Qual democracia? A de Justo Veríssimo?, por Jorge Alexandre Neves

Qual democracia? A de Justo Veríssimo?

por Jorge Alexandre Neves

Quando pensamos numa democracia, o que nos vem à mente? Do ponto de vista material, concreto, penso, de imediato, numa Constituição democrática, outorgada após um processo conduzido por agentes eleitos pelo voto popular. O Brasil ancorou sua “Nova República” na “Constituição Cidadã” de 1988 e ela vinha entregando o que prometeu. Após um início difícil, a partir de meados da década de 1990 e, principalmente, a partir de meados da década de 2000, os objetivos de bem-estar social e de universalização da justiça presentes na Constituição de 1988 começaram a se realizar de forma significativa. O Brasil estava se tornando um país justo e civilizado!

A partir de 2013, contudo, o país entrou numa crise política que, muito rapidamente, se revelou um processo de ataque à norma e ao espírito presentes na CF-88. Do ponto de vista da norma, membros do estamento jurídico (ex.: o então juiz Sérgio Moro) e, posteriormente, do estamento militar (ex.: o então comandante do exército general Villas Boas) começaram a atentar contra a ordem constitucional. Esse ataque tem se prolongado e obtido forte apoio parlamentar. Entre os parlamentares que participam do estupro à CF-88 (como a tentativa de, a partir de PL ou de PEC tentar mudar uma cláusula pétrea, ao possibilitar a prisão após condenação em segunda instância) estão muitos membros do chamado “centro democrático”.

Ainda mais intenso e violento do que o ataque a elementos normativos da CF-88 tem sido a ofensiva contra o seu espírito. Nossa Constituição foi pensada, elaborada e promulgada com o objetivo de nos conduzir por um processo civilizatório que nos afastaria da “barbárie da desigualdade”, na definição de Leandro Karnal. (1) E o que estamos vivendo hoje, principalmente a partir do golpe estamental de 2016? (2) O mais brutal e veloz processo de degradação social da história recente do Brasil!

Há poucos meses, o economista Marcelo Neri decretou que “o Brasil vive o mais longo ciclo de aumento da desigualdade de sua história”. (3) Se olhamos com atenção os dados compilados por ele (4), vemos que este processo está totalmente associado às políticas neoliberais (e não apenas à elevação do desemprego, como ele parece acreditar), tanto que o desemprego está em queda (lenta, mas fática), e a desigualdade continua a subir. (5)

O desemprego começou a recuar lentamente, mas a desigualdade e a pobreza continuam a crescer (ao contrário do que a narrativa de Neri nos faria esperar). Por que isso está acontecendo? Por causa do terrível processo de degradação do mercado de trabalho causado tanto pelo crescimento da informalidade quanto pela destruição da estrutura normativa de proteção ao trabalhador que existia no Brasil. O desemprego não é o único – nem mesmo o maior – fator causador do aumento da desigualdade e da pobreza. (6) O grande vilão é o neoliberalismo!

Se Leandro Karnal chamou o aumento da desigualdade de renda promovido pela ditadura militar de “barbárie”, como devemos chamar o que está ocorrendo hoje? Observe-se que, de 1960 a 1970, o coeficiente de Gini da concentração de renda no Brasil (7) aumentou 4,6 pontos (se trabalhamos com uma escala de 0 a 100). (8) Se considerarmos que todo este aumento ocorreu entre 1964 e 1970, tem-se uma média anual de elevação de 0,77 ponto no coeficiente de Gini. Hoje, se observarmos o processo de crescimento da desigualdade desde o início de 2015 até o segundo trimestre de 2019, vemos que a média do crescimento do coeficiente de Gini tem sido de 0,83 ponto. (9) Portanto, ainda maior do que aquele ocorrido durante a ditadura militar!

O crescimento da pobreza e da extrema pobreza (ou miséria), por sua vez, tem sido ainda mais chocante. A primeira cresceu cerca de 15%, desde 2015, ao passo que a segunda teve um crescimento absurdo de 40%. (10) Os mais pobres só têm perdido renda desde 2015 (11), ao passo que os mais ricos têm tido elevações de ganhos, e esse processo tem sido mantido inalterado durante o governo Bolsonaro. (12)

As políticas públicas que têm destruído o “espírito cidadão” da CF-88 tiveram início bem antes do governo Bolsonaro. No que diz respeito a suas ações mais duradouras – ou seja, aquelas que têm sido promovidas a partir de mudanças na legislação, principalmente na norma constitucional – as políticas neoliberais têm sido realizadas a partir de uma clara liderança do chamado “centro democrático”. A reforma trabalhista já teve um terrível impacto negativo, levando a uma aceleração no processo de precarização do mercado de trabalho. A reforma previdenciária (que foi, sim, regressiva), por sua vez, ainda irá produzir seus efeitos deletérios.

Quando vejo membros do “centro democrático” e seus porta-vozes da mídia tradicional defendendo que o Brasil precisa de um pacto pela democracia, fico me perguntando: qual democracia? A de Justo Veríssimo, aquele personagem de Chico Anysio que queria erradicar a pobreza exterminando todos os pobres? Quem Rodrigo Maia acha que engana com sua comissão de paquitas e menudos? Jair Bolsonaro está longe de ser o único obstáculo para a reconstrução da democracia no Brasil!

Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997. Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

(1) Utilizando as palavras de Leandro Karnal, ao se referir ao que, para ele, seria uma das marcas mais deletérias da ditadura militar no Brasil (ver: https://www.youtube.com/watch?v=Hv7AcfUKri0).

(2) Como comentei há pouco mais de um ano (https://jornalggn.com.br/politicas-sociais/a-superacao-da-pobreza/), na verdade, esse processo tem início com a rendição do governo Dilma ao neoliberalismo (num esforço final para manter a sobrevivência do seu governo), com a nomeação de Joaquim Levy, em 2015. O neoliberalismo é o grande promotor da barbárie no mundo atual!

(3) https://oglobo.globo.com/economia/brasil-vive-ciclo-mais-longo-de-aumento-da-desigualdade-23881027

(4)  https://jornalggn.com.br/wp-content/uploads/2019/11/desigualdade-do-crescimento-inclusivo-a-recessao-excludente-por-marcelo-neri-a-escalada-da-desigualdade-marcelo-neri-fgv-social.pdf.

(5) Em outra coluna aqui do GGN (https://jornalggn.com.br/artigos/portugal-socialdemocracia-x-neoliberalismo-por-jorge-alexandre-neves/), mostro o caso espanhol (em contraste com o português), país no qual a economia vinha crescendo de forma vigorosa, com significativa queda do desemprego, mas os salários vinham despencando, elevando assim a desigualdade. Mais uma evidência de que o desemprego não é um bom candidato para ser a grande causa da elevação da desigualdade.

(6) Como já ressaltei antes (https://jornalggn.com.br/politicas-sociais/a-superacao-da-pobreza/), estudos de Sergei Soares e seus colaboradores (http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_bolsafamilia_vol2.pdf) mostraram como – antes da volta superlativa do neoliberalismo – o governo federal fazia uso das políticas de transferência de renda para funcionar como força anticíclica em momentos de queda do crescimento econômico, evitando, assim, a elevação da pobreza e da desigualdade. Hoje, vivemos o inverso! O governo Bolsonaro fez um truque ilusionista para fazer parecer que dá prioridade à área social, com o 13º do Bolsa Família. Todavia, isso dado à custa da não elevação do valor anual do benefício – congelamento ocorrido pela primeira vez desde sua criação – e da redução de quase 8% no número de famílias beneficiadas ao longo do ano, em particular no segundo semestre, com o corte de 1.168.451 famílias, de modo geral, sem razão justificada (https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/12/25/bolsa-familia-13-renda-cortes-natal-fome-maceio-alagoas.htm). As perspectivas para o próximo ano são as piores possíveis, visto que o orçamento foi aprovado com uma redução de quase 8% no orçamento do Bolsa Família, além de cortes ainda mais profundos em outros programas sociais (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/12/bolsonaro-faz-cortes-nas-areas-social-cultural-e-trabalhista.shtml).

(7) https://www.cps.fgv.br/cps/pesquisas/Politicas_sociais_alunos/2012/Site/Gini.pdf.

(8) O coeficiente de Gini tanto pode ser trabalho em uma escala de 0 a 1 quanto em uma escala de 0 a 100.

(9) Ver: https://jornalggn.com.br/wp-content/uploads/2019/11/desigualdade-do-crescimento-inclusivo-a-recessao-excludente-por-marcelo-neri-a-escalada-da-desigualdade-marcelo-neri-fgv-social.pdf. Observe-se que, embora ambas as mensurações (a da variação entre 1960 e 1970, citada na nota 7 e esta) tenham sido feitas por Marcelo Neri, as metodologias são diferentes. Isso impossibilita uma comparação dos valores absolutos das duas mensurações, mas não inviabiliza comparações nas mudanças relativas.

(10) https://observatoriocrianca.org.br/cenario-infancia/temas/renda/582-populacao-em-situacao-de-pobreza-e-extrema-pobreza?filters=1,182.

https://veja.abril.com.br/economia/brasil-alcanca-recorde-de-135-milhoes-de-miseraveis-aponta-ibge/.

(11) https://jornalggn.com.br/wp-content/uploads/2019/11/desigualdade-do-crescimento-inclusivo-a-recessao-excludente-por-marcelo-neri-a-escalada-da-desigualdade-marcelo-neri-fgv-social.pdf.

(12) https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/12/18/rendimento-brasil-2019.htm

Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

Jorge Alexandre Neves

Jorge Alexandre Barbosa Neves professor Titular de Sociologia da UFMG, Ph.D. pela Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Professor Visitante da Universidade do Texas-Austin, também nos EUA, e da Universidad del Norte, na Colômbia.

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  • "Centro" é um eufemismo para direita. O termo "democrático", no caso, é uma falácia empregada com o intuito de que a tal direita se apresente mais limpinha e cheirosa perante o eleitorado, dissimulando assim a sujeira de sua ditadura burguesa.

  • É preciso perceber internalizar e difundir a realidade muito bem colocada pelo autor: "O neoliberalismo é o grande promotor da barbárie no mundo atual!".
    Quanto a isso não se pode contemporizar, conciliar, compor, negociar, ou 'qualquer outro nome que se possa dar à cegueira ou à covardia'.

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