Psicanálise, campo público e saúde mental: Uma articulação necessária entre política e clínica, por Luciano Elia

Exposição fragmentos do Inconsciente. Elisabeth Sekulic

do Psicanalistas pela Democracia

Psicanálise, campo público e saúde mental: Uma articulação necessária entre política e clínica

por Luciano Elia

Que relação poderia a Psicanálise ter com o campo público? Parto desta pergunta, antes mesmo de, neste campo, situar o “setor” saúde.

Não me parece trivial esta relação, e ela se manteve sob um certo véu de recalque ao longo de toda a história do movimento psicanalítico, embora, desde sempre (como aliás acontece com o que é recalcado, que está longe de ser inexistente) possam-se verificar iniciativas de levar a psicanálise a populações menos favorecidas sócio-economicamente. Já em 1920, Max Eitingon fundou, com Karl Abraham e Ernst Simmel, o Instituto de Psicanálise de Berlin, que tinha esses propósitos, e o próprio Freud escrevera, um ano antes, em Linhas de progresso na terapia psicanalítica (1919), que o Estado um dia haveria de perceber a importância de aplicar a psicanálise em escala social ampla, a fim de libertar muitas pessoas da miséria neurótica.

Depois tivemos o freudo-marxismo da Escola de Frankfurt, genial sob vários aspectos, exceto pelo mais diretamente relacionado com o grande representante da psicanálise nesta Escola, Herbert Marcuse, cuja obra expoente é Eros e civilização, de 1955, título que já expressa bem a direção de seu pensamento, ao julgar que a única forma de articular a psicanálise com o marxismo e o campo das relações sociais seria repelir toda a elaboração freudiana da pulsão de morte. Adorno, por sua vez, que não era psicanalista, revelou uma sensibilidade crítica muito mais fina ao demonstrar os equívocos reducionistas do culturalismo, que dissolviam o mais essencial do pensamento de Freud sobre as pulsões.

Os neo-kleinianos argentinos, como Jose Bleger, Pichón-Riviere, Arminda Aberastury e outros incorreram em outro tipo de equívoco teórico na tentativa de relançar novas formas de aproximação entre Freud e Marx, sempre na direção de aplicar a psicanálise a populações mais amplas, diversas das formas burguesas de frequência aos consultórios de psicanalistas. Seu equívoco foi o de nada entender sobre a teoria do narcisismo e do eu, por eles tomada como demasiado individualista, voltada para interesses muito distantes dos interesses coletivos e sociais. Acreditavam que a sua perspectiva de enfatizar as relações de objeto desde o nascimento “salvariam” a psicanálise deste movimento demasiado ego-ísta e anti-coletivo, supostamente desprovido de qualquer senso de alteridade, que seria a teoria freudiana narcisismo[1]. Não compreenderam que o eu (ego) é um objeto, o primeiro, matriz de qualquer relação de objeto, e que o narcisismo é fundamentalmente alteritário, dependente do Outro no mais alto grau, e que não é por sua abolição que se poderia atingir o campo social, chegando-se, no máximo, à mais reles psicologia de relações interindividuais sem qualquer possibilidade de sequer conceber algo como o público.

Freud’s couch © Freud Museum

Finalmente, temos Lacan, que nunca empreendeu nenhuma forma de freudo-marxismo mas que empreendeu, ele sim, uma articulação interna, não por contiguidade ou justaposição mas por entrecruzamento discursivo, moebiano, portanto, entre a psicanálise e o marxismo, através da análise do conceito marxista de mais-valia como fundamento da noção mesma de sintoma, o que o levou à noção, esta lacaniana, de mais-de-gozar, perda no plano do gozo, fundamento da grande reviravolta que ele empreendeu em seu ensino a partir do Seminário XVI, com todas as consequências que todos nós conhecemos, que mudaram o norte da estrada psicanalítica.

Que incidência pode ter a psicanálise no plano da política, senão a partir de uma política do gozo? Não será pelos ideais de saúde, de inclusão social (que, quando bem concebido e direcionado deixa de considerar o indefectível grau de desinserção que todo sujeito implica em relação à ordem social e civilizatória, condição que o sujeito compartilha com várias outras categorias psicanalíticas – pulsão, inconsciente, desejo – e, de modo extenso, com a própria Psicanálise) que a Psicanálise incidirá na política. Tampouco, a meu ver, será pela contestação desses ideais. Não é da vocação da psicanálise a  contestação, mas sim a subversão. Freud diz nas Conferências Introdutórias uma frase, como sempre en passant, que é uma verdadeira bomba: A psicanálise não contesta nada. Via de regra, ela considera algo que por muito tempo foi mantido fora de consideração e que, uma vez considerado, muda tudo e torna-se o essencial. Esta manobra psicanalítica é essencialmente metodológica, estratégica, e quem dirá que não é por isso mesmo política

Psicanálise na Praça Roosevelt. Imagem recuperada da internet.

Falar sobre isso aqui me evocou uma transliteração que Lacan faz no Seminário XV, O Ato Psicanalítico, e que usei em um trabalho que apresentei em um evento do Forum do Campo Lacaniano no Rio já há muito tempo – O retorno do exílio. Lacan faz uma reescrita bem lalinguajeira (antes do ato falho pelo qual, quatro anos depois, ele inventou lalíngua) da proposição cartesiano Je pense donc je suis, mantendo a mesma fonética: Je panse donc j’essuie, que se traduz como: trato, logo enxugo. É do tratamento do gozo, por seu enxugamento, que se trata. Na ocasião do referido trabalho eu estava tomado pela questão do autismo, e foi em conexão com isso que propus uma leitura da frase. Faço agora uma outra proposta, ligada à política: a psicanálise trata o gozo por seu enxugamento no laço social e político. O gozo no capitalismo precisa ser enxugado, mais do que em qualquer outro modo de produção, para não chegar aos níveis de encharcamento do neoliberalismo, já intratáveis.

Toda política será política do gozo e seu trato/enxugamento: distribuição, regulação, perda e limite ao gozo. O Estado teria a função precípua de regular o gozo em uma sociedade, o que se distingue radicalmente do que Marx já havia, com toda clareza, apontado no engodo da democracia burguesa: farsa destinada a legitimar, por princípios falsos e abstratos de “liberdade., igualdade e fraternidade”, direitos individuais, representação popular e outras balelas, o jogo do poder guiado sempre pelos que detém o controle do capital, seus dispositivos, aliados e asseclas. O golpe de 2016 no Brasil é dos exemplos mais didáticos da farsa em que consiste a democracia burguesa. Em seu lugar, Marx propõe a verdadeira democracia, que seria a democracia social, real, a justiça social imposta pela força, pois os que detém o poder não abrirão mão dele por vias pacíficas (e pelo visto, a julgar por tantas experiências, tão próximas – João Goulart em 1964, Salvador Allende, no Chile de 1973 e Dilma Roussef no Brasil de 2014-16 – tampouco por vias eleitorais). Justiça desavergonhada, mídia perversinha e parlamento venal, atores do triste jogo “democrático”, ou seja, do jogo sujo do poder.

A psicanálise não propõe exatamente nenhuma forma de democracia, nem me parece tão evidente assim, como se costuma dizer, que ela só subsiste em um ambiente democrático. É bastante evidente que o fascismo lhe é letal, que o autoritarismo e a ditadura lhe são inimigos mortais, que enfim qualquer forma de regime totalitário não convém à psicanálise. Contudo, se é preciso ser livre para ir e vir, dizer o que se pensa, organizar-se como quiser, escolher parceiros sexuais, desconstruir e reconstruir gêneros, autorizar-se a todos os bens culturais e econômicos a que se tiver acesso independentemente de seu sexo e da cor de sua pele, no plano da estrutura em que se constitui o desejo o sujeito não é livre, e o psicanalista não é o arauto da liberdade individual. No Seminário XIX Lacan situa com muita precisão a impossibilidade do psicanalista colocar-se como um livre pensador, e em vários pontos de seu ensino encontramos o desabono da liberdade como um princípio regente à luz da experiência psicanalítica (só se encontra a liberdade na psicose, ele dirá).

A psicanálise tampouco deriva, como muitos autores de nosso campo apregoam, do movimento de pensamento que responde pelo nome de individualismo, e que floresceu na Europa desde o Iluminismo, ganhando outros contornos com o Romantismo do século XIX. Temos expoentes do individualismo na França, Inglaterra e Alemanha, respectivamente Louis Dumont, Steven Lukes e Georg Simmel, e há quem sustente que a Psicanálise freudiana seja um fruto expressivo dessas correntes do Individualismo e do Romantismo, e referencie Freud a esses autores mas quero me colocar em frontal discordância em relação a essa posição.

O que objeta a isso? Primeiro e antes de tudo, o inconsciente: vamos tomá-lo como uma dimensão profunda do indivíduo, sede dos instintos, ou como uma estrutura transindividual, discurso do Outro, ou, nos termos freudianos do Eu eu e o isso. pólo de incontáveis eus? A cada de um de nós a escolha, mas não ao modo das liberdades individuais, pois fazer a primeira dessas duas escolhas é abandonar, de saída, o rigor da letra de Freud, que Lacan dedicou a vida a resgatar para todos nós.

Exposição Fragmentos do Inconsciente. Artista: Elisabeth Sekulic.

Se o inconsciente é a objeção maior ao indivíduo e ao individualismo, sua estrutura só pode ser transindividual, como aliás Lacan afirma no Seminário XI. E tenho desenvolvido a ideia de que o inconsciente tem uma estrutura coletiva, com a condição de entendermos este termo em oposição radical à noção de grupo ou massa, tal como Freud a estudou e concebeu em Psicologia das massas e análise do eu, título que, como todos os títulos de Freud, é, além de belo, eloquente: diz tudo que é preciso dizer – a psicologia das massas é a análise do eu, o grupo e o eu são em todos os pontos homólogos. O coletivo é outra coisa.

Coleção de traços, fragmentos, cacos de linguagem, esta é a condição coleccional do inconsciente, elocubração sobre lalíngua, como diz Lacan, cujo inconsciente criou esta palavra (mais do que um conceito) em um ato falho, como vocês sabem. Se Lacan inicia seu ensino pela formulação do lema: o inconsciente é estruturado como uma linguagem, terminará transmutando a linguagem em foco neste lema em lalíngua, muito mais próxima de uma coleção de cacos de palavras, o que pode fundamentar uma certa concepção de coletivo.

Jean Oury, em seu seminário de 1984 intitulado “O Coletivo”[2], já sustentava: que todo ato em uma prática clínica da Psicanálise com psicóticos – e podemos pensar isso para o nosso campo da saúde mental – exige a distinção lógica de dois planos, implica essa dualidade de planos: o plano empírico, da ação (que aqui aproximamos da realidade, do eu, das políticas “operacionais” do Estado, das doxas da sociedade e das ilusões da ciência acadêmica, e no qual Oury situa também as demandas imediatas) e o plano que ele chama de transcendental leigo(adjetivo que afasta este termo demasiado filosófico da esfera das reflexões eruditas e o lança no coração da práxis), em que ele situa os princípios, os fundamentos, aquilo que permite justificar as ações, o inconsciente e o desejo.

Mas eu proponho também que o inconsciente é público, e proponho isso como um fundamento conceitual, metodológico, clínico e ético para a nossa presença no espaço das políticas públicas, das instituições, da clínica psicanalítica no campo social e mais recentemente na rua – posto que o estado se tornou inimigo frontal da Reforma, dos loucos, negros, pobres, multigêneros, mulheres como tais, dos drogados, dos indesejáveis sociais e portanto da psicanálise, enfim, nosso inimigo.

Em que sustento isso? Numa determinada maneira de conceber a categoria de público como equivalente a sem qualidades, desprovido dos valores do signo, dos significados compartilhados por grupos sociais – valores e ideais de classe, culturais, étnicos, religiosos, ideológicos, e, last but not least, identitários. As lutas dos movimentos identitários, se guardam todo o seu valor de iniciativa e insurreição política contra a dominação, correm por outro lado o risco de transformarem-se em movimentos de grupo, em torno de significações a priori, e com isso perderem justamente seu valor subversivo, aspirando ao mero exercício do poder contra o qual, de início, se insurgiram. Tornam-se lutas sígnicas, sem causa nem desejo, sem inconsciente político, sem a transversalidade necessária e exigível a toda significância, que dá à luta de classes, de inspiração marxista, por exemplo, sua envergadura científica e verdadeiramente potente em termos de transformação social.

Acabei de atribuir ao marxismo uma envergadura científica. Então precisamos falar em Ciência – e essa é a proposta do Forum Latino-americano de Psicanálise, Ciência e Política, do qual Raul faz parte, tendo estado no Rio o dia todo de 18 de setembro passado para a primeira reunião do Forum, que fará a segunda reunião este ano, espero. O que é a ciência e qual sua relação com a Psicanálise? A ciência, antes de mais nada, não é o que se diz que ela é hoje, ou seja, um conjunto de procedimentos protocolares, passíveis não de verificação mas de prova (evidência) elementar, que tem como pressuposto quase religioso e dogmático que tudo no chamado comportamento tem determinação orgânica? A psiquiatria organicista e a psicologia comportamental apresentam-se arrogante e insustentavelmente como o paradigma da ciência no campo “psi”. Mas suas práticas não são de modo algum científicas, dado seu grau de reducionismo metodológico e de redução conceitual mesmo. Entretanto, vemos muitas vezes os próprios psicanalistas, no afã de se diferenciarem dessas práticas e posições, atribuírem-lhes o título de científicas, afirmando que a psicanálise estaria fora da ciência, além dela, que constituiria um outro campo, e isso é dito com mais arrogância ainda do que aqueles que, de modo metodologicamente impostos tomaram de assalto o terreno científico como seu: a medicina do comportamento, a exigência das práticas “baseadas em evidências”.

Assistimos, desde a década de 80, a um desaparecimento progressivo, a um silenciamento do debate epistemológico. Já perceberam que desde Foucault, Canguilhem, Ariès, Goffmann, Thomas Khun, Popper, Sartre, Bachelard não há mais epistemologia crítica no mundo? A dita ciência, a atividade de pesquisa científico-acadêmica, está livre de regulação, de crítica, de debate, de um Outro social que a barre, que a delimite. Isso a torna refém do capitalismo e, no nosso caso, o que emergiu como um campo que podemos denominar de medicina do comportamento, refém integral das indústrias de psicofármacos, que como vocês devem saber é a segunda indústria do mundo em faturamento, só perdendo para a de armamentos. Metáfora macabra: vivemos, pelo menos no Brasil, a remilitarização da cidade, a criminalização da pobreza, a patologização e a medicalização das questões que lá denominamos psicossociais (loucura, doença mental, uso abusivo de drogas como crack, etc.): as duas indústrias economicamente mais poderosas do mundo é que regem as políticas públicas da área de saúde.

Não podemos, assim, começar qualquer discussão epistemológica e metodológica sobre a cientificidade dessas práticas sem colocar em questão a casamento, a cópula, como disse Lacan, da ciência com o capitalismo, produzindo esse rebento bizarro e monstruoso, esse aleijão conceitual e pragmático que se chama medicina do comportamento. Não é curioso que o que se apresenta à sociedade como “ciência” hoje, inclusive nas revistas semanais de grande alcance popular, seja co-extensivo à área bio-comportamental? Não é curioso que quando se fala em ciência, no nível leigo, social, amplo, não se pense na Física Nuclear, quântica, na Química? Só aquilo que, da chamada ciência, se aplica ao quotidiano, à vida das pessoas – depressão, vícios, obesidade, compulsões diversas, humor, etc. – é que entra em pauta.

Trago um exemplo que considero maravilhoso de um livro que me caiu nas mãos no início do ano passado: A parte e o todo[3]lançado no Brasil em 2016, de Werner Heisenberg, um dos maiores físicos do século XX, pai da Teoria Atômica. Neste livro, ele afirma que a teoria atômica precisou supor o átomo sem poder ter a evidência empírica, experimental, de sua existência. Tem uma passagem genial de um diálogo entre ele sua equipe com uma mulher nervosa, kantiana, Grete Hermann, que o acusa de fazer afirmações sem prova empírica. Os argumentos dele são imperdíveis. Estamos falando do átomo, e de uma das autoridades científicas mais proeminentes do século XX, mas podemos pensar em Freud e o inconsciente como em uma posição bastante homóloga à de Heisenberg. Freud também precisou supor o inconsciente, sem provas empíricas de sua existência.

Curiosamente, um escrito de Karl Popper, o grande epistemólogo do século XX, sobre o racionalismo, no qual ele introduz a dualidade – racionalismo crítico e racionalismo ingênuo ou abrangente, afirma que a posição racionalista crítica em ciência requer a possibilidade de suposições sem provas. A exigência de que só seria aceitável o que tiver sido provado por argumentação e por experiência é não apenas ingênua como insustentável, pois ela própria seria indemonstrável por uma via lógica. Ora, concluímos que Heisenberg e Freud, com suas respectivas suposições sobre o átomo e sobre o inconsciente, estão na via do racionalismo crítico, enquanto que a falsa ciência contemporânea, baseada em evidências, está na contra-mão desta posição rigorosamente científica, situando-se no racionalismo ingênuo ou mesmo no irracionalismo, segundo nada menos do que uma autoridade epistemológica como Popper.

Como resultado disso tudo, não apenas a Psicanálise – embora centralmente ela – mas também toda forma dialética de pensar: marxismo em primeiro lugar, mas também o pensamento fenomenológico e as práticas nele fundamentadas, venham sendo progressivamente esvaziadas nos ambientes acadêmicos, nos cursos de Psicologia, na produção científica dos periódicos e publicações científicas, nos concursos para docentes em universidades públicas, tudo isso comandado pelos interesses do capital.

E, finalmente, o próprio Estado, as políticas públicas, começam a mostrar-se reféns dos mesmos interesses. Na França, como vocês devem saber, o Estado vem impedindo que a Psicanálise seja utilizada, aplicada, no campo da saúde mental pública com os autistas, e portanto as políticas públicas desta área vem excluindo a psicanálise como um recurso, sob a alegação de que ela não demonstra, por evidências científicas, sua eficácia, que ela não se presta a ser avaliada em sua eficácia por procedimentos supostamente científicos. Mas que procedimentos são esses? São os procedimentos da medicina baseada em evidências, que se aplicam aos métodos randomizados de avaliação, que exigem, por exemplo, que os aplicadores do método desconheçam, tanto quanto os sujeitos do experimento, os pacientes, o que estão aplicando, supostamente para que o saber sobre o instrumento não influencie nos efeitos que ele produz, devidos, neste caso, exclusivamente a ele. Imaginemos, então, uma situação na qual um psicanalista, quando submetido a este tipo de avaliação da eficácia de seu método, desconheça que está aplicando a psicanálise, e que os pacientes de determinado serviço de saúde mental igualmente desconheçam radicalmente a que estão se submetendo, e que só os experimentadores-avaliadores saibam de tudo, para que se possa verificar se aquele método, no caso, a psicanálise, é eficaz. Isso valeu no início dos anos 60 para avaliar o efeito de determinados medicamentos, nos Estados Unidos, o que foi inclusive motivado pela questão da talidomida, que usada em mulheres grávidas acabou produzindo má formação fetal em massa nas crianças que estavam sendo geradas. Posso sim imaginar um experimento em que não se saiba que medicamento está sendo aplicado, mas não é possível, cientificamente, que um psicanalista desconheça que aplica a psicanálise, como forma de avaliar se aquela psicanálise que ele aplicaria sem saber que está aplicando (o que faz com que não se possa mais falar, nem de longe, de uma psicanálise, exterminada de saída no método que lhe pretenderia avaliar a eficácia) seria ou não eficaz.

A Reforma Psiquiátrica teve toda a potência que teve no Brasil (digo teve, desculpem-me, mas de fato não tem mais) exatamente porque nunca caiu no engodo identitário. Franco Basaglia era um marxista, e portanto ele conhecia muito bem a exigência metodológica e ética de ter princípios, justificativas, transcendentalidade leiga e conceitual (como assinalamos em relação a Jean Oury). Sabia ele que a loucura só seria suportável no laço social se uma determinada práxis fosse cuidadosa e rigorosamente sustentada em determinados princípios que regem, norteiam, sustentam a ação. Ele não gostava da psicanálise, e tinha razões para isso. Mas disse uma vez que não era nada simples criticar Freud, porque alguém que faz a inflexão que Freud fez na história não pode ser assim tão facilmente criticado, “é preciso considerá-lo”, diz Basaglia.

O louco, em Basaglia, é assimilado ao oprimido (o operário, em Marx) e esta categoria se mantém no estribo estreito do significante, que a amplia transversal e universalmente para além de qualquer signo de individualidade identitária. Não cabe aos operários defenderem seus direitos individuais, tipo “nós, os operários…”, mas fazerem a revolução e subverterem os pólos de dominação no curso da história.

Quando é, portanto, que teremos métodos de avaliação da eficácia “científica” da psicanálise que, por estarem à altura do rigor e da seriedade do que se pode chamar, com propriedade nominal, de Ciência, respeitarão as especificidades do campo que pretendem avaliar?

A Psicanálise é, de todos os saberes e práticas do campo psi, aquela que com mais rigor deriva da ciência. Lacan demonstrou isso no que se chama de seu Doutrinal de Ciência, algo que ele empreendeu não como uma incursão epistemológica, mas como uma consequência que se impôs a ele pelo próprio discurso psicanalítico, uma decorrência da posição discursiva de seu ensino. Ele demonstra ali que a Psicanálise não teria sido sequer pensável sem o advento da ciência, e que o sujeito da psicanálise, o sujeito do inconsciente, o sujeito sobre o qual operamos em psicanálise, como ele diz, não poderia ser outro senão o próprio sujeito da ciência. Diz com isso que a Ciência Moderna, em seu advento, sua fundação por Galileu no século XVII, implica um modo de constituição do sujeito, mas não opera sobre ele, pelo contrário, o foraclui, e que é a psicanálise que o retoma, o resgata do exílio (como faz com o corpo, que fora exilado por Descartes no campo da extensão, como res extensa), através de uma outra forma de exclusão inclusiva, o inconsciente. O inconsciente, portanto, mantém com a verdadeira ciência, com a ciência com C maiúsculo, se assim me permite dizer, a mais estreita relação, a maior afinidade possível, mas não é uma relação de afinidade direta, amena, harmoniosa. A relação do inconsciente com a ciência é tão íntima e intrínseca quanto dificultosa, pois que implica o recalque, a barra do significante, um salto a transpor, um ato, portanto, a ser sustentado, para que ela se coloque apropriadamente no cenário do saber e das práticas.

Assim, nunca haverá acordo sobre isso, e a psicanálise jamais poderá ocupar um lugar central ou mesmo “de aceitação respeitosa e serena” no cenário científico. O mesmo ocorrerá sempre em relação às políticas públicas do Estado. O mesmo ocorrerá na relação da psicanálise com a ordem civilizatória, com a ordem social. Nesse ponto, é preciso dizer que a Psicanálise mantém uma posição não integrável a essas ordens tanto quanto   as pulsões, sujeito, desejo, o inconsciente. Não são categorias localizáveis na realidade positiva, empírica, imediata e compartilhada, mas, por serem categorias que estruturam essa mesma realidade, não cessando de afetá-la, assaltá-la, intervir nela, não a deixarão em sossego, e a recusa do inconsciente por parte da realidade (e aqui podemos traçar uma série de equivalências: da realidade, do eu, da sociedade, do estado) acarretará problemas sempre maiores que sua admissão, que só pode ser parcial. O inconsciente faz retorno, o sujeito fará sintoma, a loucura fará suas irrupções em uma ordem comportamental que ignore o que a ela excede, ultrapassa, escapa, transborda e no entanto a determina. Assim, apesar do triunfo da Religião, como anteviu Lacan e que hoje podemos constatar, não será por outro lado possível eliminar o sujeito e suas incidências na ordem social.

Todo movimento de Reforma Psiquiátrica Brasileira, mas que também existe sob outras formas e denominações que inclusive precederam, fundamentaram e inspiraram a Reforma Psiquiátrica Brasileira, como a Psiquiatria Democrática Italiana (Franco Basaglia), a Psiquiatria de Setor e a Psicoterapia Institucional francesas (François Tosquelles, Lucien Bonnafé, Frantz Fanon, Jean Oury), entre outras, está em posição de ter que se haver com essas mesmas incidências do sujeito. Luta-se contra a lógica manicomial, de exclusão dos loucos, propõem-se formas de inclusão social, redes de atenção, centros de convivência e atividades comunitárias, trabalho assistido, geração de renda, etc., e tudo isso compõe o que há de melhor em termos de uma política pública de saúde mental. Entretanto, se tudo isso não for acompanhado de uma lógica que dê lugar ao que excede a realidade, como dizia eu antes, ao sujeito, ao inconsciente, isso fracassa. No caso das lutas antimanicomiais, o nome desse lugar é loucura.

Podemos dizer, sem risco de proselitismo ou arrogância, que o único discurso, a única praxis que tem condições de dar lugar efetivo à loucura no laço social, que deve ser assim capaz de suportá-la, é a psicanálise. Outros discursos e práticas são, evidentemente, norteados por esse princípio e visam esse fim – a inclusão social do louco, e, dito desta forma, o fazem com mais clareza, contundência e de forma mais explícita do que a Psicanálise. Mas, justamente por lutarem tanto e tão empenhadamente pela inclusão social do louco, deixam de considerar o ponto em que o louco não será inserido, não é inserível, sustenta sua positividade, no sentido foucaultiano, de louco, sua irredutibilidade, que faz com que ele nunca esteja em sintonia com o laço social civilizatório, nunca entre suficientemente nas práticas de trabalho e amor socialmente constituídas. Algum grau de desinserção é sempre, estruturalmente, ineliminável quando tratamos da loucura. Mas para operar com isso é preciso admitir o inconsciente, o sujeito, o desejo, o gozo e a pulsão.

O sujeito é sem qualidades, e isso é cristalinamente formalizado por Jean-Claude Milner em sua Obra Clara, título que se refere, obviamente, à obra de Lacan (que é, portanto, clara). O que é público requer permanecer no plano sem qualidades, despido da valoração significativa do privado, categoria classicamente oposta à de público e que, em nossa leitura e proposta, constitui o lugar do privilégio, palavra que em sua morfo-etimologia quer dizer a lei(légis) do privado (privi).

Tem-se a tendência de considerar a psicanálise uma prática privada, e do privado, e de denominar o lugar em que a exercemos de consultório privado, ou particular. Particular no sentido de Aristóteles ele até pode ser, de algum modo, mas no sentido sociológico não o é de modo algum. Diana Rabinovich, em uma encontro memorável realizado em nosso programa de pós-graduação em Psicanálise da UERJ em 2011 e jamais repetido chamado CONLAPSA, fez uma afirmação, obviamente sem que eu soubesse que ela pensava isso e menos ainda que ela soubesse que eu vinha pensando assim, segundo a qual o psicanalista deve distinguir rigorosamente entre o privado e o íntimo. Nossa práxis é do e com o íntimo, mas não do e com o privado.

Nossa tarefa é inocular o íntimo no público, destituindo o mito de que só no espaço privado é que podemos fazer a práxis do íntimo.

 

[1] Bleger, a este respeito, chega ao cúmulo de propor a substituição do termo (e portanto do conceito) de narcisismo – que ele considera “demasiado teórico, metapsicológico e distanciado da clínica” – por estruturas sinciciais ou sincretismo, segundo ele mais experienciais e articulados com o plano das relações de objeto, na dimensão simbiótica. É no mínimo divertido observar que, para alguém que pretende apontar o suposto “teoricismo” de Freud, afastado da “experiência clínica” esses termos são muito mais difíceis, verbalmente muito mais complicados do que narcisismo, termo extraído por Freud da mitologia, portanto da cultura corrente, seguindo a indefectível vocação de Freud (e de Lacan, por incrível que pareça), de usar o verbo comumpara introduzir o senso incomum, já que a língua do inconsciente não poderia ser erudita. Cf. Bleger, J. in Actas psicológicas y psiquiactricas de America Latina.

[2] OURY, J. – Le collectif – Le séminaire de Sainte-Anne, Le champ social, 2005.

[3] HEINSENBERG, W. – A parte e o todo (Der Teil und das Ganze)Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 1996 (6ª edição de setembro de 2016)

 

Referências de imagens (por Psicanalistas pela Democracia).

Psicanálise na Praça Roosevelt. Recuperado em 23/07/18. Disponível em : http://www.radiosatfm.com.br/blogue/grupo-oferece-consultas-de-psicanalise-gratuitas-na-praca-roosevelt/

Fragmentos do Inconsciente. Artista: Elisabeth Sekulic. Recuparado em 23/07/2018 . Disponível em: https://paranaportal.uol.com.br/gente/agenda/mostra-retrata-o-inconsciente-coletivo-atraves-de-manchas/

Freud’ couch. Recuperado em 23/07/2018. Disponível em: https://www.artfund.org/whats-on/museums-and-galleries/freud-museum

Luciano Elia  é psicanalista, professor titular de Psicanálise e coordenador do Programa de Mestrado Profissional em Psicanálise e Políticas Públicas do Instituto de Psicologia da UERJ, membro do Laço Analítico/Escola de Psicanálise, Sede do Rio de Janeiro.

 

Redação

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  1. Gyorgy Lukács

    ‘PARA UM ONTOLOGIA DO SER SOCIAL I’ (Boitempo Editorial – 2012) do autor em ref.

    traz uma enorme contribuição para o debate em questão. sobretudo no que diz respeito ao mencionado “silenciamento progressivo, desaparecimento do debate epistemológico…”.

    acho.

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