liberalismo de Bolsonaro, calçando coturno. Duas complementares faces da moeda do entreguismo.

Nessas circunstâncias, tratar o estado de coisas predominante no país como contingências de uma democracia torna-se risível. Um alheamento completo da dura realidade. Na contramão, há necessidade imperiosa de ser criada uma frente de libertação nacional, circunstancialmente envolvendo partidos progressistas institucionais. De resto, pouco provável, em virtude da práxis das cúpulas partidárias. Mas, muitos quadros, simpatizantes e militantes podem perfeitamente engajar-se.

Para além dos partidos integrados na ordem, cumpre gestar, então, a formação de um movimento de libertação nacional. Um movimento que venha a congregar organizações populares, sindicais, profissionais, estudantis etc., que formulem uma plataforma de ação política, com diagnósticos da crise, propostas de superação, oferta de uma visão alternativa de país. Movimento libertador que priorize iniciativas extraparlamentares, tendo em vista influir na construção da agenda e da opinião pública, buscando atingir capilaridade por meio da criação de células de coletivos dedicados à pregação, educação e mobilização política. Naturalmente, tende a tratar-se de um movimento de viés socialista e nacionalista que almeje romper com o sistema criminoso e colonial que arruína o nosso país.

Godard, em 1963, denunciou a americanização da Europa, em especial da França, com o seu filme “O desprezo”. Jack Palance flertava Brigitte Bardot. O marido da personagem de Bardot, que interpretava um roteirista francês, empurrava a bela esposa para Palance, cujo papel era de um endinheirado e arrogante produtor americano de cinema. Longe da ficção, no ano seguinte, o golpe de Estado no Brasil representou um importante passo para fortalecer a americanização do mundo. Na década de 1970, essa americanização global – notadamente da Itália – foi concebida por Pasolini como a manifestação de um novo e mais ameaçador totalitarismo fascista. Algo que tenderia a padronizar e degradar os comportamentos coletivos e que daria substância à emergente sociedade hedonista de consumo.

Hoje, nos deparamos com a ascensão da indústria 4.0, a qual Ricardo Antunes avalia como uma grande ameaça à humanidade. O trabalho digital, depreciado e desregulamentado, crescendo no mundo e sendo adotado sob ritmos peculiares aqui e acolá. A consequência de tal indústria digitalizada e automatizada é o descarte das gentes, sobretudo na periferia do capitalismo. As bigtechs e os fundos de investimentos americanos na frente do processo, conduzindo a disputa estadunidense por hegemonia mundial com os chineses. Uma disputa que revela o caráter agonizante e monstruoso do capitalismo made in USA.

Sendo bastante plausível a hipótese de sequer servir como um mercado consumidor dos artefatos técnicos cultivados pela inovação e a pesquisa de ponta, desapossado de recursos para o efêmero gozo do consumismo hedonista, tendo as portas fechadas para isso, ao Povo Brasileiro o imperialismo capitalista demonstra ser tão avassalador que nos impõe apenas o papel de sede de recursos energéticos e biodiversidade. Local de saque das riquezas naturais para abastecer o capitalismo internacional.

Estão nos tornando somente território. As classes dominantes domésticas, as megacorporações estrangeiras e os EUA como grandes responsáveis. Para isso, está dispensada a nossa história, a nossa cultura. Prescinde-se de povo. Falar em democracia na esteira desses fenômenos chega a ser uma brincadeira ilusória de mau gosto. Nosso calendário deve ser de décadas, ainda que agindo aqui e agora, mas não condicionado pela primeira eleição à frente. A alternativa de sobrevivência e dignidade do país só pode ser alcançada por meio da construção de um amplo movimento de libertação nacional, que defenda a pátria e vise promover a soberania popular, o domínio e a criação tecnológica nacional, bem como o uso humanizado dos seus frutos.

Roberto Bitencourt da Silva – cientista político e historiador.

Redação

1 Comentário

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  1. Gostaria de parabenizar o Roberto pelo texto.
    Chama a atenção em sua análise, e a de outros articulistas aqui do GGN, a constatação da passividade das chamadas “esquerdas”. Desorientadas, sem projeto, sem ação. Certo que o PT lançou recentemente um plano para a reconstrução do país. Entretanto, nada é feito para mobilizar as pessoas contra os que ocupam o poder e em prol da construção de uma sociedade que proporcione uma vida digna para os mais pobres. Isso serve para os demais partidos. Esperam a próxima eleição, com a perspectiva de voltar ao poder pelo desgaste do monstro que está na presidência. Os partidos progressistas, vamos chamar assim, sofreram fragorosa derrota nas eleições municipais, sobretudo o PT. SE nada mudar, esses partidos tendem a desaparecer. As perspectivas são sombrias. Certo que a pandemia atrapalha muito a mobilização, mas desde o golpe contra Dilma a passividade, a apatia é a tônica desses partidos. A pergunta que deixo: até quando?

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