Resiliência emocional em tempos de Covid-19: Reflexões
por Ana Bautzer
“A alma guarda
O que a mente tenta esquecer”
(Negro Drama- Racionais)
Em 2017 o Institute for Health Metrics and Evaluation categorizou em seu estudo Global Burden of Disease (GBD) que aproximadamente 970 milhões de pessoas sofriam de algum problema mental e/ou uso de substância- quase 13% da população mundial. As doenças de maior prevalência são a depressão- 3,4% e a ansiedade com 3,8% [1]. Os dados da GBD do Brasil ,coletados em 2017, trazem a ansiedade e a depressão como terceira e quarta causa de incapacidade, respectivamente. [2,3]
A pandemia e o necessário isolamento social do COVID-19 surge nesse cenário, e o necessário isolamento social realizado na maior parte dos países tende em paralelo a reforçar a tendência de adoecimento mental a curto e longo prazos.
A comunidade psiquiátrica mundial já está alerta diante desse cenário- em Webinar promovido em 9 de abril, a United for Global Mental Health, relata um claro aumento do quadros de ansiedade e depressão na população em geral, com maior incidência nos profissionais de linha de frente e em pessoas já portadoras de alguma doença mental. Também fazem parte do perfil de maior vulnerabilidade crianças, mulheres e aqueles que estão sofrendo com significativas perdas financeiras e/ou patrimoniais. [4] Relacionado a esse contexto segue uma crescente preocupação com o possível aumento nas taxas de suicídio- perdas financeiras, aumento no consumo de substâncias e solidão são fatores de risco reconhecidos- e a necessidade de medidas preventivas para evitar essa tendência. [5]
Em recente trabalho realizado na China e publicado pela British Medical Journal, pesquisadores chineses realizaram um levantamento nacional do acometimento de problemas psicológicos na população durante a pandemia: 35% dos pesquisados relatou algum problema emocional (ansiedade e depressão) e houve um maior acometimento em mulheres (maior risco de desenvolvimento de transtorno de estresse pós traumático),adultos jovens entre 18- 30 anos (teriam maior acesso a informações com diversos meios, com maior possibilidade estímulos que desencadeiam o estresse) e idosos acima de 60 anos. [6]
Paralelo a esses dados de aumento no adoecimento mental durante a atual pandemia, há diversos trabalhos desenvolvidos em contextos de isolamento social secundários a epidemias, como o de SARS de 2013 na Ásia, que apontaram sequelas emocionais também a longo prazo, com quadros de ansiedade, depressão e de Estresse Pós traumático mesmo após 3 anos do término da epidemia [6]
Crianças e adolescentes constituem uns dos grupo de maior preocupação: além do impacto à saúde física (maior tempo de inatividade, maior tempo de telas, alterações no padrão do sono e dieta mais empobrecida) há também um preocupante impacto na saúde emocional- a falta de contato social com colegas de escola, o medo de ser infectado, o possível impacto financeiro na renda familiar e o tédio podem ter efeitos mais duradouros nessa população, com relatos inclusive de maior vulnerabilidade para desenvolver o Transtorno de Estresse Pós Traumático (TEPT).[7]
Como entender esse aumento da fragilidade emocional? De acordo com a teoria do Sistema Imunológico- Comportamental ( Behavioral Immune System)- as pessoas estão mais propensas a desenvolver emoções negativas e avaliações cognitivas negativas para a própria proteção. Frente a uma potencial ameaça de doença, tendemos a apresentar comportamentos evitativos e seguir as normas sociais estritamente.[11]
Segundo a Teoria do Estresse e do Risco Percebido, uma emergência de saúde pública tende a gerar mais emoções negativas e afetar a avaliação cognitiva das situações. Essa emoções negativas diminuem o nosso risco em contrair o vírus, mas se sustentadas em longo prazo sem nenhuma intervenção como as propostas em atual texto tendem a afetar o sistema imune e desregular o mecanismo fisiológico normal. [11]
A explicação fisiológica para isso é o acionamento crônico do Eixo Hipotálamo- Pituitária- Adrenal, com um aumento persistente de produção de glucocorticóides cortisol e DHEA (Desidroepiandrosterona) pela adrenal.[12] O cortisol realiza alterações agudas em nosso organismo para aumentar nossas chances de sobrevivência, mas se produzido cronicamente suprime o sistema imunológico, aumenta a vulnerabilidade para hipertensão, ansiedade, depressão e doenças cardiocirculatórias. [12]
Há também uma crescente preocupação com a saúde emocional dos trabalhadores da linha de frente porque além de haver um impacto no bem estar desse individuo, já se sabe que a exaustão e estresse crônico afetam também a capacidade técnica deles, aumentando o risco de falhas nos procedimentos realizados.
Nesse cenário preocupante para a saúde mental da população, é estratégico e necessário adotarmos medidas que reforcem nossa resiliência e capacidade de recuperação. Esses dois conceitos são pilares da prática de atendimento da psiquiatria. São paradigmas que trazem uma perspectiva menos estigmatizante para o campo da saúde mental ao nos dizer que é possível nos recuperarmos de uma adoecimento emocional, seja ele grave ou não, e nos prevenirmos de seu aparecimento. [14]
Na prática da psiquiatria clínica, é frequente observarmos que as pessoas que agem mais rapidamente em suas questões emocionais possivelmente desestabilizadoras tem uma recuperação melhor e sustentada por um maior período de tempo. Isso é possível porque uma vez que temos consciência dos nossos padrões de pensamento e de comportamento, além das nossas emoções, poderemos agir e receber ajuda de forma mais efetiva e lúcida. Mesmo durante essa situação limite em que vivemos é possível iniciarmos nosso processo de cuidado e prevenção.
Portanto é possível nos tornarmos mais resilientes – mesmo que em outros momentos de nossa vida não tenhamos conseguido.
Seguem algumas diretrizes iniciais para introduzir esses conceitos, tendo como primeira referência o Guia de habilidades para recuperação psicológica (tradução própria), Skills for Psychologic Recovery (SPR), desenvolvido a partir de uma revisão da literatura de intervenções em situações de estresse traumático, e outras utilizadas em campo e em lugares de pós desastre. [15]
Cinco principais eixos devem ser garantidos[16]:
Assim reconhecer e acolher as emoções afloradas e seus impactos gerados pelo atual momento da epidemia é um passo fundamental. A partir daí é possível traçar um plano de cuidado para transitar por essa conjuntura com uma maior estabilidade.
Há portanto diversas possibilidades de ações para o cuidado emocional afim de se atingir a calma, como relaxamentos, exercícios respiratórios, meditação, diários de sentimentos, entre outras. Esse passo será discutido detalhadamente em outro texto.
Ressignificar cognitivamente o que passamos: existe uma tendência a processar de forma exagerada os fatos, nos fazendo mais alertas e pessimistas. Em resposta, trazer fatos à nossa razão: a maioria das pessoas, principalmente aquelas que seguem as recomendações dos órgãos oficiais de saúde, passará pela epidemia sem maiores sequelas físicas; há uma força-tarefa mundial na ciência para desenvolver estratégias de enfrentamento à atual pandemia.
Lembremos também que nossa espécie já passou por epidemias dramáticas em outros momentos, mas conseguimos superá-las e desenvolver novas tecnologias de enfrentamento a partir delas. [17]
Apesar do isolamento social necessário, é importante tentarmos manter a conexão com nossa rede de amigos e família. Pesquisas recentes tem revelado sobre os efeitos deletérios que a solidão traz à nossa saúde física e emocional. Diversos estudos documentam que a solidão é tão ruim para nossa saúde quanto ser obeso e provavelmente tanto quanto ser um fumante moderado. A explicação está relacionada com uma série de mudanças hormonais que ocorrem, diminuindo as defesas imunes do organismo. [18]. Telefonemas, aplicativos que possibilitam encontros virtuais, aplicativos de trocas de mensagens facilitariam essa continuidade das relações outrora presenciais.
Um fato interessante que foi notado é de que a empatia e solidariedade nesse momento, com ações espontâneas de ajuda entre a população, além de serem eticamente desejáveis, também atuariam como um fator protetor para o adoecimento emocional. [18]
Passaremos por essa crise, de uma forma ou outra. Haverá aqueles que sairão ilesos emocionalmente, outros que irão necessitar de cuidados especializados em saúde mental- e as propostas apresentadas aqui não são substitutivas destes – e finalmente aqueles que precisarão somente de um direcionamento pontual.
Esse texto serve para todos- pode nos ajudar tanto a lidar com os sentimentos e emoções desestabilizantes como também preveni-los.
Tenhamos calma e esperança- são os alicerces para que possamos elencar com lucidez quais são as questões que nos atrapalham nesse momento, pensar em soluções e escolher as que sejam mais viáveis.
Por último, lembremos que todos temos habilidades e talentos que devem ser reconhecidos e utilizados nesse momento. Esse passo aumenta nossa confiança para resolver os problemas, apesar das dificuldades impostas pela atual realidade.
Ana Bautzer – Médica psiquiatra. Coordenadora Técnica de B.A. Saude. [email protected]r
FONTES:
[1] https://ourworldindata.org/mental-health, our world in data,23/04/2020
[2] Global Burden Disease, GBD Brasil 2017, Universidade Federal de Minas Gerais
[3] http://www.healthdata.org/brazil?language=129, IMHE measuring what matters
[4] COVID-19 Webinar 1: Mental Health & COVID 19 latest knowledge, 9 de abril de 2020
[5] Suicide risk and prevention during COVID 19 pandemic, Lancet Pshychiatry,21 de abril de 2020
[6] A nationwide survey of psychological distress among Chinese people in the COVID-19 epidemic: implications and policy recommendations. British Medical Journal, fevereiro 2020
[7] Mitigate the effects of Home confinement on children during the COVID-19 outbreak. Online 2 março, 2020 https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30520-1
[8] The effects of social deprivation on adolescent social development and mental health, Preprint , ORBEN, TOMOVA e BLAKEMORE, University of Cambridge
[9] Behavorial and Emotional Disorders in Children during the COVID 19 Epidemic; European Paediatric Association, 13 março 2020
[10] COVID-19’s mental health effects by age group: Children, college students,working-age adults and older adults. COVID-19 Resource Center: what clinicians need to know. 8 abril 2020
[11] Perspectives on Psychological Science, vol 10,n 2,2015
[12] Resilience and Mental Health: Challenges across the Lifespam. Cambridge University, 2011.
[13] Mental Health Needs of Health Care Workers Providing Frontline COVID-19 Care. JAMA Network, 1 abril 2020.
[14] Introduction: The politic of resilience and recovery in mental health care. Alison HOWELL, Jijian HORONKA
[15] SPR Manual Complete with New Cover. National Center for PTSD . National Child Traumatic Network. Field Operation guide,2010.
[16] Psychological First Aid. Field Operation Guide. National Center for PTSD.2010
[17] In a Crisis,pessimism is natural but realism is Crucial.Marian Tupy,Human Progress
[18] Only Connected. COVID and mental health. The economist, 4 abril 2020.
[1] Médica psiquiatra. Coordenadora Técnica de B.A. Saude. [email protected]
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