Preâmbulo ou epitáfio? A heterotopia dos trinta anos da Constituição Federal de 1988, por Eliseu Venturi

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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M.C. Escher. Contrast (Order and Chaos). 1950

Preâmbulo ou epitáfio? A heterotopia dos trinta anos da Constituição Federal de 1988

por Eliseu Raphael Venturi

“Era amedontrador, escreve Jacobson, ver semelhante vazio abrir-se a um passo do chão firme, perceber que não havia transição, somente essa borda, de um lado a vida corriqueira, do outro o seu inimaginável oposto. O abismo no qual não penetra nenhum raio de luz é a imagem que Jacobson associa ao passado naufragado da sua família e do seu povo, que, como ele sabe, não pode mais ser resgatado das profundezas” (W. G. Sebald)

Escrever ou falar sobre os trinta anos da Constituição, neste momento histórico, é uma tarefa impossível. Falar sobre a Constituição é, antes de mais nada, invocar uma heterotopia.

E este caminho se faz sem quaisquer pudores em não se remeter a um requentado e fácil caminho da liturgia do “estado de exceção”. Não é o caso, tanto que os últimos anos de história nacional mostraram o fosso que existe entre ilegalidade e legalização do antijurídico e, mais, entre ordem jurídica e pura, simples e leviana “exceção”.

A linguagem serve à hegemonia de fora para dentro e de dentro para fora. Toda batalha é antecedida por uma batalha de termos. Se a contra hegemonia se seduz, seu ponto de partida é o da derrota: morre pela boca na palavra não dita. Ou no termo equivocado.

Antes de “exceção”, como se não houvesse uma costura jurídico-política que perpassasse todo o real social, portanto, denunciemos: ilegalidades, injustiças, inconvencionalidades. E, sim: retomemos as inconstitucionalidades. E não nos valhamos do “parti pris” científico para diluir a crítica, nem para eximir da responsabilidade.

Talvez, então, voltemos à Constituição, este documento tantas vezes tomado no feminino e, assim, devidamente apreendido pelo patriarcado cruel. Talvez voltemos a pensar na sociedade aberta de intérpretes, e ousemos voltar à realidade para recuperar o sentido constitucional. Quem sabe pensemos em termos da vontade “de” e da vontade “da” Constituição, ou mesmo falemos de fidelidade e sentimento constitucionais. Tudo isso sem soar esquizofrênico.

Talvez corra o sangue da Constituição viva, e não esta mumificação acadêmico-prática que talham o texto, memorizam incisos e naufragam hermenêutica e argumentação, mundo e corpo. De qualquer modo, estamos na heterotopia, vivendo seus prazeres e seus dissabores.

Os últimos anos demonstram como, quando muito se insistia na exceção, muito se havia de direito vigente a salvar, e abandonando-se o que se tinha, mais se perdeu. Quanto mais se criticavam os direitos humanos por motivos vazios, como metafísica e raízes cristãs, mais tempo se perdeu. Quanto mais se investiu em “pós-“ qualquer coisa, mais se esqueceram os conceitos de base, nunca superados em definitivo.

Não existe “vida nua” em uma cultura jurídica, por mais antijurídica que esta se apresente. O que há é normatividade. Falar sobre a Constituição, o Direito, a Política, é falar sobre tradição e sobre horizontes, sobre normas e sobre condutas humanas. É dedução, indução, mas também é abdução: todo ato de interpretação e de argumentação é, sobretudo, uma aposta semiótica intensa e fundante. Linguagem é força tremenda que grita.

Toda ideia de segurança jurídica que não se assente em sua completa consciência da liquidez das certezas é uma segurança jurídica impositiva e falaciosa: argumento de autoridade, a forma mais banal das realidades jurídicas atuais. A forma mais adorada do pseudodireito.

O autoritarismo vai refestelando-se por todos os cantos, da academia ao Judiciário. E agora, o corpo constitucional que se oferece em sacrifício, é corpo vivo ou cadáver? Estamos na heterotopia e a morte e vida estão suspensos: não há resposta.

Escrever ou falar sobre os trinta anos da Constituição, neste momento histórico em que se encontra, não é tarefa tão difícil assim se a linguagem ordinária for admitida. A linguagem simples e fácil do juridiquês não comove mais. Um dia, um Ministro fala em “movimento de 1964”, sendo publicamente contestado pelo próprio autor que tomou por referência.

No outro dia, a mesma pessoa, o mesmo indivíduo, fala em “nunca mais” ao fascismo, ao nazismo, ao racismo, à ditadura, à discriminação. Ministro mesmo desta mesma Corte que se afirma guardiã do texto que picota, para dela tirar bonecos de mãos dadas, apenas. Uma desconfiança ronda o poder constitucional, na mesma medida em que assegura a trama infinita de relações e distorções. Quem suporta, ainda?

Esta linguagem esclerosada do juridiquês, que marca o estilo das Presidências do Tribunal e que estrutura o Direito Brasil afora, só reflete o verniz dos sapatos e da brilhantina do bacharelismo, que é da voz e do traquejo desengonçado destes corpos aprisionados. Esta linguagem não se decodifica mais: seu vazio é a evidência de seu fracasso semiótico. É canto sem voz. Esta petulante máquina de carne que nos subjuga.

Pois que falem em grandeza, falem em nação, falem em jogo democrático, em coragem, se afirmem garantidores, falem em reverência, em defesa, ou falem da missão do Supremo, de dignidade, liberdade, igualdade, concretização, direitos, e falem em turbulência, em barulho, em república, em exceção, em escudos e excessos, em paz e tiranias, em zelo, moderação, em compulsão perversa. Falem, senhores, falem eternamente e gravem em disco de ouro. Protocolo algum segura as condutas. Verniz algum intensifica a falta de cor e de calor.

Usem-se as mesmas palavras, os mesmos signos: significado e semântica estão para além destes limites materiais, das cascas frágeis da palavra isolada. A construção normativa é muito mais do que este falso artesanato com o barro destratado e pouco sovado do Direito mais caro.

Esta arte crua de dizendo o óbvio falar do nada, de desativar e despotencializar o infinito da linguagem da justiça e do cuidado. A história é ainda maior, a linguagem é ainda mais selvagem e desconhecida.

Esta heterotopia constitucional que não é nem exceção nem juridiquês.

Do mesmo modo que não é pirotecnia acadêmica alguma. Nem o espaço de sequer se cogitar um constitucionalismo autoritário, um direito abusivo, direitos humanos de repressão, e assim por diante: não se admitam contradições em termos de quem deveria zelar pela linguagem e pelos conceitos, mas de quem nada se espera, até porque em termos de guardiões, a realidade dos portões estourados fala por si.

Não se admitam liberdades poéticas para fortalecer dominações espúrias e reiteradas. Não se admita a linguagem dolosa e gasta da “crise”, do “impeachment”, nem se admita o álibi moral universal da “corrupção” que tranquilizou todas as mentes medíocres do país da lei de Gerson. Nada mais se sustenta em termos destas hipocrisias.

Na máxima wittgensteineana, vários juristas, julgadores e acadêmicos deveriam resguardar um silêncio lacônico, ao invés de repetir as velhas fórmulas que a ninguém mais convencem. Poderiam resguardar o silêncio ante a morte que impuseram paulatinamente ao texto.

Frise-se: os mesmos signos, que não são os mesmos significados.

Os eventos comemorativos seguiram e ainda seguirão, os chavões seguem, os jantares e vinhos seguem. As mesas mortas na Universidade, que deveria ser ao recanto mais candente de batalha, pois que sigam também, arrefecidos com bons amigos brindando seus privilégios sobre as madeiras mortas antigas. O que tudo se torna, todos sabemos ao final; “salvemos nós dois”.

Na heterotopia tupiniquim, trinta anos de Constituição não são falar sobre reformismo e emendismo. Nem tampouco sobre os avanços, os direitos conquistados. Nem falar sobre estruturas oligárquicas ainda cristalizadas na Constituição. Nem falar acerca de como tentar lidar com o mundo sem necessariamente ter de zerá-lo – a questão mais difícil e que ninguém enfrenta.

Não é falar sobre como os constitucionalistas esculpiram monstros de papel machê constitucional, nem tampouco falar sobre como ignoramos cabal e sistematicamente o conhecimento da Constituinte e como isso, somado à redemocratização, deveria pesar hoje na valoração do documento. Não é falar sobre os abandonos da Constituição em nome de exportação frenética e fetichista de teorias de outras realidades e de outras Constituições.

Falar sobre a Constituição, hoje, é apenas e unicamente falar de um enclave.

Um enclave sem identidade, sem nacionalidade, sem segurança, sem certezas. Um enclave, contudo, do desejo. Uma arapuca da verdade. Um enclave do medo e do risco. Um enclave entre o autoritarismo e a democracia. Um enclave entre as oligarquias e os direitos. Um enclave entre o povo e as elites. Um enclave que pode nos devolver ou que vai definitivamente nos dissolver.

Eliseu Raphael Venturi é doutorando e mestre em direitos humanos e democracia pela Universidade Federal do Paraná. Editor executivo da Revista da Faculdade de Direito UFPR e Membro do Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFPR. Advogado.

¹ Disponível em: <https://www.escherinhetpaleis.nl/escher-today/contrast-order-chaos/?lang=en>. Acesso em: 06 out. 2018.
² SEBALD, Winfried Georg. Austerlitz. Tradução de José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 286. O autor agradece ao Professor Benedito Costa Neto a referência literária.
 
Lourdes Nassif

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