Quando um não gesto diz mais que o gesto!, por Rômulo Moreira

Eram vinte os pilotos perfilhados no grid de largada, e seis deles, nada obstante estarem usando uma camiseta alusiva ao protesto, não se ajoelharam no momento de execução do hino, como os demais o fizeram (a mais).

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Quando um não gesto diz mais que o gesto!

por Rômulo Moreira

Ontem (6), no campeonato mundial de Fórmula 1, no Grande Prêmio da Áustria, catorze pilotos resolveram ficar de joelhos enquanto tocava o hino. O gesto, comandado por Lewis Hamilton (o único piloto negro da competição), foi realizado como um protesto contra o racismo, lembrando a morte de George Floyd, assassinado por um policial branco norte-americano, que se ajoelhou covardemente sobre o pescoço de Floyd, durante quase nove minutos, depois dele já estar imobilizado e indefeso, fato ocorrido na cidade de Minneapolis, nos Estados Unidos, no dia 25 de maio deste ano.

Eram vinte os pilotos perfilhados no grid de largada, e seis deles, nada obstante estarem usando uma camiseta alusiva ao protesto, não se ajoelharam no momento de execução do hino, como os demais o fizeram (a mais).[1]

Este gesto de se ajoelhar, tal como fez o policial assassino sobre o cidadão negro norte-americano, inclusive já havia se notabilizado pelo quarterback Colin Kaepernick, em 2016, na National Football League (NFL), a liga esportiva profissional de futebol americano dos Estados Unidos.

Como uma justificativa para os não gestos dos seis pilotos, a Grand Prix Drivers Association (Associação de Pilotos de Grandes Prêmios), que representa os interesses dos pilotos da Fórmula 1, afirmou, em nota, que “todos os vinte pilotos estão unidos, junto com seus times, contra o racismo e o preconceito, acatando os princípios de diversidade, igualdade e inclusão, e apoiando o compromisso da Fórmula 1 com eles.”

Segundo a nota, “os pilotos expressarão seu apoio a essa causa ao público no domingo, antes da corrida, reconhecendo e respeitando que cada indivíduo tem a liberdade de expressar seu apoio pelo fim do racismo da sua própria maneira e estará livre para escolher como fazê-lo.”[2]

Bem, decerto que cada um escolhe a maneira que se lhe parece a mais acertada e adequada melhor para se posicionar acerca de um determinado assunto, tratando-se de uma questão posta tão fora de qualquer dúvida que nem sequer precisaria constar mesmo na referida nota.

O ponto, no entanto, é que houve os gestos (simbólicos) da maioria dos pilotos (mais da metade!); e, por outro lado, houve os não gestos, afinal seis deles ficaram impassivelmente em pé.

Portanto, houve, induvidosamente, um não gesto, e não se tratou, evidentemente, do ato falho de que fala Freud.[3] Não, e não se tratam de vermes, como costumam ser os racistas em geral. Não é disso que se trata, em definitivo.

Houve, sim, com o não gesto uma falta de solidariedade (o comum) para com uma causa justíssima, urgente, legítima e, afinal de contas, de todos e de todas!

Ora, se “é na fala que se acha o germe de todas as modificações, e cada uma delas é lançada, a princípio, por certo número de indivíduos, antes de entrar em uso”, não há dúvidas de que, parafraseando Saussure, também é no gesto (e, com mais razão, no não gesto) que deve estar o germe da modificação de uma estrutura perversa e profundamente arraigada no mundo: o racismo![4]

Foi Bauman que já nos advertiu: “são as ações que a pessoa precisa escolher, ações que a pessoa escolheu dentre outras que podia escolher mas que não escolheu, que é preciso calcular, medir e avaliar.” (ele mesmo grifa). E, em continuação, diz: “a avaliação é parte indispensável da escolha, da tomada de decisão; é necessidade sentida por humanos como tomadores de decisão, necessidade sobre a qual raramente refletem os que agem apenas por hábito.”[5]

É preciso, ainda que se esteja em ambiente pouco propício para determinados gestos – por exemplo, em um ambiente racista, como é o do esporte em geral, e o da Fórmula 1, em especial[6] – é preciso ter “a coragem de um exemplo, pois a coragem é tão contagiosa quanto o medo.”[7]

O gesto não deixa de ser um signo (tal como o não gesto também acaba por ser) e, como tal, “é algo que está no lugar de alguma coisa para alguém” (Peirce). E, por conseguinte, qualquer coisa pode ser um signo, inclusive um não gesto. Afinal, “o objeto que causa indiferença para alguém pode ter um profundo significado para outra pessoa.”[8]

Este é o ponto: o significado do significante!

Desde há muito se sabe, afinal de contas, que “a ilusória exclusividade da língua, como forma de linguagem e meio de comunicação privilegiados, é muito intensamente devida a um condicionamento histórico que nos levou à crença de que as únicas formas de conhecimento de saber e de interpretação do mundo são aquelas veiculadas pela língua, na sua manifestação como linguagem verbal ou escrita.”[9]

Mas, na verdade, e como ensina a lição mais básica sobre a semiótica, “existe simultaneamente uma enorme variedade de outras linguagens que também se constituem em sistemas sociais e históricos de representação do mundo.”[10]

Portanto, os não gestos da meia dúzia, falaram mais dos que os gestos dos catorze pilotos de ontem, Hamilton à frente.

Post escriptum (ou antes que eu me esqueça): O presidente Jair Bolsonaro ampliou nesta segunda-feira (6) os vetos à legislação sobre uso de máscaras durante a pandemia do novo coronavírus. Pelo texto publicado no Diário Oficial, deixa de ser obrigatório o uso de máscaras em presídios. Agora, também fica de fora o artigo da lei, segundo o qual era “obrigatório o uso de máscaras de proteção individual nos estabelecimentos prisionais e nos estabelecimentos de cumprimento de medidas socioeducativas.” Ou seja, mais um passo largo para a tragédia anunciada.[11]

Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS

[1] Os seis pilotos que se recusaram a fazer genuflexão foram Max Verstappen, Antonio Giovinazzi, Carlos Sainz, Charles Leclerc, Kimi Raikkonen e Daniil Kvyat.

[2] Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/f1/ultimas-noticias/2020/07/05/protesto-antirracismo—formula-1—austria.htm. Acesso em 06 de julho de 2020.

[3] Disponível em: https://jornalggn.com.br/artigos/o-chile-o-equador-e-a-america-do-sul-o-ato-falho-da-comentarista-por-romulo-moreira/. Acesso em 06 de julho de 2020.

[4] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2012, p. 141.

[5] BAUMAN, Zygmunt. Ética Pós-Moderna. São Paulo: Paulus, 1997, p. 9.

[6] Quantos negros, afinal, há no circuito da Fórmula 1? E, mesmo no futebol, como são eles tratados, especialmente quando eventualmente erram uma jogada? Vejam, por todos, o trágico exemplo do goleiro Barbosinha, execrado para sempre após um lance infeliz na final da Copa do Mundo de 1950, no Maracanã.

[7] SONTAG, Susan. Ao mesmo tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 192.

[8] MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2014, pp. 116-117.

[9]SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012, p. 15.

[10]SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012, p. 16.

[11] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/07/bolsonaro-amplia-vetos-a-uso-de-mascaras-que-agora-deixam-de-ser-obrigatorias-em-prisoes.shtml. Acesso em 05 de julho de 2020.

Redação

4 Comentários

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  1. Não entendi o artigo. Faltam informações e explicações. O que estariam fazendo os seis no local do protesto, com camisetas que o apoiavam? Não haveria alguma coisa aí que os jornalistas deveriam informar antes de crucificar os seis?

  2. Colin Kaepernick se ajoelhava durante a execução do hino dos EUA para mostrar que os pretos daquele país continuam sendo tratados como escravos a quem a polícia branca pode dar a vida ou a morte. Passou a ser apoiado e acompanhado no gesto por outros jogadores pretos da NFL. Quando os ataques a Kaepernick se intensificaram, qualquer jogador não preto que se ajoelhasse ao lado dos jogadores pretos era interpretado como um gesto de respeito e apoio à causa. O gesto, agora repetido pelos pilotos da F-1, parece perder a força e se tornar banal. Diante de qual bandeira de um país que oprime uma parte considerável de sua população eles estão se ajoelhando ou mantendo-se impassivelmente de pé? Bizarro.

  3. Existe um jogo politico de conformidade com a maioria. Não preciso me ajoelhar para mostrar solidariedade.
    E se nao quero mostrar solidariedade, tenho todo o direito de faze-lo.
    Talvez o ato de ajoelhar carrega toda uma simbologia que eu nao concorde.
    AJOELHA QUEM QUER.

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