Resistir é possível: Janusz Korczak como metáfora do amanhecer, por Roberto Bueno

Korczak sabia que há diversas formas de viver, algumas delas, paradoxalmente, letais, e estar com as crianças era uma delas, mas também de permanecer íntegro.

Resistir é possível: Janusz Korczak como metáfora do amanhecer

por Roberto Bueno

Corriam os sombrios dias em que o genocídio estava na ordem do dia, em que a luta para sobreviver se impunha a todos e era tarefa imediata. Ninguém estava a salvo da persecução de regime político orientado a potencializar a morte em profusão. Determinados grupos tinham “prioridade” na macabra ordem do extermínio. A brevidade da vida ali era condição conhecida, e tudo era apenas questão de tempo aliada à sorte para prorrogar o sofrimento e sobreviver um pouco mais. A vida de todos estava sob contínuo risco, indiscriminadamente, tanto a de idosos como a de jovens, de crianças ou de bebês. O homem que a tudo conduzia transgredia qualquer descrição que do inferno algum dia tivesse sido redigida ou desenhada pela mais alta imaginação humana. A indiferença brutal pela vida era a nota do dia, o mal em estado bruto era a regra, a perversão caminhava pelas ruas com a foice da morte em seu poder. Eram dias em que Hitler dava as cartas e conduzia vasta horda de centenas de milhares de fanatizados dispostos a seguir ordens genocidas sem pestanejar.

Quando navegamos os mais revoltos mares sem apoio de bússola ou luminosidade e sob o peso de tempestade perfeita que impede vislumbrar o rumo torna-se pesarosa a atividade de orientar a esperança e infinita a dificuldade de respirar. Recaem pesadamente as ondas sobre nós, uma após a outra em sucessão que alimenta a sensação de que serão infinitas. Sob a pressão dos tempos de opressão mal podemos recordar que, finalmente, sempre amanhece. A esperança quase se esvai e com ela a vida, mas com o amanhecer eclode a força revigoradora do sol oferecendo o calor.

Durante as piores tormentas quando as ondas quase nos cobrem deparamos com homens verticais. Um destes homens notáveis foi Janusz Korczak, pseudônimo de Henryk Goldszmit (1878-1942). Judeu polonês, oficial do exército de seu país, foi médico, pedagogo e escritor, destacada personalidade por suas atividades sociais e pedagógicas durante a Segunda Grande Guerra Mundial. Janusz Korczak foi educado segundo o espírito liberal do movimento judaico “Haskalah”. Desenvolveu importantes trabalhos sobre os direitos da criança bem recepcionados na atualidade, mas não sem pesadas regressões em estágio da civilização que acena para violenta aceleração rumo a aventuras pré-Iluministas, e sem aparente disposição a acionar o freio.

Juntamente com Stefania Wilczyska, no dia 7.10.1912, Janusz Korczak  fundou em Varsóvia o orfanato “Dom Sierot”, organizando ali o que alguns qualificaram como “república democrática infantil”. Instituição financiada pela importante Sociedade Judaica local, o orfanato tinha orientação pedagógica avançada, aplicando educação baseada em sociedade pacífica e, como convinha àquelas crianças, tratando a todos segundo o princípio de reconhecimento da sociedade sem classes.  Reconhecia as crianças como seres autônomos, dispostas e aptas para o aprendizado imediato, assim como sujeitos de direitos que mereciam o respeito pelo pleno desenvolvimento de suas individualidades.

Invadida a Polônia pelos nazistas em setembro de 1939, logo os judeus começariam a encontrar os seus piores dias. Aproximadamente um ano depois, com a progressiva aplicação da política de isolamento dos judeus, o orfanato foi transferido para o gueto de Varsóvia, já durante o período de recrudescimento da política de extermínio judeu. Quando corria o dia 7 de agosto de 1942, os nazistas ordenaram a evacuação do orfanato e executaram a deportação para o campo de concentração de Treblinka de todos educadores e funcionários além das 200 crianças.

Chegado o fatídico momento da deportação Janus Korczak tomou o cuidado de pedir aos pequenos que escolhessem as suas melhores roupas e carregassem consigo brinquedo e livro favorito. Janus Korczak foi à frente daquela multidão de órfãos também composta por Stefania Wilczyska (1886-1942) e pelos educadores do orfanato, caminhando em direção a Umschlagplatz, praça de onde partiam os trens rumo aos campos de extermínio. As crianças formavam em filas de quatro, e de mãos dadas com duas delas ia ele à frente, assim até o embarque nos trens da morte. Janus Korczak, vivo ou morto, um mito, outros, mesmo vivos habitando corpos depredados, são rigorosamente, uns mortos.

Janusz Korczak foi assassinado nos primeiros dias do mês de agosto de 1942 em Treblinka. Abrira mão de todas as oportunidades oferecidas para eludir destino certo reservado a todos os seus pupilos e colegas. Korczak sabia que há diversas formas de viver, algumas delas, paradoxalmente, letais, e estar com as crianças era uma delas, mas também de permanecer íntegro. Esta alternativa, por vezes, colide e exclui a vida, sendo opcional entrar para listagem das personalidades ignominiosas. A justa escolha de Korczak torna luminosa e viva a sua memória, suscitando recordação nestas linhas, e não sobre outros milhares de vermes que habitam a história humana em posições de alto poder e determinação do infortúnio de milhares de vidas humanas as quais desprezam.

Temos notícia das últimas reflexões e sentimentos de Janus Korczak anotados em seu diário quando se encaminhava à certeira morte na câmara de gás de Treblinka. O teor era oração perpassada por compreensível perplexidade temperada por piedoso sentimento clemente relativamente aos diretores daquele cenário de horror instrumentalizado para a execução de centenas de milhares de pessoas, dentre os quais as suas jovens crianças, sobre o que anotou Korczak: “Não desejo nada de mal a ninguém. Não consigo. Não sei como se faz. Pai nosso, que estais no Céu. Essa oração nasceu da fome e da desventura. Pão nosso de cada dia. Mas isto que eu suporto, aconteceu mesmo. Aconteceu”. Era a oração regressando ao seu território inspirador original de fome e desventura ativada pelos últimos pensamentos de homem vertical como Korczak, no momento em que sua consciência percebia a iminência da eliminação física. De Korczak sabemos, mas quais serão os últimos pensamentos de vermes genocidas? Acaso são tormentosos, acionados por soluços de moralidade adormecida?

Hoje Jerusalém reserva espaço a merecido monumento à retidão de Janus Korczak, capaz de iluminar o horizonte humano mesmo quando as mais espessas tempestades se abatem sobre todos nós impiedosamente e os piores espécimes da espécie nos são apresentados em toda a sua putrefata e repugnante condição. Acreditamos não estar dispostos à intervenção azarosa dos vermes neste mundo, senão que depararemos com pulsantes e inspiradores Korczaks. Imersos no mundo das sombras os vermes desconhecem a dimensão retilínea de homens como Korczak, de quem passam ao largo. É luminoso farol de vida o homem que aponta para a proteção de indefesas vidas infantis comprometendo certeiramente a sua própria. Korczak foi magnânimo ao mobilizar densos recursos morais para apresentar conforto até o último momento a todos os seus pequenos que não conheceram o abandono depois da orfandade, senão o amor até o fim. Foi também impotente para acolher e nutrir o desejo do mal a alguém, simplesmente por não saber como se faz. Eu o emularia, mas, confesso, não sei como se faz.

Roberto Bueno – Professor universitário. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM).

Redação

3 Comentários

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  1. Como pedagoga confesso que desconhecia a existência desse grande homem e seu compromisso iluminador para com a vida. Mas tbm não tenho esse desprendimento de não desejar o mal para quem faz o mal. Isso é para poucos humanos especiais.

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