Resistência Civil como signo democrático, por Joelma L. V. Pires e Roberto Bueno

O racismo é um dos mecanismos mais extremos e desumanos de exercício do poder e de desqualificação dos indivíduos com o objetivo de dominação e acumulação do capital.

Resistência Civil como signo democrático

por Joelma L. V. Pires e Roberto Bueno

Qualquer ação de resistência é inerente a uma relação social de dominação. A resistência inaugura a possibilidade de correlação de forças plausível entre dominante e dominado favorável a este quando reúna forças e reservas mentais suficientes para empreender a longa jornada do enfrentamento. Reagir eficientemente à subjugação requer mais do que esforços individuais, mas coletivos, transpondo os direitos formais para a materialidade, pois estes estão conectados a transposição do espectador em resistente, sujeito constitutivo e construtor da sociedade minimamente democrática sustentada com a solidez da esfera pública.

Nas sociedades caracterizadas por altos níveis de impulsionamento da injustiça social e de autoritarismo, ocorre a ocupação da esfera pública pela privada, a subversão do coletivo pelo singular, cenário no qual a tendência é o controle e punição dos indivíduos no sentido de impossibilitar ao máximo a manifestação de qualquer resistência. Sob tal modelo a democracia que permite o conflito como possibilidade de luta para a garantia dos direitos iguais aos diferentes é desconsiderada e a própria noção de enfrentamento é demonizada sob o argumento do valor da pacificação social. Como exemplo desse modelo, tem-se a sociedade capitalista contemporânea que expande a lógica mercadológica para o Estado e todas as instituições públicas. Tal sociedade é absurdamente desregrada no uso da força e da violência, e descompromissada com qualquer contrato social fundamentado na mínima razoabilidade de expressão humana em prol da justiça.

Nessa conjuntura, a maioria dos indivíduos tolera a injustiça e não assume responsabilidade de se impor contra ela, circunscritos os seus interesses pessoais e, escravizados nesse domínio privado, não assumem responsabilidade com o mundo. A responsabilidade concerne à posição ética de compromisso coletivo e a resistência associada a essa dimensão reclama a ação política. Ao resistir à sociedade capitalista contemporânea, o indivíduo expõe a possibilidade de rejeição de uma situação econômica apresentada como sistêmica, sobre a qual não seria possível exercer nenhuma influência. A manifestação da resistência revela que nem todos se entregam à resignação, existem os que dispõem da capacidade de reconhecer a injustiça e têm disposição de luta contra ela.

Tal disposição expressa a coragem como virtude política e a imponência da subjetividade contra a adversidade. A disposição de luta contra a injustiça é mobilizada com a concretização da ação política do indivíduo que supera qualquer enquadramento na sociedade de massas sustentáculo da referida sociedade capitalista. A integração do indivíduo na sociedade de massas corresponde à sua limitação aos interesses da esfera privada. Por outro lado, a resistência a qualquer forma de opressão da sociedade capitalista o coloca no caminho da emancipação que sugere a condição de libertação de todos os limites instituídos.

Todavia, a condição de resistência é criminalizada pelos donos do poder em âmbito mundial. Esses necessitam criminalizá-la para manter a sua legitimidade de imposição do controle social, para a sua acumulação privada em grande parte ilícita. Ao impulsionarem o uso do poder que mantém a sua dominação, hierarquizam as vítimas com o objetivo de obter delas a conformação e transformá-las em objeto que dissemina a fragmentação e a competitividade entre si como trabalhadores. Diversos mecanismos de divisão dos trabalhadores são utilizados, entre eles, a diferenciação na escala de salários e direitos, além da instauração da segmentação e segregação baseada no preconceito. Nessa direção, as vítimas são hierarquizadas socialmente e organizacionalmente de acordo com o grau de convencimento da sua posição inferior para que aceitem humildemente a subjugação, tal hierarquização expõe a imensa desigualdade social entre os indivíduos, desconsiderada com a predominância da lógica da meritocracia.  Em vista disso, homens de expressivo poder econômico, quase todos brancos, exploram e oprimem trabalhadores que tem como meio de sobrevivência unicamente a venda da sua força de trabalho, esses são prejudicados se pertencerem ao gênero feminino e se forem negros(as) têm a sua punição gravemente ampliada.

O racismo é um dos mecanismos mais extremos e desumanos de exercício do poder e de desqualificação dos indivíduos com o objetivo de dominação e acumulação do capital. Na sociedade capitalista, homens e mulheres negros(as) são submetidos, com maior gravidade, às mais cruéis formas de humilhação e exclusão consideradas legítimas pela maioria da população mundial. Um número significativo de integrantes do sistema jurídico e da força policial condena-os sob a justificativa infundada de que são predispostos ao crime de acordo com a sua condição genética e a sua cor de pele.

Diariamente homens e mulheres negros(as) são encarcerados nas mais bem reputadas democracias liberais ocidentais, enquanto na periferia o seu destino imediato são as execuções sumárias ao arrepio da lei. No Brasil, por exemplo, as abordagens violentas e o abuso de autoridade são frequentes, assim como muito conhecidos processos judiciais perpassados por ilegalidades. A maioria brasileira de indivíduos negros(as) conhece desde tenra infância o que significa ser estrangeiro em sua própria casa, o que significa o maltrato como regra e a perversidade como elemento do cotidiano. A agressão sofrida é sistêmica, o desrespeito anda de mãos dadas com a indignidade e o extermínio para os que pretendam levantar-se para exigir que a ordem constitucional não seja apenas privilégio do mundo branco burguês.

É este o mundo construído pelo capital que não tem interesse em eliminar a violência como regra e pauta da ordem social. Inexiste empenho dos controladores do sistema para estabelecer parâmetros de justiça no trato coletivo. Não há preocupação para que sejam construídas condições minimamente humanas para a inclusão social da massa de negros(as) brasileiros, de sorte que o processo de negação de direitos continua ao lado da manutenção e ampliação das forças de repressão para lograr manter a abjeta situação. O encarceramento ilegítimo de massa de negros(as) é usado como alternativa ao seu abate e assassinato cotidiano por qualquer motivo ou mesmo sem um. É isto sustentável? Até quando? Devemos tolerar o intolerável?

Joelma L. V. Pires / Profa. Associada (UFU) 

Roberto Bueno / Prof. Associado (UFU) 

Redação

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