Presunção de inocência, por Sérgio Sérvulo da Cunha

Acolhida pela Constituição de inúmeros países, a presunção de inocência tornou-se dogma civilizatório.

Presunção de inocência

por Sérgio Sérvulo da Cunha

Quando, ao final do Renascimento, nos pusemos a raciocinar sobre os fundamentos do poder político, despontou como básica uma pergunta: o homem é bom ou mau?

Filósofos como Hobbes, Locke e Rousseau faziam depender, da resposta a essa indagação, o estabelecimento das regras de convivência social.

A resposta não seria dada no plano da reflexão, mas dos fatos: após a Revolução Francesa, a sociedade moderna se edificou sobre a derrota do absolutismo, e o prevalecimento das liberdades. À base do novo regime está uma opção pragmática: vale a pena apostar na liberdade do homem, correndo os riscos e suportando os danos que decorrem, do seu abuso, para as pessoas e para a sociedade. Preferimos, portanto, o Estado liberal ao Estado policial.

O que aconteceu no nazismo, e no estalinismo, atesta o acerto dessa escolha. Todas as pessoas, ali, estavam sujeitas à vigilância do olho supremo, podendo ser presas, condenadas ou eliminadas sem culpa formada, sem defesa e sem o devido processo legal.

A presunção de inocência, no Estado liberal, antes de ser garantia do indivíduo, é escudo da sociedade contra o arbítrio. Nessa proclamação em proveito de todos, está implícito que a honra e liberdade do outro são tão sagradas quanto a minha.

– Ah, alguém me diz. Você, então, é a favor da impunidade. – Não, respondo. Mas só podemos punir quem tenha sido julgado culpado, ao fim do devido processo legal. Fora daí, regredimos à prática do linchamento.

– Ah, diz-me outro. O carinha mata e não pode ser preso?

– Pode, respondo, se a prisão foi em flagrante delito. Fora daí não há como afirmar, com certeza suficiente, que ele matou. Ninguém pode ser preso com base em notícia do jornal ou da televisão. E mesmo o homicida tem direito ao devido processo legal, e à pena prevista em lei. Ao reprimir o crime, a sociedade não pode ser tão ou mais selvagem do que o criminoso.

Costuma-se dizer, também, que é excessiva a demora dos processos, e são muitas as instâncias julgadoras. É verdade. Devemos, por isso, combater a morosidade judicial. As pesquisas mostram que a principal causa da morosidade é o tempo durante o qual os processos dormem nas gavetas, no caminho entre uma e outra mesa, ou descansam nos escaninhos digitais. Também aqui se apresenta uma escolha entre a liberdade e a burocracia. A lei fixa prazos para os atos processuais. Por que eles não são cumpridos?

Diz a Constituição brasileira em seu art. 5º-LVII: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A proibição de prisão antes de transitar em julgado a sentença penal condenatória (isto é, enquanto estiver sujeita a recurso), é confirmada (salvo os casos legalmente estritos de prisão administrativa ou preventiva) pelo código de processo penal (art. 674) e pela lei de execução penal (art. 105).

Acolhida pela Constituição de inúmeros países, a presunção de inocência tornou-se dogma civilizatório. Para negá-la, diante do nosso ordenamento jurídico, é preciso muita arrogância; e, parece, uma certa propensão para a violência.

Sérgio Sérvulo da Cunha é advogado, autor de várias obras jurídicas. Foi procurador do Estado de São Paulo e chefe de gabinete do Ministério da Justiça.

Redação

5 Comentários

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  1. O que está sendo julgado hoje no STF não é o posicionamento individual de cada ministro em relação ao cumprimento de pena após condenação em segunda instância.
    O que está em questão é se a suprema corte respeita ou não o que está escrito na constituição.
    Os votos dos ministros lavajateiros traduzem flagrante desrespeito ao preceito constitucional. Rasgam a constituição que juraram defender. Abrem um perigoso precedente que retira do Supremo o papel de guardião da constituição e enfraquece o ordenamento jurídico institucional.
    Se não concordam com o que está escrito na constituição, que trabalhem para alterá-la. Desrespeitá-la, jamais.

  2. Presunção de Inocência nos Presídios Brasileiros? Presunção de Inocência nos Radares da Indústria de Multas? Presunção de Inocência em Automóveis guinchados no meio das Rodovias? Presunção de Inocência, para quem? “Todos são Iguais perante a Lei”? Pobre país rico. Mas de muito fácil explicação.

  3. Antinomias jurídicas são contradições das ordens jurídicas, isto é, quando duas normas jurídicas são mutuamente excludentes.

    Nos estados democráticos de direito, as antinomias jurídicas são resolvidas com base em 4 critérios: O critério da hierarquia, o critério da especialidade, o critério cronológico e o critério da aplicação da lei mais benéfica à parte em desvantagem.

    Consoante o critério da hierarquia, um conflito entre dispositivos de leis de diferentes graus de hierarquia é solucionado em favor da lei hierarquicamente superior. Um conflito entre um dispositivo constitucional e um dispositivo de lei federal é resolvido em favor do dispositivo constitucional. Pelo critério da especialidade, se um dispositivo de uma legislação especial conflita com um dispositivo de uma lei comum, a solução se dá em favor da lei especial. Pelo critério da cronologia, uma lei posterior revoga os dispositivos de lei anterior que a contrariem. Finalmente, pelo critério da aplicação da lei mais benéfica à parte em desvantagem, como é o caso do réu criminal em relação ao Estado/Ministério Público, aplica-se a lei menos desfavorável ao réu.

    Pois bem. Foi detectada uma antinomia entre os arts. 283 e 637, ambos do Código de Processo Penal. Como a redação do art. 283, do CPP, é mais recente do que a redação do art. 637 do mencionado Código Processual, a antinomia (aparente) deveria ser (e de fato foi) solucionada com base no critério cronológico, com a prevalência do dispositivo cuja redação é mais recente sobre o artigo que o contraria, isto é, o art. 283, do CPP, deveria prevalecer sobre o art. 637, igualmente do CPP. Só que o Excelsior Ministro Fachin resolveu este conflito jurídico com base no critério cronológico, ignorando o critério da especialidade, segundo o qual, havendo contradição entre normas jurídicas, prevalece a norma específica sobre a geral. Fachin solucionou o conflito jurídico na seara processual penal recorrendo aos arts. 995, e 1.029, § 5º, ambos do Código de Processo Civil, pois, segundo o aludido Ministro, a redação destes dispositivos é mais recente do que a redação do art. 283, do CPP.

    Por sua vez, a Ministra Rosa Weber reconheceu igualmente o conflito entre os arts. 283 e 637, ambos do CPP. Entretanto, ela descartou o art. 283 do CPP, cuja redação é mais recente, em benefício do art. 637, com base no Princípio da Colegialidade, nada obstante ela tenha reconhecido que, nesse caso específico, o mencionado Princípio da Colegialidade contraria o Princípio Constitucional da Presunção de Inocência (antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória). Ora, pelo critério da hierarquia, havendo conflito entre normas de diferentes hierarquias, prevalece a norma hierarquicamente superior. Em sendo assim, a Ministra Rosa Weber deveria ter feito o contrário do que fez: deveria ter sacrificado o Princípio da Colegialidade em benefício do Princípio Constitucional da Não-Culpabilidade (antes do trânsito em julgado da sentença criminal condenatória) e, consequentemente, deveria, da mesma forma, ter descartado o art. 637 do CPP, em favor do art. 283 do mesmo CPP.

    Ou o Fachin e a Rosa Weber são burros no que diz respeito à solução de antinomias jurídicas ou eles agiram de má-fé. Em qualquer destas hipóteses, eles são criminosos. Se agiram de má-fé, são criminosos porque agiram de má-fé; se são ignorantes, são criminosos por aceitarem ocupar um posto para o qual lhes falta qualificação.

    1. Principio da Colegialidade valeria se a votação estivesse em 6×4, 9×1, 10×0…
      Mas quando está empatado?
      Acho que a ministra, que no caso Dirceu votou culpa mesmo reconhecendo não haver provas, no mínimo faltou a aula de lógica básica.
      Pior, pede opinião a um marreco criminoso de Maringá…

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