Remove, derruba ou segura a estátua? Por Heloisa Pires Lima

Feitas para durar, estátuas são argumentos culturais dispostos nos logradouros. Mas, há algo errático nelas. Todavia, enxergar racionalidades colonialistas não é fácil

Manuel de Borba Gato, no século 18, foi responsável por caçar indígenas e escravizá-los utilizando todo tipo de terror. | Foto: Reprodução

do Portal Geledés

Por Heloisa Pires Lima*

A questão identitária gera embates no espaço público a toda hora. É o caso das estátuas derrubadas, em série, por todo lado. Mas, o que significa destituir um objeto inanimado? 

Para entender o surto, comece não sendo pré-saussureano. Concordas que referências são códigos, signos aleatórios que adquirem valor, apenas num sistema de relações. Isto quer dizer que os significados atribuídos à obra podem variar, acrescentar e apagar outros tantos adquiridos ao longo da vida da efígie. Tais conteúdos não são verdades em si mesmas. Da mesma forma, quem os interpreta está posicionado num campo de poder. A argumentação eleita se sustenta por alguma eficácia intrínseca ao instante. Isto tudo para perceber instantes no dinamismo que altera significados prevalentes. Meu interesse aqui, no entanto, é o gesto expresso na ira contra a representação. Me parece ser assim como passar diante do esteticamente valorizado quadro de um tio odiento, em silêncio e engolindo a saliva até o dia de pôr fogo no quadro. No quadro não, na estátua. Vale, portanto, explorar um pouco mais, sobre a gota d´água. 

Alguns fotogramas de um instante

As forças políticas em torno da noção democracia, e respectiva cidadania perderam adeptos para o produto crocante dos nacionalismos que levaram à ascensão de partidos populistas como fenômeno internacional da última década. O processo acirrou embates identitários. Sobretudo, a bandeira do racismo hasteadas nessas vitórias. 

Um segundo fotograma pode reportar o presidente negro. Não o do Monteiro Lobato mas, Barack Obama. Eleito em 2009, o acontecimento mexeu com o imaginário mundial pela mobilidade mais inédita; o acesso negro ao poder pelo alto posto e, na nação, até então, mais poderosa do mundo. É costume a excecionalidade transformar, de imediato, Barack Obama no herói ou o príncipe dos contos de fadas em sua jornada superadora de desafios. Mas, divirja pondo o foco no estabelecimento de um novo contrato social entre cidadãos norte-americanos e não somente afro-americanos. Pois aquela eleição operou o lapso de segundo antirracista, propriamente dito. Afinal, não basta ser contra o racismo e sim agir, se opor, se posicionar, para acabar com ele. Ser neutro é ser conivente. 

O constructo da alienação patologizante proposto pelo martiniquense Franz Fanon considera o racismo a principal expressão das estruturas mentais colonizadas. No entanto, se aquele pensamento enfatiza a alienação negra como alicerce do atraso na luta anticolonial proponho, como exercício, pensar a alienação não negra. E, relacioná-la ao processo norte-americano atentando para a virada histórica de Obama. O caso expõe o quanto o Brasil deixa o racismo correr solto. A maioria dos demais segmentos populacionais não marca presença nas causas negras. Esse não “tamo junto” é o contrário da eficácia assegurada no pleito vitorioso de Barack Obama; aquela que realizou a inversão maioria-minoria vinculada aos acessos à espaços de poder. A diminuição do racismo como parceria estratégica orientada para uma mudança, a quebra de um ciclo de atraso destravando o potencial represado da nação cuja alta tecnologia para o convívio social exigiu acertos no contrato.   

Outro fotograma imprescindível de nossos dias é a pandemia patrocinada pela Covid-19. Compare duas monarquias constitucionais, Suécia, que tinha uma extrema direita em ascensão e, a centro esquerda Nova Zelândia. A primeira, retrato fino do “morra quem tiver que morrer”. Já a segunda, do preservar vidas implicado à agilidade para salvar a economia. Deixar morrer uma infinidade de cidadãos parecendo priorizar a economia mata o humanismo e extermina a humanidade. 

O diferencial das gestões, onde elas posicionaram o humano na pandemia, mais o pacto humanista da sociedade norte americana hegemonicamente racista na eleição de Obama e a postura desumanizada como arma poderosa amarram os fotogramas selecionados, e serão bases para pensar as estátuas. 

Estátuas paulistas

Vale revisitar o caso paulista e os marcos mais oficiais no município: 1) Monumento às bandeiras exalta a colonização 2) Monumento aos heróis da travessia do Atlântico, presente de Mussolini que homenageia aviadores italianos 3) Monumento ao Anhanguera, aquele que escravizou centenas de indígenas nativos roubando-lhes o ouro 4) Duque de Caxias, quando então barão fez o acordo traiçoeiro que matou centenas de lanceiros negros na guerra dos Farrapos no sul do país 5) Pedro Álvares Cabral, o invasor 6) Borba Gato, escravizador mor. de nativos 6) Glória aos fundadores da cidade, cuja figura representando São Paulo, esmaga indígenas, 7) Carlos Gomes 8)Camões, 9)Dante Alighieri, 10) Goethe, 11) Mário de Andrade, 12) Chopin. Dentre os representantes da memória negra:1) Luiz Gama 2) Mãe Preta, comemoração do 13 de maio, onde a ama amamenta uma criança branca. 

Imagine alguma equalização. Candidatos negros, não faltariam: Tebas, o construtor da Sé, Benjamin de Oliveira o artista fenomenal que chegou com a luz na cidade, o geógrafo Milton Santos, Carolina Maria de Jesus, o soldado negro Chaguinhas, a filósofa Sueli Carneiro como propõe Rosane Borges, enfim, de área em área há simbologias para superar invisibilidades crônicas. Embora, uma ação pedagógica distribuidora de concepções sobre o município, medidas cautelares seriam necessárias. Uma representatividade não estática e limitada aos recorrentes lugares negros, o ponto de vista na abordagem e etc. Mesmo assim, administrar equidade não seria suficiente porque inversões culturais acontecem, mas, enfrentam poderosas tradições. 

Se cada escultura evoca e atualiza intencionalidades, o conjunto bandeirante, confere sentido à mitologia paulista forjada na virada dos séculos XIX – XX. É a imagem do empreendedorismo alvejado do massacre de águas, minérios, plantas e, gentes. Sobretudo, de indígenas e quilombolas do caminho. No detalhe, o famoso Borba Gato, parecendo inofensivo e motivo de muitas anedotas, foi inaugurado em 1963, porta da ditadura militar cujo braço paulista foi nomeado Operação Bandeirante. E assim, os bandeirantes em estátuas, nomes de ruas, praças e palácios não deixam esquecer quem é que manda no fornecimento de elementos para o imaginário. Conceber São Paulo é naturalizar bandeirantismos sendo essa retórica apenas uma versão da história. Ela permanece eficaz enquanto argumento cultural. O narrador persuasivo insiste no mesmo ponto de vista assim como a audiência. 

Argumentos culturais erigidos em praça pública

Feitas para durar, estátuas são argumentos culturais dispostos nos logradouros. Mas, há algo errático nelas. Todavia, enxergar racionalidades colonialistas não é fácil pois soterradas em senso comum solidificado. Se o racismo encobre e dificulta descolonizar mentes, o bom convívio com essa prática é o grande impedidor do basta coletivo como instância expressiva da colonização- descolonização das mentes. Em torno dos dinâmicos sentidos, gravitam ou organizam-se estruturas sociais. Ditadores adoram erigir monumentos de si mesmo até o ladeira abaixo das peças propagandeadas. Também supor que se tivéssemos estátuas de Hitler na praça, certamente segmentos da população exigiriam que desaparecessem do recinto compartilhado. Não por quererem o apagamento da história e sim pelo endosso de ideias e ações que a homenagem conserva. Portanto, retirar estátuas ou trocar nomes condecorados reaviva a história. Remover ou derrubar? O primeiro adianta e evita o segundo, mas, sem o segundo não haveria o primeiro. 

A problematização mundial sobre as estátuas coincidiu com o assassinato animalesco de George Perry FloydJr, em Minneapolis. A ocorrência demarcou para americanos e americanas de múltiplas identidades, o quanto a maioria significativa da população se colocava como neutra diante da diferenciação cidadã. No caso, a negra. A premissa – o pouco que eu estou fazendo – ocupou as ruas por semanas, desmanchando a eficácia do não é comigo como degrau do foi sempre assim. A reação massiva e de alongada duração fez sentido para muitas sociedades mundo a fora. No Brasil, a participação (ao menos a visibilidade sobre ela) foi baixa e se extraviou em outras pautas, embora a polícia, aqui, mate além de homens maduros, crianças estudando dentro de casa. Demonstra, portanto, que o pacto colonialista prevalece agindo em todas as searas do cotidiano brasileiro. Um mínimo de poder negro faz com que se mire a cabeça como ocorreu com a parlamentar Marielle Franco. Os indicadores do genocídio negro não planejam mudanças. O livro de um autor racista defensor de uma ku klux kan, que pregou contra o nascimento de crianças negras é tolerado. Para a morte de gurizadas por PMs o foco sobre comerciantes, ou seja, civis que os contratam para fazer “a segurança” e a “limpeza”. não entra em pauta. Portanto, repactuar a vida passa pelo imaginário e suas camadas de crenças e valores assentados que podem ser mantidos, derrubados ou erigidos a qualquer hora. Mas, não pela culpa ou empatia piegas momentânea, parcial no aspecto identitário e sim pelo modo perene de compreender a cidadania no espaço público.  

*Heloisa Pires Lima é Drª em Antropologia Social cujo foco em seus estudos são as representações culturais.  

Este artigo é uma republicação e não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN.

Redação

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